Livro - Do Outro Lado

m. trozidio


Do Outro Lado


inverno de 2001




...Acordei! Como que sugado de um abismo profundo. O som estridente de um motor passando bem próximo, me fez ficar esperando pelo balanço característico do deslocamento da água.

Não demorou mais de três segundos, e eu senti o Gaivota com suas quase seis toneladas, se mexendo um pouco mais do que o normal. Olho para as escotilhas. Lá fora, o Sol insistente, procura invadir a cabine, pedindo para que eu desperte para mais esse dia, para a vida.

Respiro fundo. O ar fresco da manhã, misturado à maresia, invade o meu corpo, trazendo consigo a sua costumeira energia renovadora e toda força desse novo dia. Esfrego os olhos. Tento alongar o corpo. O gosto do rum, de forma desagradável, ainda insiste em permanecer em minha boca. Por mais uma vez, eu juro a mim mesmo que diminuirei com o fumo e com a bebida...

...Eu não podia explicar, mas naquele dia, em especial, eu estava muito estranho, mais estranho do que o habitual. Assim que subi ao convés, tentando acordar definitivamente, o Sol refletindo na água arremeteu um brilho intenso em meus olhos, ofuscando-os por completo.

Por mais que ainda eu me sentisse bem naquela marina, naquele instante, algo me dizia que eu deveria partir. Partir por algum tempo, ou para sempre, sei lá. Mas eu ainda não estava muito certo desses meus impulsos que pareciam emergir do âmago da minha mais profunda essência. Encontrava-me confuso, sonolento e perdido.

Desci até o pequeno bote infalível, preso a popa do Gaivota e lentamente comecei remar a terra. Eu tinha fome. Eu desejava tomar um bom café da manhã. – Desde pequeno, quando me encontrava deprimido, ou com algum problema, fazia questão de me alimentar bem, comer exatamente aquilo que mais gostava.

E naquele momento, eu me sentia assim, confuso, com vontade de renovação, de mudanças, com vontade de virar minha vida.

Havia quase cinco anos que eu estava praticamente morando em Ubatuba. Desde que me aposentei, decidi realizar um dos meus maiores sonhos, que era exatamente morar dentro de uma embarcação e me entregar, de forma definitiva, à arte de escrever.
Durante toda minha existência, dedicara praticamente todos os meus momentos de lazer ao ato de relatar minhas experiências de vida. Consegui compor vários livros, quase todos relacionados à filosofia e toda sua enigmática estrutura, chegando a publicar alguns.

Tive uma vida profissional muito intensa. Como executivo na área de vendas de uma multinacional, passei os 20 últimos anos, sonhando com aquele momento sublime, em que eu pudesse atirar-me ao Mar, viver tudo aquilo que sempre havia sonhado. Com minhas filhas casadas, seguindo cada uma o seu caminho.

Durante esses cinco últimos anos, percorri a costa brasileira de ponta a ponta, atravessando o Atlântico duas vezes, até o continente Africano. Cheguei a permanecer 68 dias dentro deste veleiro, sem pisar em terra firme. De certo que alguns projetos de viagem ainda não realizados, procuravam me dar o tempero especial que sempre motiva os que apreciam o Mar.

Mas, naquele dia, desde que acordei, alguma coisa diferente realmente estava acontecendo, desestruturando antigos planos, quebrando velhos conceitos, destruindo algumas verdades que sempre carreguei comigo. Enquanto me alimentava, eu não conseguia deixar de me entregar a esses devaneios.

...A vida inteira, eu tinha procurado alucinadamente entender o motivo – o porquê – de tudo, e não conseguira aportar em lugar nenhum.

Tudo isso, me ensinara então, a não mais questionar a vida e toda sua complexidade. Melhor mesmo – deduzia eu – seria seguir, obedecer a esses desejos que brotam no âmago da nossa mais pura essência. E, mesmo ainda sem estar entendendo nada, decidi assim fazer...

Terminei meu dejejum. Aliás, há muito tempo eu não comia tão bem como fiz naquela manhã.

Olhei para o Alfredo, o balconista da pequena lanchonete do píer, um amigo que já havia suportado o meu mau humor e minhas noites de solidão enquanto bebericava o meu rum. Olhei-o com ternura, com o sentimento de quem se despede de um amigo.

Lembrei-me do Luiz, do João e de outros tantos companheiros que trabalham, na manutenção, na reforma, no conserto dos diversos barcos ali ancorados e, o mesmo sentimento se fazia presente. No fundo, eu já me sentia partindo, mesmo antes de ter tomado essa decisão.

Eu desejava me preparar, eu tinha essa consciência. Mesmo sem saber ainda para onde eu iria, provisões teriam que ser embarcadas. Uma revisão em toda a embarcação precisaria ser feita.

Em todas as viagens que eu havia feito até então, sempre tivera o cuidado de traçar minuciosamente os roteiros, procurando assim minimizar os riscos, garantindo o sucesso sempre obtido.

Mas daquela vez, tudo era diferente. Eu tinha o ímpeto, uma necessidade maior de atirar-me ao Mar sem destino, sem rotas, sem um lugar prédefinido a chegar. Daquela vez, o compasso, as réguas, as cartas marítimas não seriam usadas previamente como de costume.

Era assim que eu sentia que deveria ser. Era assim que uma força maior procurava me tirar da rotina habitual.

Em vez de voltar ao Gaivota, decidi dar um pulo até a cidade, eu precisava de provisões. Não sabia o que compraria, mas uma certeza acompanhava-me, só ela, nada mais: obedecer àqueles meus impulsos.

Passei toda manhã no centro de Ubatuba. Comprei mais alguns metros de cordames, moitões extra, alimentos desidratados e me lembro muito bem; um novo rádio para comunicação.

Assim que retornei ao píer, alguns amigos, me vendo descarregar os equipamentos adquiridos e, habituados à rotina de um ancoradouro, logo desconfiaram da minha partida. De certo acreditavam ser mais uma, das muitas viagens que já fizera até então. Eles não suspeitavam, porém, do sentido maior que “daquela vez” se fazia presente.

Ainda naquela tarde, comecei a preparar meu veleiro, revisando seu mastro, velas, amarras, roldanas e tudo mais que envolve o sistema de navegação de uma embarcação movida pelo vento.

Vez por outra, um amigo, deslizando pelas calmas águas daquela baia, me questionava para onde eu pretendia ir desta vez. Procurando não ser indelicado, simplesmente respondia que seguiria para o norte, sem um destino especifico. Eu ainda não sabia quando partiria, além de não saber se quer para onde.

A tarde começava a se despedir. Com ar mais fresco, o Sol tombando atrás das montanhas, dava os primeiros indícios de uma noite clara, tranqüila com um Céu estrelado e bonito. Eu me sentia cansado. Meu corpo pedia uma boa dose de rum, recostar-me no sofá, e sob o eterno balanço do Mar, saborear o meu cachimbo, permanecendo assim por algumas boas horas.

Depois de um bom e relaxante banho morno, com a água aquecida pelo forte Sol do dia inteiro, nada mais justo e recompensador que premiar todo aquele trabalho com o meu ritual noturno.
Como de costume, eu não consegui resistir às suplicas do meu notebook, sobre a mesa de navegação.

Ele tentava me dizer que eu precisava começar a relatar essas novas aspirações, começar a escrever este, que você tem nas mãos agora.

Após algumas horas escrevendo, procurei dormir. Apesar de estar me sentindo muito bem, em paz, o fato de não saber ao certo tudo o que estava acontecendo comigo mesmo, não deixava de provocar – certo – grau de preocupação. Mas, mais uma vez, como que por um encanto mágico da natureza, adormeci.

Durante aquela madrugada, muitos sonhos desfilaram em minha mente, com toda sua confusão característica. Pessoas, vultos, tentavam me dizer algo que eu não compreendia. Mais uma vez, assim que despertei, me sentia nos braços da mãe natureza, sendo embalado com toda suavidade por águas tranqüilas.

Não tardou para que amanhecesse. Quando me levantei, liguei o rádio, a fim de ouvir os boletins meteorológicos, passados de hora em hora sob as condições climáticas de praticamente o mundo inteiro. O meu ímpeto de seguir para o norte permanecia imperioso sobre os meus instintos irracionais.

Aquela manhã se mostrava ótima para dar início a essa viagem sem precedentes. Instalei o novo radio que também possuía comunicação telefônica via satélite. Com o objetivo de testar o novo equipamento, aproveitei a oportunidade para comunicar a minha família e alguns amigos mais próximo quanto a minha partida, dando como destino, o norte do nosso planeta.

Mesmo sabendo que fazia tudo isso, muito à contra gosto da minha esposa, eu não poderia deixá-la sem informações do que eu pretendia fazer.

Com todas as provisões a bordo e tudo revisado, às 09h30min levantei âncora, soltei as amarras, e subindo a vela da retranca, comecei lentamente a sair do Saco da Ribeira sem acionar o motor.

Era uma linda manhã de Quarta-feira. Apesar do inverno, a temperatura mostrava-se muito agradável. À medida com que as horas percorriam por aquele pedaço do tempo, o dia parecia ficar cada vez mais belo.

Embora ainda um pouco frio, a proximidade com a primavera, já, mostrava encher de encanto e cores, toda a natureza. Não pude deixar de lembrar imediatamente de Dom Antônio, o Vivaldi, que inebriado com toda beleza dessa estação, compôs a Primavera, dentro da sinfonia Quatro estações.

Olhando toda aquela maravilha, não era difícil entender como esses mestres encontravam inspiração para criarem obras tão espetaculares. Eu era capaz até mesmo de ouvir a sua música, entoando a poesia de toda a natureza, enquanto eu partia.

Aos poucos, eu ganhava mais e mais vento à medida com que me afastava da costa. Um ar um pouco mais gelado parecia não mais permitir que o Sol continuasse aquecendo tanto tudo abaixo de si. Mas, mesmo assim, um brilho todo especial, refletido nas águas, agora um pouco mais agitadas, me fazia não esquecer da beleza desse astro tão importante em nossa a vida.

A cada instante, a costa se distanciava mais e mais. Sentimentos conhecidos, como a euforia de uma partida e a tristeza de deixar para trás amigos, parentes, lugares que realmente nos sentimos muito bem, crescia em mim, provocando um aperto no peito. Tudo isso, eu sabia: fazia parte da vida e da morte.

Realmente, a cada minuto eu sentia, se confirmava – mesmo sem eu ainda poder explicar – que algo muito, muito grande estaria por trás daquela viagem, algo que certamente transcenderia a tudo que eu já havia vivido.

Coisas não comuns começavam a serem percebidas. Meu veleiro, que eu conhecia tão bem, aos poucos, adquiria uma performance nunca antes conseguida. Sua estabilidade, sua velocidade, e a própria navegabilidade, me surpreendiam à medida com que eu avançava obedecendo a esses impulsos internos.

Eu mesmo podia sentir o meu estado físico e mental, com uma desenvoltura que, nem na adolescência me recordava ter experimentado.

Também não pude deixar de perceber, que uma consciência clara, mais objetiva, insinuava-se de forma lenta, porém, progressiva.

Sou obrigado a admitir: devido a tantos sentimentos e sensações estranhas, o medo daquele desconhecido continuava me incomodando. Mas, com uma determinação inabalável, eu prosseguia.

Por não ter feito uma rota para essa viagem, eu sabia que seria mais seguro, navegar distante da costa, devido aos arrecifes e outros obstáculos naturais, que eu conhecia muito bem. O Mar, só a visão do Mar e do Céu, mostravam-se perfeitamente adequados para àquela longa viagem rumo ao desconhecido.

Naveguei assim, por todo aquele maravilhoso dia. Com os primeiros indícios da noite, e como não havia a mínima pressa em relação a absolutamente nada, decidi parar, descansar e procurar absorver toda aquela energia que emanava do Céu e do Mar, tudo o que aquele isolamento me proporcionava.

As primeiras estrelas surgiam lentamente. Em uma situação dessas, por mais displicente que um homem possa ser, desperta dentro do mais profundo sentido de sua alma, uma aproximação com o Criador de tudo isso.

De forma intencional, uma reflexão sobre a vida, como que uma revisão de tudo feito até hoje, começava a ser projetada em minha tela mental.

Com a sensibilidade a flor da pele, por mais uma vez me questionei sobre o verdadeiro motivo, o sentido que fazia estar ali.

Observando a corda que esticada prendia uma ancora de superfície, aparentemente me fazia sentir seguro, imediatamente, tracei um paralelo com as várias âncoras que eu tinha em minha vida.

Muitas, sem mesmo que eu tivesse se quer consciência delas. Mas eu sabia que elas estavam lá, me segurando, impedindo que eu prosseguisse com meus sonhos, com o meu crescimento.
São as âncoras da vida, que com certeza, todos possuímos.

Como seria bom se conseguíssemos identificá-las, uma a uma. Conhecer os obstáculos, sempre foi o primeiro passo para vencê-los. E naquele momento, eu sentia que precisava dar mais atenção a tudo isso.

A noite continuava se fazendo cada vez mais presente. Como um cobertor frio, derramava sobre a terra o doce ébano da vida. Depois de ascender às luzes sinalizadoras, entro procurando o conforto e, mais uma vez, o merecido descanso. Fiz uma rápida refeição sobre o eterno balanço do Mar.

Acendi meu cachimbo, o meu velho companheiro de muitos momentos de alegria e de tristeza, mas principalmente de reflexão, que se mostrava mais do que nunca, com uma suavidade ainda não degustada.

Esse detalhe me fez lembrar imediatamente das muitas coincidências que eu já vinha observando naquele dia.

De certo que – fazendo uma pequena retrospectiva – eu podia afirmar que já observara, durante a minha vida, períodos onde praticamente tudo tinha dado certo, momentos onde às forças da natureza, pareciam ter conspirado a meu favor.

Só que, daquela vez, a intensidade de todos os acontecimentos, muito me surpreendia. Era o momento ideal para relatar o ocorrido naquele dia, e assim, somar mais algumas páginas neste que, quem sabe poderia se tornar mais um livro.

Não demorou muito para que eu começasse a sentir um agradável estado de sonolência. Quase que já me despedindo daquele dia, me deitei no quarto da proa, não demorando muito para que eu me entregasse a uma noite de sono e vigília.

Na manhã seguinte, sou desperto com o grasnar de gaivotas, mergulhando altivas sobre algum cardume a poucos metros do Gaivota. Aquele canto da natureza me trazia das profundezas do inconsciente, me dizendo que já era hora de continuar.

O Sol ainda não havia acordado. Sua luz, porém, já pintava com um tom de azul mais claro, todo lado leste do oceano.

Depois de muitos anos, eu acordava me sentindo maravilhosamente bem. Esse estado, mais uma vez, me fazia refletir atrás de respostas, lembrando mais uma vez, das muitas coincidências que estavam acontecendo.

Pensando melhor agora, eu notei que todo o meu universo começou a mudar a partir do momento em que eu decidi “aceitar plenamente” as vontades mais profundas do meu ser. Mas também, por outro lado, eu não desejava, por nada nesse mundo, interferir naquele processo que se desenrolava tão bem até então. Eu temia poder atrapalhar tudo, com a minha falta de conhecimento, com os meus eternos “por quês”.

Tomei um delicioso café da manhã, preparado cuidadosamente em conformidade com o que eu sentia, sem pressa, procurando aproveitar ao máximo cada segundo de tudo o que eu estava vivenciando.

Obedecendo a mais uma vontade interior, tirei meu relógio. Eu não desejava mais controlar o tempo. Eu poderia seguir assim, mais livre ainda, ao encontro do meu destino.

Quando acreditei já ser hora de partir, recolhi a âncora. Conferi o quanto as correntes marinhas tinham me afastado das coordenadas até onde havia chegado no dia anterior, e por alguns minutos, permiti que o Gaivota seguisse a corrente, agora sem a âncora, como um ser entregue totalmente nas mãos da natureza.

Girando a pequena manivela, à direita do timão, comecei a içar a grande vela da retranca, fazendo com que o veleiro, começasse a ganhar impulsos à frente, ao norte do nosso planeta.

Uma brisa fresca, ricamente umedecida, soprava meu corpo, apagando, aos poucos, chamas que ainda ardiam em minha alma; intrigas, arrependimentos, egoísmo... Você sabe!

Agora sem supervisionar os ponteiros de um relógio, eu observava o Sol em seu incessante giro sobre minha cabeça, alternando o brilho do seu reflexo na água. A cada minuto, obedecendo a essa ordem maior, eu mergulhava cada vez mais para dentro de mim mesmo. Por vezes, a impressão que eu tinha, era de estar cada vez mais próximo da minha própria origem.

Foram dias maravilhosos. Mesmo na companhia da solidão, a natureza parecia compensar qualquer carência afetiva que eu pudesse sentir, me enchendo de paz, de luz, acalentando meu corpo, tornando aqueles dias, os mais felizes da minha vida.

Saboreando todo esse devaneio, e mais, tudo dando certo, eu fui deixando, gradativamente, de consultar os instrumentos de navegação. Sabemos que, no reino animal, todos os seres possuem um instinto natural que os permitem definir claramente os pólos do nosso planeta, situações climáticas adversas...

Alguns homens – principalmente os que vivem no Mar – não deixaram essa herança animal se perder com o tempo. Esses marujos são perfeitamente capazes de identificar o Norte, estejam eles onde estiverem.

E eu, percebi, que já estava navegando há alguns dias, só me orientando pelo meu instinto. Encontrava-me em tamanha integração com a natureza, que mais do que nunca, me sentia parte integrante dela.

Eu não sabia mais ao certo, por quantos dias estava navegando rumo ao norte, eu já não me preocupava mais com isso. Só podia afirmar que todos aqueles dias, eu dispunha de muito Sol, de águas tranqüilas, e de vento a favor, tudo o que qualquer navegador deseja em sua vida.

Depois de algum tempo, já acreditando estar no paraíso, percebi de maneira brusca, que a leste, algumas milhas à minha direita, o céu se mostrava com uma enorme mancha cinza, muito escura, quase negra. Essas nuvens se estendiam por todo leste, até onde meus olhos podiam ver.
Mesmo achando um tanto estranho, pela diferença dessas condições climáticas, continuei navegando, só que então, monitorando aquela provável tempestade que acontecia a estibordo. Acredito que continuei assim por todo o dia.

Com a chegada da noite, eu podia observar ainda que à distância, os riscos azuis, descargas elétricas sendo arremessadas ao Mar, impiedosamente. Com certeza, se aquele mau tempo resolvesse vir ao meu encontro, eu estaria em maus lençóis.

Mas, sem saber explicar, estranhamente, eu não me preocupava com isso. No fundo algo me dizia para continuar, manter o rumo à frente, ao Norte. E assim, procurei descansar um pouco.
Aquela noite, apesar de continuar sobre o aconchego de águas tranqüilas, uma ponta de inquietude parecia querer prejudicar o meu repouso. Mesmo assim, não tardou, para que eu fosse tragado pelo mundo fantástico dos sonhos.

Na manhã seguinte, mesmo ainda deitado, com os olhos fechados, eu podia sentir, que o Mar, continuava com toda sua calma, que até então me conduzira. Lembrei-me imediatamente do mau tempo a leste.

Levantei. Já subindo para o convés, fui procurando ver como o tempo estava para aquele lado. E, para minha surpresa, toda aquela faixa leste, continuava com seu tom ébano, aterrorizante.
Eu ainda não compreendia. Sobre minha cabeça, há dias o céu se mostrava cada vez mais belo e suave. E à minha direita, como uma linha contínua, surgia a divisão do bom e do mau tempo.

Ainda em pé no convés, próximo ao timão, assim que virei lentamente para a esquerda, um tremor invadiu todo o meu corpo. Vejo que a Oeste, a mesma imagem se repetia. Uma outra linha, também divida o tempo.

Agora, eu estava em um perfeito corredor de bom tempo. À minha direita e à minha esquerda, o Céu se mostrava negro, furioso. E quando eu olhava para o sul, ou para o norte, uma trilha, uma rota de tempo bom e Mar calmo, de Céu azul insistia em se mostrar presente.

Sem dúvida em todos esses anos no Mar, eu nunca havia visto nada parecido. Assustado, decido ligar o rádio. Há dias, eu estava navegando somente pelos meus instintos, mas agora, eu desejava ouvir os boletins meteorológicos que a Nasa, de hora em hora, manda para o mundo inteiro. Com as velas novamente içadas, eu continuei rumando para o norte.

Devido às condições do tempo, não me restava se não duas alternativas: continuar para o norte ou voltar para trás, para sul. No rádio, nenhuma informação, parecia coincidir com o que eu estava vivenciando.

Havia tempestades anunciadas sim, mas do outro lado do planeta, sem nenhuma relação ao provável lugar onde eu me encontrava.

De pé, segurando o timão, olhando atentamente para frente, vez por outra, para os lados, me certificando das paredes do meu corredor, eu ficava tentando imaginar o que poderia ser aquilo.
Eu tinha que admitir: desde que tomei a decisão de fazer aquela viagem, coisas estranhas vinham acontecendo. Mas tudo isso, acontecia até então a meu favor.

Agora, no entanto, mesmo sem me prejudicar, eu podia sentir uma ameaça dos meus dois lados. Não posso dizer que sentia medo. A convicção de seguir à frente, mais a certeza de que eu realmente avançava para algo maior, satisfazendo vontades incompreensíveis, não me permitiam ao medo.

Com mais um dia daquela atividade totalmente incomum, em conjunto com as estranhas sensações e coincidências que vinham acontecendo, não foi difícil deduzir que eu experimentava, quem sabe, um momento mágico, sublime em minha vida.

Sabemos que tudo que é desconhecido, trás consigo uma série de reações, que nós, certamente estamos habituados: expectativa, receio, impaciência, preocupação, curiosidade...

E eu, não fugia a essa regra. Minhas noites, já não eram mais tão repousantes quanto às do inicio daquela viagem. Eu podia sentir, além das perguntas, que agora constantemente me incomodava mais alguma influência externa, uma espécie de energia no ar, no Mar, no Céu, que de alguma maneira, podia ser percebida, mesmo que eu não encontrasse um sentido para explicar essa sensação.

Mesmo sem estar controlando o tempo, deduzi que havia se passado – mais ou menos – uma semana desde que saí de Ubatuba, despertando com isso, a necessidade de um contato com a família, alguns amigos. Uma pausa, um descanso. Eu tinha que relaxar e desviar os meus pensamentos para outras coisas...

Fazendo uso da telefonia por satélite, rapidamente, eu estava falando com minhas filhas. Pelo menos atrás de mim, tudo parecia estar dentro de sua normalidade.

Ainda procurando explicações para tantos fenômenos inexplicáveis, tive o ímpeto de tentar checar a minha atual localização. Como já estava próximo a todo equipamento que dispunha para isso, sentado à pequena mesa de navegação, percebi que a pequena bússola de mão, que sempre carreguei comigo, já não obedecia mais o norte magnético.

Arregalei os olhos, respirei fundo com o coração começando a disparar. A única vez que pude ver algo parecido fora em filmes. Subi imediatamente até o timão, onde a sua frente, outra bússola fixa, de nível, bem maior e mais confiável, estava instalada. Esta também, para meu espanto, não se mostrava mais confiável como sempre.

Era uma tarde agradável. O vento continuava a favor. E mesmo ainda com a incomoda presença das nuvens negras a estibordo e a bombordo, acima de mim, o azul imperava doce e majestoso.
Não demorou muito, para que eu começasse a perceber que o radio, com os boletins meteorológicos, começava a falhar com fortes interferências.

Pela primeira vez desde que tudo começou, pensei na possibilidade de voltar. Por mais determinação que eu carregava comigo, a situação, agora, gradativamente não se mostrava favorável em nada.

Vivendo momentos de muita dúvida, e com a noite bem próxima, preferi deixar essa decisão para o dia seguinte, que, dependendo das condições, principalmente dos instrumentos, eu poderia retornar ou não.

Naquela noite, sentado na cabine, fazendo minha refeição, o estado de êxtase, que até então eu vinha sentindo, já não mais se fazia presente. Agora mantendo o rádio ligado, a cada interferência o receio aumentava. Minha intuição mesmo assim, continuava afirmando que alguma coisa, muito especial ainda aconteceria. Mesmo com todas as dúvidas e receios, não demorei muito para desligar os meus sentidos.

Logo que despertei na manhã seguinte, liguei o radio novamente. Não foi minha surpresa, ver que devido a um aumento do nível de interferência, esse instrumento encontrava-se totalmente inoperante. Todas as bússolas que eu trazia a bordo mantinham o mesmo padrão.

O tempo continuava bom, embora muito nublado. As nuvens negras, que me acompanharam durante os últimos dias, se mostravam com menos intensidade. E eu, tinha uma decisão a tomar. Ainda sonolento, e com fome, recusei-me a qualquer esforço mental.

Depois de um delicioso mergulho, depois de ter nadado um pouco, tomei um bom café da manhã. Mas, mesmo aparentemente com tudo transbordando em harmonia, uma decisão ainda precisava ser tomada.

Preocupar-se com as condições, com a falta de equipamento e voltar, ou manter firme uma posição que obedecia a uma vontade interna, que representava objetivos maiores em todos os contextos?

Olhando mais uma vez para o radio, notei que ele ainda não era capaz de transmitir nenhuma palavra se quer. O sistema de telefonia por satélite, também se mostrava totalmente inoperante. Rádios comuns, com freqüências musicais, entoavam à mesma melodia do chiado, de um ruído fino e continuo.

Acima, a neblina não me permitia ver o céu, que, pela luminosidade do dia, mostrava ter um forte Sol sobre a névoa. Mas, e então, o que fazer?

Mesmo sem os rádios, o equipamento de telefonia, e as bússolas, ainda assim, eu acreditava possuir o meu senso de direção. Talvez essa crença, me animava a continuar, mesmo agora com todas as essas interferências negativas.

E assim, por mais uma vez decidi continuar. Ainda que sentindo um forte receio, eu tinha que continuar. E assim o fiz. Todas as velas abertas em seu mastro, à frente.

Aquele dia parecia prosseguir em um ritmo mais lento. A névoa insistia em permanecer, como nas primeiras horas da manhã. A tensão continuava aumentando cada vez mais. E, mesmo contra a minha vontade, uma força maior continuava me puxando para o norte, sem que eu fosse capaz de entender.

Mais uma situação inexplicável. Agora, para aumentar ainda mais minha falta de compreensão, grandes sombras escuras, pareciam circundar às vezes, sobre a névoa, fazendo-me achar que o Sol por instantes desaparecia. Mais coisas estranhas. Essas sombras apareciam de repente, paravam por algum instante, e depois desapareciam rapidamente, numa velocidade surpreendente. Mas, que diabo poderia ser aquilo?

Intrigado e com medo, eu já estava evitando olhar para cima, mas por outro lado, não podia deixar de perceber quando elas voltavam, a quantidade de luz diminuía significativamente.

A tarde parecia chegar ao seu final, mas eu podia notar que a noite tardava em aparecer. As sombras insistiam em me acompanhar. Cansado, navegando – segundo meus cálculos – há mais de 12 horas eu não conseguia entender o porquê, não escurecia naquele longo dia?

Andando de popa à proa, me questionava mais do que nunca, tudo o que poderia estar acontecendo. Até onde eu conseguiria levar a diante a determinação em prosseguir com essa viagem?

Depois de mais algumas horas, percebendo que, definitivamente aquele dia não mais terminaria, desconfiei que talvez, eu pudesse estar navegando em círculos. Quem sabe, o meu senso de direção, assim como os rádios e a própria bússola, não estivesse mais tão confiável como eu presumia.

Não demorou muito, para que eu, definitivamente tivesse a certeza de que estava mesmo circundando um bom pedaço de oceano, sem se quer ter a visão de poucos metros à minha frente.

Devido a todo esse conflito que eu estava vivenciando, mais o terrível cansaço que agora parecia tomar conta de todo meu corpo, decidi arriar as velas, e descansar. Mesmo com a noite insistindo em continuar dia, eu precisava dormir.

Eu sentia, de forma clara não ter mais sequer, o próprio raciocínio. Desci para a cabine, e quase desfalecido, me deitei. E ainda notando mais uma vez a presença de uma outra grande sombra sobre o Gaivota, o meu cansaço era tanto, que acabei dormindo profundamente, como poucas vezes posso lembrar em toda minha vida.

Sonhos e mais sonhos... Conseguiam ser ainda mais confusos que a realidade que eu estava vivendo, fizeram-me companhia durante todo aquele período em que eu dormira. Não sei precisar por quantas horas ou dias, eu permaneci assim adormecido.

Quando às vezes eu despertava, uma força incalculável parecia me arrastar novamente para o inconsciente, não me permitindo sequer, abrir os olhos, levando-me novamente para seus mundos estranhos.

Como que se tivesse dormido por alguns meses, pelas dores que eu sentia no corpo, quando definitivamente acordei, eu podia afirmar que estive entregue ao mundo dos sonhos por muitos dias, ininterruptos. Ainda deitado, com a cabeça zonza, os pensamentos confusos, eu ainda era capaz de perceber a que agora, o Gaivota já não balançava tanto.

O Sol, finalmente vencera o nevoeiro, forçando entrar pelas escotilhas. Por alguns instantes, acreditei estar novamente seguro. Respirei fundo. As dores por todo o corpo se evidenciaram mais forte ainda. Realmente, devo ter dormido muito, muito mesmo.

Sentei-me na cama. Depois de tentar fazer um alongamento, percebo não existirem mais sombras. Levantei-me. Assim que olhei pela escotilha, tive meus batimentos cardíacos disparados abruptamente. Eu estava ancorado, próximo a uma praia.

Ainda colocando alguma roupa, eu procurava a todo custo, lembrar-me se tinha ou não ancorado o Gaivota, ou quem sabe, enquanto dormia, ele poderia ter se aproximado de alguma praia, trazido pelas correntes marinhas.

Minha pressa de subir ao convés era tanta, que não coloquei nem mesmo a camiseta. A medida com que meu corpo saia lentamente da cabine, eu tomava noção de onde estava, tentava involuntariamente abrir mais e mais os olhos, para entender como poderia existir tanta beleza, tanto fascínio em um único lugar.

Evidente que eu conhecia muitas ilhas, praias paradisíacas, não só na costa brasileira, com também da africana, mas aquela praia, aquele lugar, além de toda beleza física que se mostrava perceptível aos olhos, uma certa energia, emanava de todos lugares, com tamanha intensidade, que parecia fazer meu corpo quase flutuar. Literalmente me faltou o ar, enquanto contemplava toda aquela maravilha.

Respirei fundo, uma vez, várias vezes... Eu precisava desesperadamente entender o que estava acontecendo. Onde eu estava, e mais, como chegara até ali? Mas, a incrível sensação de bem estar proporcionado por aquela atmosfera vibrante, começou a me acalmar, devolvendo meus batimentos lentamente a sua normalidade, acalmando aos poucos os meus receios, a minha curiosidade, a minha estagnação diante a um cenário nunca antes vivido.

Andei até a proa, desejava ver melhor tudo que a paisagem me oferecia. E não demorou muito, para que eu visse a corda azul da âncora, esticada, se perdendo dentro da cristalina água sob o Gaivota. Isso significava que eu, ou alguém, havia ancorado o barco. O problema maior, é que eu não era capaz de me lembrar de nada, de forma alguma de ter feito qualquer coisa nesse sentido.

Cocei a cabeça. Fechei os olhos. Balancei a cabeça em sinal negativo. Mesmo vibrando com toda aquela energia que emanava do lugar, questões e mais questões, não paravam de surgir em minha mente, como um martelo em uma bigorna, com seu som estridente.

Não demorei em perceber que aquela praia, não era muito grande. Suas águas, com uma transparência incrível me permitiam ver a areia clara, envolvendo minha âncora. Pequenos e coloridos peixes, pareciam estranhar minha presença, naquele pedaço de paraíso.

A temperatura, de forma impressionante, era perfeita e muito, muito agradável. Gaivotas voavam em plena harmonia com o meio, mais parecendo com um cartão postal, um cartão postal do próprio paraíso.

Resolvi descer até a praia, explorar melhor onde eu estava. Caminhei até a popa, onde o bote infalível ficava sempre amarrado. Assim que me sentei no pequeno barco, não resisti ao impulso de colocar a mão naquela água, de tanto que me chamava a atenção, sentir sua temperatura, seu gosto.

Não foi minha surpresa, ao perceber que, assim como todo o clima, a temperatura da água parecia mais, uma aconchegante banheira. Levei a mão à boca, notei que a salinidade era muito baixa mesmo olhando todo o oceano à minha frente. Soltei as amarras, e comecei a remar. Ainda com um certo receio, mais com muita curiosidade e emoção, perdido nesse misto de sensações, eu me aproximava da praia.

Aquelas águas tranqüilas permitiram que eu desembarcasse sem nenhum esforço. Descalço, toquei a areia. Por mais uma vez, procurei olhar a minha volta, apesar de toda aquela beleza que a natureza me proporcionava, não havia mais ninguém naquele lugar.

O Sol, piscando entre os coqueiros, me convidava a caminhar um pouco. Quando se passam muitos dias dentro de um barco, ter os pés em terra firme, sempre causa um certo desconforto, talvez o mesmo desconforto que sente quem não está acostumado com barcos.

Caminhei por horas. Eu podia sentir os meus pés sendo massageados pela areia a cada passo dado. Enchendo o peito com aquele ar fresco, eu percebia minha mente desprender-se do corpo cada vez mais. Vez por outra, aqueles pensamentos preocupantes tentavam voltar.

E eu sabia. Mesmo desfrutando de toda beleza e, essa incrível sensação de paz e harmonia, o meu lado racional procurava imperar em meu ser. Estariam as bússolas funcionando novamente? E quando aos rádios?

Mas, o meu estado de relaxamento era tamanho, que nada, absolutamente nada, mostrava possuir forças, para me incomodar. Percebi, quando olhei para trás, que eu já havia caminhado tanto, tanto que não podia mais ver a minha embarcação. Decidi começar a retornar. A maré mostrava ter subido muito, e nem mesmo esse fato, ainda me preocupava, eu sabia que o Gaivota estaria bem.

Já de volta, em minha cabine, eu tentava por mais uma vez, um contato com alguém, pelos rádios e pelo telefone. Tudo de forma totalmente inútil. Àquela espécie de interferência magnética parecia bloquear as freqüências dos aparelhos.

As bússolas, não conseguiam decidir mais onde era o Norte. Restava-me ainda o velho astrolábio, que, junto as nossas amigas estrelas, infalivelmente me permitiriam definir minha exata localização.

A luz dentro da cabine diminuía rapidamente. O balanço daquela praia, em nada me incomodava. Um leve bramir do Mar, chocando-se com os rochedos não muito distantes, contribuía com tudo, tornando o lugar deliciosamente agradável.

Evitei ascender às luzes. Decidi poupar as baterias. Com o sextante nas mãos, acendo meu cachimbo e, em companhia do meu outro velho amigo, subo ao convés. Uma brisa agora mais fria refrescava aquele pedaço do paraíso.

Olhei para o Céu, as primeiras estrelas, finalmente começavam a surgir, doces, expendidas. Refletidas sobre um Céu azul muito escuro, traziam consigo impressões únicas, como se eu ainda não tivesse olhado um Céu estrelado em minha vida.

Circundando os olhos ao redor, eu procurava pela lua. Numa noite tão clara como aquela, acreditei ser impossível não deixar de ver o astro prateado da noite. Mas, para que eu continuasse caminhando dentro do mistério, ela não surgia. Não surgia em nenhum canto do Céu, nem mesmo por de trás das montanhas à minha frente.

Depois de mais algumas horas contemplando aquele cenário único, à noite finalmente se fazia presente. Com alguns mapas, cartas marítimas, e meu astrolábio, eu comecei a tentar me localizar. Não demorou muito, para que eu percebesse que todos aqueles mapas que eu sempre carreguei comigo, e que, por muitas vezes me ajudaram, agora, eu não conseguia estabelecer uma relação se quer com que eu via, com o que estava registrado naqueles papeis.

As constelações, que praticamente todos estamos habituados a ver no céu, simplesmente não estavam mais em seus lugares. Como que se um forte vento, tivesse sacudido o universo, desarrumando sua ordem natural.

Mesmo concluindo, que praticamente a minha última esperança de tentar definir onde eu estava, havia se perdido, ainda assim, um leve sorriso se fazia presente em meus lábios. Eu me sentia como um personagem dentro de um gigantesco filme, cercado por mistérios de todos os lados, onde alguém, do outro lado, tentava me vencer ou, mostrar-me alguma coisa a todo custo.

Mesmo receando tudo isso, de forma inexplicável, eu continuava me sentindo muito bem.
Olhando para toda a costa que se seguia a minha frente, uma negritude, acompanhada dos sons característicos da mata, faziam a trilha sonora daquele filme. Em vão, eu procurava ao redor por alguma luz, algum sinal de vida humana.

Mas nada, absolutamente ninguém, parecia estar comigo desfrutando de toda a aquela natureza.

Novamente sorrindo com toda a situação, jogo a cabeça para trás, tencionando a nuca, agora buscando não sei mais o que. De súbito, lembrei-me que a fome existia, e que, ainda naquele dia, eu perplexo com o lugar, e tentando me localizar, não havia feito nenhuma refeição. Mas, uma certa preguiça de descer, preparar algo, se equilibrava com a fome que eu sentia.

Eu sempre soube administrar bem a dor, a fome, e outras características que fazem parte da natureza humana. Como um eterno iogue, pratiquei durante muitos anos, o exercício de jejuar, tendo a frente, praticamente tudo o que eu desejasse comer. Assim, passar um ou mais dias sem colocar nada na boca, para mim nunca foi um martírio.

Ainda no convés, andando de um lado para outro, me deparo com uma visão diferente:

Não pode ser!
Mas, será mesmo?

De repente, acredito por um instante ter visto uma pequena luz, a algumas milhas da costa. Devido ao eterno balanço do Mar, mesmo que realmente essa luz estivesse lá, ela apareceria piscando com o movimento da água. Fixei meus olhos no ponto onde eu acreditava ter visto aquela luz.

Mas ela insistia em não aparecer novamente. Eu poderia jurar tê-la visto, amarelada, fraca, como que em uma pequena e rudimentar embarcação. Ainda procurei pela minha pequena luz, mas não mais a encontrei.

Passaram-se mais alguns minutos, e novamente, acredito ter visto um outro indício de luz, ou quem sabe uma chama, só que dessa vez, na praia. Devido à escuridão, eu não era capaz de precisar a que distância – mais ou menos – ela estaria.

Só que, desta vez, essa pequena e longínqua chama, ou luz, não desapareceu mais. Com o vento, ou mesmo pela distância, eu podia perceber que, vez por outra, diminuía ou intensificava.
Não tive dúvida. Pulei no bote inflável e remei até a areia e comecei a ir de encontro aquela luz. Afinal de contas, há muitos dias eu não mantinha um contato com alguém, nem mesmo por rádio, ou telefone.

A cada passo que eu dava naquela direção, sentia que uma expectativa crescia conforme eu me aproximava. A areia se mostrava espessa, massageando novamente os meus pés, que afundavam um pouco dentro de sua textura. A brisa fria tocava o meu rosto, fazendo que minha face, às vezes ardesse.

A essa altura, eu já levantava hipóteses de quem, e como eu encontraria a pessoa responsável por aquela chama. Um pouco mais próximo, eu já podia ter essa certeza: tratava-se realmente de uma chama, uma pequena fogueira, talvez!?

...Será que eu seria bem recebido?

...Será que aquela pessoa poderia me dizer onde eu estou?

...Qual língua ela deveria falar?

...Será que reside aqui, ou estaria só de passagem?

...Poderia muito bem, estar apenas repousando, para continuar no dia seguinte!?

Continuei me aproximando lentamente. Aos poucos, eu já podia vê-lo melhor. Tratava-se de um velho. Cabelos longos, brancos como as nuvens em um dia ensolarado, mas que por culpa das chamas, parecia-me amarelados. Ele permanecia de costas para mim.

Mexia constantemente no fogo, e não demorou muito – pelo cheiro – que eu percebesse que ele preparava um delicioso peixe. Aquilo me fez lembrar por mais uma vez, que ainda não havia me alimentado naquele dia. Continuei caminhando em sua direção. Eu poderia jurar que até aquele momento, ele ainda não havia percebido a minha presença.

Preocupado em não assustá-lo, pela escuridão e o deserto que nos encontrávamos, resolvi, mesmo que ainda meio distante, cumprimentá-lo:

— Hy my friend!

Ele sem se virar, continuando no preparo de seu alimento, responde:

– Boa Noite Marco!

E eu, que ainda há pouco, estava preocupado com a língua que aquele homem poderia falar e, no entanto, além de falar o nosso bom português, ainda sabia o meu nome, e mais, sem se virar para trás, para ver quem lhe falava.

Mistérios e mais mistérios. Eles agora faziam parte integrante da minha vida. Não pude me conter. Circundando a pequena fogueira que assava um belo peixe, pude finalmente ver o rosto do homem que acabava de aumentar a minha curiosidade ainda mais.

Seus longos cabelos brancos, agora pareciam ainda mais amarelados, brilhantes com a luz das chamas. Uma barba também muito branca tornava sua fisionomia doce, sábia e serena.
Mesmo procurando me aproximar, ainda não conseguia vê-lo perfeitamente.

À noite, embora com o céu estrelado, me impedia de enxergar os seus olhos, os seus traços. Eu precisava satisfazer minha curiosidade, ou seria sufocado definitivamente por ela. De súbito, resolvi questioná-lo:

– Me desculpe senhor, mas, como sabias o meu nome?

O velho esboça um pequeno sorriso, respondendo:

– Eu vi em seu barco, quando o encontrei a deriva, antes de ancorá-lo nessa praia. Você dormia um sono tão repousante, que achei melhor não acordá-lo.

Agora finalmente, uma, pelo menos uma resposta surgia para minhas perguntas. Agora, eu entendia como fui acordar naquele lugar, com meu veleiro perfeitamente ancorado onde estava. Animado, com minha companhia e, principalmente com a resposta a minha pergunta, continuei questionando-o:

– Posso lhe perguntar onde estamos?

O velho levantou a cabeça, parou por alguns instantes de mexer no peixe, me olhou nos olhos, e voltou a abaixar a cabeça, mostrando-me de forma clara, que não desejava mais falar sobre o assunto. O fato de não querer perder meu novo amigo, fez com que eu me calasse por algum tempo.

Enquanto isso, ele continuava concentrado no assado, que a cada instante parecia mais saboroso.
Continuei observando-o. Por mais que eu procurasse não perturbá-lo, não resisti a mais uma pergunta:

– Importa-se que eu permaneça aqui?

– Claro que não! Você é meu convidado para o jantar.

Com essa resposta, eu sentia meu coração se animar, principalmente com a possibilidade de ficar ao seu lado. Eu estava há muitos dias sem falar com ninguém. Além do mais, durante esse tempo todo, acumulei muitas perguntas sem respostas.

E esse velho, mostrava através de sua fisionomia, saber muita coisa que ainda me enchia de dúvidas. O fato de poder estar ao seu lado, quem sabe, ser um amigo, poderia esclarecer um pouco desses mistérios.

Ele continuou calado, e eu também. Eu não podia deixar de ficar observando aquela enigmática figura. Suas roupas mostravam que ele era uma pessoa muito simples, quem sabe talvez um nativo, o que contrastava de forma radical, com sua desenvoltura, quando falava. Olhei para o Mar, percebi que algo balançava mais adiante.

Uma pequena embarcação, muito simples e rudimentar, ancorada, provavelmente era a luz que eu havia visto no Mar, quando rumava para essa praia.

Algumas pedras compunham aquele cenário. O Velho retirou do fogo as tiras de bambu com o peixe entre elas, enfumaçando, com um cheiro que castigava qualquer estômago faminto. Ele colocou-a sobre uma das pedras, sobre folhas de bananeira, e de forma gentil, começou a me servir.

Engraçado, aquele era o jeito que eu mais gostava de preparar um bom peixe.
Confesso que todo aquele meu controle, em relação à fome, a dor, esvaiu-se do meu corpo, fugindo como um animal assustado. Agora, eu era um irracional, faminto, guiado pelo instinto da sobrevivência.

Comecei a comer aquele peixe, e tinha que admitir: não era por causa da fome que eu sentia, mas aquele peixe foi o mais delicioso que já coloquei em minha boca. Eu o comia com tanto prazer, que me preocupava até mesmo em não parecer um selvagem.

O bom senhor, sentado de cócoras na areia, fazia sua refeição de forma calma e serena. Agora, eu não desejava falar, fazer perguntas. Eu só queria comer, satisfazer as necessidades do meu corpo.

Vez por outra, eu olhava para o velho, e ele, às vezes se portava, como se eu nem estivesse ali. Ele continuava comendo, com os olhos voltados ao escuro horizonte, passando a mim a impressão de estar muito longe daquele momento.

Por mais que eu já conhecesse pessoas nesses quase 50 anos de vida, ainda assim, eu nunca me deparara com alguém tão estranho, misterioso.

...Aquele homem, de roupas simples, aparentando uns 80 anos ou mais, de poucas palavras, encontrou minha embarcação à deriva, entrou em minha cabine, me encontrou dormindo. Para minha sorte, ancorou de forma segura meu veleiro, e sem tocar em nada, desapareceu...

...Eu, em meu desespero, só, e sem entender nada do que me acontecia nesses últimos dias, tive que acabar localizando-o. Agora, com um caminhão de perguntas na ponta da língua, eu procurava me conter, para não ser desagradável...

À noite prosseguia. Eu podia sentir aquela fresca brisa, agora se transformado em um vento gelado, convidando-me a um abrigo. O velho terminou de comer. Levantou-se. Com a mesma tranqüilidade com que comia, caminhou até o Mar. Abaixando-se, lavou as mãos, depois o rosto.

Com o corpo totalmente ereto, voltado para a imensidão escura do Mar, contemplou por mais alguns instantes tudo aquilo, jogou a cabeça para trás, olhando as estrelas, o universo. Com as duas mãos, ajeitou os cabelos para trás, e voltou caminhado em minha direção. Depois de horas que estávamos juntos, pela primeira vez, ele, me dirigiu a palavra:

– E então, gostou do jantar?

Eu, animado por sua iniciativa, mais do que depressa afirmei com a cabeça, dizendo nunca ter provado um peixe tão delicioso. Ele sorriu. Um sorriso triste, que mais parecia querer me agradar.

Com essa retomada de dialogo, me animo em perguntar-lhe novamente, se ele sabia onde estávamos. Ele olha firme para mim, devolvendo a pergunta:

– Onde você acha que está?

Agora era eu quem abria um leve sorriso descontraído, respondendo:

– Senhor, eu estou no Mar, navegando rumo ao norte, por quase um mês. Durante esse percurso, acredito que, mais precisamente nesta última semana, perdi a comunicação dos rádios, do telefone por satélite. Minhas bússolas, não conseguem mais apontar para o norte de forma confiável. E o meu instinto de navegador, se perdeu como se eu estivesse completamente embriagado.

O velho encheu os pulmões de ar, soltando-os rapidamente, como que em desagrado com que acabara de ouvir.

– Você enrolou, enrolou, mas não respondeu a minha pergunta. Onde você acredita estar?

Mesmo não apreciando muito a forma com que ele fez essa colocação fria, direta, eu me sentia obrigado a admitir que ele estava certo. Contornei, contornei e acabei não respondendo a sua pergunta. Quantas vezes fazemos exatamente isso em nossas vidas? Principalmente quando não desejamos responder, assumir uma posição definitiva.

– O senhor tem razão! Na verdade, eu não faço a menor idéia de onde estou. Para lhe ser sincero, às vezes eu acredito estar no Triângulo das Bermudas, e ter sido transportado para uma outra dimensão.

Outras vezes, devido as enormes manchas escuras que circundaram sobre o meu barco durante dias de forte nevoeiro, creio ter sido abduzido – enquanto dormia – por seres extraterrestres. E, por fim, quando experimento o sabor de toda essa beleza e encho o meu peito com esse ar puro, e me sinto tão bem, mas tão bem, como nunca me senti antes.

Ai então, eu acredito que graças a uma vida idônea, agora fui presenteado com um passaporte para o paraíso, não fazendo mais parte do mundo dos mortais.

Antes mesmo de terminar, percebi que o velho começava a rir, balançando com a cabeça de forma – ironicamente – negativa. Acabei entrando no clima e rindo de minhas hipóteses.

– Pela sua expressão senhor, eu acredito ter errado em todas as alternativas!

Lentamente, ele vai devolvendo a seriedade em sua velha face, dizendo que talvez eu tivesse errado, ou quem sabe acertado a todas. O que importa? Dizia ele. Agora quem fecha o semblante sou eu:

– Não importa saber onde estou?

– Por acaso, você sabe pelo menos quem você é? Quer saber tanto onde está, você sabe pelo menos de onde você veio? E mais...

– Espere, espere um pouco, já sei o que o senhor vai falar, "Eu não sei para onde vou" também.

– Essas perguntas não valem! Eu desconheço algum ser vivo que possa ter essas respostas. Eu posso não saber onde estou agora. Mas, misturar isso com filosofia, é ir longe de mais.

– Por que você deseja tanto saber onde está? Você mesmo acabou de afirmar que aqui, nesse pedaço de paraíso, você se sente tão bem como nunca se sentiu antes.

– Tens razão! Sinto-me tão bem aqui, como nunca me senti antes. Mas, tenho minha família, meus amigos... Preciso voltar!

– E por que você precisa voltar? Por acaso, teus filhos já não são capazes de cuidar de suas próprias vidas? Teus amigos, não guardam boas recordações de você? Ainda assim, você tem certeza que precisa voltar?

– Olha, sinceramente já não sei mais nada. Quando te encontrei, achei que poderia obter respostas às minhas dúvidas, mas dessa forma como falas, eu me sinto mais confuso ainda.

Ele sentado agora à minha frente, em uma pequena pedra, com os cotovelos nos joelhos, passando a mão na barba, diz:

– Não se preocupe. Você não é o único. Quase todos costumam entregar suas vidas à caminhadas, escolas filosóficas, religiões, para encontrarem as respostas que precisam. Mas poucos, apenas uma pequena minoria, tem a consciência de que as respostas que tanto procuram, só podem ser encontradas, quando nos voltamos para nós mesmos.

Durante toda essa jornada, os homens acabam se entregando a crenças tão absurdas, mas tão absurdas, que mais se parece com um retrocesso à mitologia de milhares de anos atrás.

– Bom; já está ficando tarde. Pense em tudo que falamos.

Eu desejava conhecer melhor o meu misterioso amigo, continuar com nossas conversas. Questionei-o quanto à possibilidade de nos encontrarmos no dia seguinte. Sua resposta foi simples e direta:

– Tenho que sair ao Mar ainda bem cedo, pois preciso pescar.

Diante dessa resposta, eu temia não poder vê-lo novamente, quando fui tranqüilizado com sua confirmação de que à noite, ele poderia estar de volta. Levantei-me. Batendo com as duas mãos nas nádegas, eu tirava os resquícios de areia de minha bermuda, ensaiando uma despedida, um agradecimento pelo delicioso jantar.

Depois de tê-lo feito, quando já estava me retirando, tive o ímpeto e a ousadia de perguntar se eu não poderia acompanhá-lo em sua pescaria. O velho olhou fixamente para mim, como quem procurava razões para fazer o que eu fazia, e responde:

– Você sabe que eu não posso te oferecer nem de longe, o conforto e a comodidade que você tem em sua embarcação. Caso desejas, conhecer a rispidez do trabalho de um pescador, e está disposto a acordar as 05:00h da manhã, tudo bem. Mas, tenha consciência desde já; uma vez no Mar, só voltaremos a terra firme, no final do dia, aconteça o que acontecer. Mesmo assim ainda queres ir?

– Eu sou um homem do Mar, e tudo nele, faz parte da minha vida.

O velho deu com os ombros, como que desejando falar: "se não tem jeito, então vamos".

...Ele não sabia que eu sempre tive um carinho muito especial por pescadores. Durante a minha vida, por inumares vezes, saí ao Mar com eles, saboreando os perigos, o castigo do Sol sobre o corpo...

...As mãos não acostumadas, completamente queimadas pelas cordas de náilon, mas, desfrutando o incrível prazer de estar sobre o Mar, tirando o meu sustendo do útero gigante que concebeu a minha própria vida...

...Não, nada disso me assustava. Mesmo aparentando ser uma pessoa acostumada às regalias de um confortável veleiro, estar em uma pequena e rudimentar embarcação, sem dúvida, me dava muito prazer...

Acabei me despedindo por mais uma vez. E carregado de uma alegria contagiante, caminhava pela noite escurara, afundando os pés na areia, de volta ao Gaivota.

Os poucos traços que à noite me permitiu ver do velho pescador, agora se faziam presentes em minha mente, junto com mais e mais perguntas, sobre quem poderia ser essa tão enigmática figura? O que tudo isso, esse contato, poderia significar para mim? Como um simples pescador poderia possuir esse discernimento e sabedoria incomum?

Assim que cheguei, conferi as amarras. Pelo volume com que a maré havia subido, era quase certo que amanhã, quando a água voltasse para o seio do oceano, o Gaivota, ficaria de barriga na areia. E isso poderia seria um problema.

Com uma bolina de quase 2,5 metros, minha embarcação, ficaria literalmente de lado, colocando em risco a consistência do casco. Melhor mesmo seria, puxá-la mais mar adentro, e ancorar por lá.

Ainda deitado, eu não conseguia adormecer. Mesmo tendo encontrado alguém que – aparentemente – conhecia bem aquele lugar, eu ainda continuava sem respostas às várias questões obscuras. Eu sentia que no dia seguinte, passando todo o dia ao lado do velho, eu poderia começar esclarecer essas perguntas.

O Gaivota balançava pouco. Mesmo não existindo uma lua naquele lugar, agora eu podia perceber um pouco de luz que entrava com certa dificuldade pelas escotilhas de acrílico. Virava-me de um lado para o outro, tudo parecia me incomodar. Eu estava inquieto. Pensava na minha família, sem noticias a mais de uma semana.

Pensava nos meus amigos, a imagem do velho, o pouco que pude ver dele, vinha e desaparecia de minha mente constantemente. Com certeza, eu não conseguiria adormecer naquela noite, caso não me entregasse aos teclados do meu pequeno computador e nele, registrasse pelo menos, mais algumas folhas de tudo que eu estava vivenciando naqueles dias.
Uma questão latejava em minha mente de forma soberana:

Quanto respondi à pergunta que ele havia feito, nas várias possibilidades que se passava sobre minha mente, agora eu podia ver o ridículo na qual me expus. Realmente ele estava certo. Se repararmos bem, o ser humano, mesmo depois de 20 séculos de história, ainda precisa estar sempre criando deuses, como se ainda vivesse em completa obscuridade científica.

Ele tinha razão em fazer uma analogia direta com a mitologia. Nesse período, tentando explicar os diversos fenômenos da natureza, o homem atribuía a responsabilidade aos deuses, como o deus Thoor, que batia o seu martelo nos céus, provocando os raios e os trovões. Ao deus Netuno, que controlava as marés e assim sucessivamente.

De certo, muito ainda deveríamos descobrir, para se justificar muitos dos fenômenos que ainda não se tem explicação, mas se entregar ao mesmo tipo de devaneio, como a civilização dos deuses, semideuses e heróis da antiguidade greco-romana, realmente se mostrava muito estranho.

Mas, depois de algumas horas, depois de muitas linhas, o sono foi surgindo como do nada, se apoderando dos meus sentidos.

Por volta das 04h30min, acordei assustado, preocupado com o meu encontro. Levantei-me sem titubear. Fazia frio. O frio característico das madrugadas. Vesti uma roupa, e mais do que depressa, me coloquei no caminho onde estive com ele na noite anterior.

Ainda não havia nenhum sinal do nascer do novo dia. Por mais uma vez, os pensamentos me acompanhavam, fazendo surgir com eles, à esperança quanto às minhas dúvidas.

À medida com que eu me aproximava, já podia – mesmo no escuro – ver o velho homem do Mar, preparando sua embarcação. Não sei explicar direito, mas, ao vê-lo, uma alegria invadiu todo o meu ser.

Ao me aproximar, cumprimentei-o com um bom dia. Ele olhando para mim, responde apenas com um sinal de cabeça. Não me decepcionei. Eu não esperava mais do que isso mesmo, pelo que eu começava conhecê-lo.

Carregando uma pequena bolsa, com uma bússola, um boné, meu cachimbo, água e algum alimento desidratado, perguntei em que eu poderia ajudá-lo, ele já estava terminando de embarcar o material necessário, me chamando, através de um sinal, para subir a bordo.

Os primeiros sinais do novo dia finalmente surgiam. Longe, no horizonte, aquele tom azul um pouco mais claro, me dizia isso. Já embarcado, com o pequeno barco batendo de proa nas ondas, finalmente rumávamos para Mar aberto.

Eu tinha nas mãos, a corda da vela mestra, enquanto meu velho amigo, olhando fixamente à frente, segurava a pequena cana do leme.

Respirei fundo. O ar gelado entrou pelas minhas narinas, provocando um certo desconforto. Olhando a ponta do mastro, vi o que poderia ser, a última estrela a brilhar no Céu, um Céu que voltava a cena em passo lento, ficando cada vez mais azul.

Sem dúvida, hoje teríamos mais um maravilhoso dia. Meu amigo continuava rumando Mar adentro, e o dia, mais uma vez, nos agraciando com toda sua beleza e esplendor.

Resolvi quebrar o silêncio, procurando ser agradável, mencionei sobre a performance da pequena embarcação, em vencer as correntes e as ondas da enseada onde estávamos. Ele sorriu, sem nada dizer.

A luz do dia permitia-me agora, vê-lo com mais clareza. Realmente, aquele rosto me era muito familiar. Suas rugas, entranhadas na carne, agora iluminadas pelo Sol, me diziam a experiência, a vivência escondida por de trás daquela frágil criatura.

Seus olhos castanhos, tristes, sombrios, pareciam guardar toda ternura e proteção, que um indefeso tanto necessita. Seus cabelos brancos, refletindo ao Sol, pareciam fios de ouro, coroando toda a sapiência adquirida, a dureza de uma jornada ríspida. Sim, que ser humano interessante.

De forma inexplicável, eu conseguia me sentir tão bem, que chegava mesmo a duvidar se tudo aquilo era ou não real. Pego o meu cachimbo, percebo que ele me olha de maneira estranha. Questiono-o se eu podia fumar, ele balança a cabeça em sinal afirmativo.

Já estávamos navegando há pelo menos duas horas, e só agora me dava por conta, que ele não havia dito nenhuma palavra até então. De forma involuntária, pergunto o seu nome. Ele me olha novamente, volta o seu olhar para o horizonte, e sentado, ali na popa da embarcação, com a mão direita segurando o leme, responde:

– Eu já tive muitos nomes. Pessoas de diferentes lugares me chamam como querem. Eu não me importo. Qual é o nome que você acha que devo ter?

– Me desculpe, mas eu não entendo! Todos temos um nome, o qual zelamos por ele. No entanto o senhor não faz conta nem de qual nome posso chamá-lo!?

O velho sorriu com mais expressão, continuando:

– Eu te fiz uma pergunta! E você mais uma vez, enrolou e não me respondeu: Qual o nome que você acha melhor para mim?

Sentia-me confuso. Naquele instante nenhum nome passava pela minha cabeça. Além do mais, eu estava tentando raciocinar sobre a sua colocação, sobre os valores que até então sempre carreguei, e aquele velho parecia destruí-los tão facilmente.

Mas, eu não podia – como ele acabara de dizer – enrolar mais uma vez. Eu tinha que lhe dar um nome.

– Mestre! Sim! Mestre! É assim que eu te vejo. É assim que desejo lhe chamar!

Percebo que ele balança a cabeça em sinal de negação, enquanto sorri diante das minhas palavras. Eu também acabo me descontraindo com o clima formado. Ele passa a mão no cabelo, enquanto que a outra continuava segurando a cana do leme, olha para cima, quem sabe procurando pelo Céu, e diz:

– Isso não quer dizer que a partir de agora, eu terei que responder todas as suas perguntas?

Não foi difícil para ele perceber que, se eu o via como um mestre, era porque eu sabia que ele tinha todas as respostas que eu desejava.

Mais algumas milhas à frente, ele pede que eu desça a vela, deixando o barco quase que a deriva. O Mestre ainda segurava o leme, circundando de um lado para outro, olhando para a água, para o Céu.

Acreditei que ele procurava por um ponto, um lugar especial, um lugar que já deveria ser do seu conhecimento. Com a pequena embarcação agora totalmente à deriva, eu podia senti-la subindo e descendo, cerca de 1 metro, mais ou menos.

Ele olha para mim, como que esperando um mal súbito de minha parte, mas com um sorriso de extrema felicidade, digo-lhe que estou bem, maravilhosamente bem.

Ele se levanta, esticando aquele velho corpo, que ainda se mantinha firme, forte, sustentando toda sua sabedoria. Com alguma dificuldade, procurando se equilibrar, ele caminha até a proa, pega uma velha âncora, amarrada a uma corda de náilon azul, e a joga ao Mar.

Pela quantidade de corda usada, calculei que a profundidade do local, não ultrapassava os 50 metros. Pouco, por estarmos totalmente fora da costa.

O Mestre entra na pequena cabine, eu o escutava revirando coisas, quando volta com algumas linhas nas mãos. Oferece-me o material que desejasse usar. Ascendendo o meu cachimbo novamente, disse-lhe que preferia observar primeiro, aprender um pouco, para depois tentar.

Era obvio que eu sabia pescar. Passei boa parte da minha vida fazendo isso. Mas, diante de um homem como aquele, os conceitos do que era fazer bem uma determinada coisa, poderiam facilmente ser mudados. Além do mais, observar, me parecia a melhor coisa que eu poderia fazer naquele momento.

...Na noite anterior, tentando deduzir onde eu estava, Pensei novamente na possibilidade de estar morto. Eu já havia lido, eu já ouvira por diversas vezes, certos posicionamentos religiosos, que defendem que quando morremos, passamos por um período de desinformação, e que por muitas vezes, precisávamos de alguém, algum “Espírito” um pouco mais evoluído, para nos posicionar dessa nova condição.

E esse velho, bem que poderia ser uma dessas pessoas, cuja missão era me receber aqui nesse paraíso, e me conduzir aos devidos ensinamentos que ainda me faltavam. Pelas condições que eu me encontrava, não só essa possibilidade passava pela minha cabeça, mas muitas outras, também faziam sentido.

Por isso, deduzi que o melhor mesmo seria observar, e observar muito, e na medida do possível questioná-lo a respeito dessas dúvidas...

O velho preparou alguns anzóis, e antes de arremessá-los ao Mar, voltou para a cabine, saindo de lá com um cachimbo aceso na boca. Olhou-me nos olhos e sorriu. Eu, levantando as sobrancelhas, me senti feliz pela coincidência.

Felizmente, tínhamos mais algumas afinidades. Ele se senta próximo à proa, e joga três linhas na água; uma na frente, outra a estibordo e a última a bombordo. Prende as linhas em pequenos pinhões e, segurando seu cachimbo, arremete o olhar ao infinito.

Percebi que naquele instante, ele não estava mais ali. Procurei não perturbá-lo. Também com o meu cachimbo na boca, sentei-me na popa, procurando aproveitar ao máximo, esses momentos sublimes.

Mesmo sem fazer a mínima idéia de onde estávamos, eu continuava me sentindo extremamente bem. Nos encontrávamos em um lugar, onde jamais eu teria condições de descrevê-lo. Eu tinha uma companhia esquisita, mas eu sentia, eu sabia que aquele velho, que dentro daquela cabeça branca, havia muito conhecimento, muitas respostas habitavam serenamente.

Depois de algum tempo, ele se levanta. Desde que jogou as linhas na água, não mais tocou nelas. Caminha de popa a proa por algumas vezes, e me questiona se tenho fome. Engraçado; só agora percebia, que embora eu não tivesse comido nada, eu não sentia nenhuma fome.

Alias, naquele lugar, parecia que eu era desprovido de tal necessidade. Ontem à noite, quando comemos aquele delicioso peixe, o fiz mais pelo prazer de comer, do que propriamente pela necessidade física. E, com ele ainda em pé, à minha frente, aguardando por uma resposta, gesticula com a mão direita, como que desejando dizer: "E então?".

Voltei minha atenção a ele, respondendo que não, agradecendo, arriscando-me a uma colocação:

– Senhor, por que aqui nesse lugar, eu não sinto fome? Se às vezes eu como alguma coisa, o faço pelo simples prazer de comer. Acho muito estranho isso.

Ele sorriu. Como quem sabia realmente do que eu estava falando, mas ainda – por algum motivo – preferindo não responder diretamente, se manifesta:

– Você ainda possui, muito dos hábitos, dos conceitos que o meio, que a maioria coletiva impregnou em sua vida. Até mesmo quem você é, suas necessidades físicas e espirituais, ainda são ditadas por essas imposições do meio.

Por vezes, enquanto ele falava, eu tinha a impressão, de que eu já o conhecia há muito tempo. Agora, reparando melhor, aquele homem tinha mais ou menos a minha estatura. Seu corpo, esguio, muito lembrava o meu.

E sua postura, calado, reflexivo e quase sempre divagando longe, contribuía para que eu pudesse jurar que eu não só o conhecia, mas sim, o conhecia muito bem. Ele continuou falando por mais algum tempo.

Vez por outra, parava, arremetia seu olhar ao infinito, puxava uma, duas, três vezes seu cachimbo, e aos poucos, meio sem jeito, envolto a fumaça, tentava voltar onde estávamos. Sua serenidade acabava me contagiando, tirando de mim toda preocupação, toda aquela curiosidade de saber onde eu estava ou coisa parecida.

Depois de alguns minutos, ele começou a puxar uma das linhas. Percebi que algo havia na outra ponta. De forma calma, e sabendo muito bem o que fazia, ele aos poucos vinha trazendo a sua presa. Levantei-me de onde estava, dirigindo-me até perto dele. Com a fisionomia séria, ele continuava com a linha nas mãos, procurando sentir o que trazia.

Percebi que à medida com que sua presa aproximava-se, ele empenhava mais força. Uma luta de estratégia e paciência começava de forma encantadora. Por vezes, ele parava, voltava a apenas segurar a linha. Em outras vezes, soltava-a, como que liberando um pouco seu oponente. Senti que aquilo poderia levar horas.

Ele se sentou ao meu lado. Olhando em meus olhos, senti que desejava dizer: “é preciso paciência”. E eu, balançando a cabeça em sinal afirmativo, concordava com sua suposta afirmação. Sim. Em tão pouco tempo, eu já sentia que nos entendíamos muito bem.

Ele voltava seu olhar a água. Pede que eu pegue a outra linha, aquela que estava do lado oposto da embarcação. Assim que o faço, percebo que algo se mexe de forma brusca do outro lado. Sim, agora, eu também tinha um desafio. Uma certa adrenalina acelera o meu coração.

Ele franze as sobrancelhas, passando-me coragem e firmeza com um leve movimento de cabeça. Eu já havia pescado antes, e acreditava saber o que fazia. Mas, aquela linha, puxava com uma força que até então eu não havia experimentado.

O meu amigo pescador, segurando a sua linha, mais prestava a atenção em mim do que nele mesmo. Vendo meu esforço em não perder o meu peixe, ele sugeriu que eu enrolasse algo na mão: um pano, uma camiseta, qualquer coisa que pudesse protegê-la da ação da linha de náilon.

Prendi a linha em uma ponta de verga, e rapidamente tirei minha camiseta enrolando-a na mão direita. Voltei a segurar aquele fio que me ligava a minha primeira grande lição junto a um exímio pescador.

Eu estava muito habituado a pescar com varas, carretilhas, molinetes, que faziam boa parte do trabalho, que agora, eu tinha que fazer apenas com as mãos.

...O Céu se mostrava com um tom de azul como nunca eu havia visto até então. Mesmo com toda minha concentração voltada para aquela linha, eu não podia deixar de perceber toda a vibração que a natureza irradiava sobre nós.

O Sol, com um brilho todo especial, aquecia o meu corpo, sem queimar, misteriosamente as minhas costas entregue a seu prazer. Algumas nuvens desenhavam entre si, figuras conhecidas, que se transformavam com minha doce imaginação.

A brisa surgia cada vez que eu sentia o calor me incomodando. Mágico! Tudo muito mágico e extremamente envolvente. Nessas horas, eu era capaz de jurar a mim mesmo, que jamais deixaria aquele lugar.

Minha companhia, dentro de toda sua introspecção, tornava-se um retrato vivo de tudo que sonhei na vida. Por vezes eu era capaz de afirmar que eu tinha diante dos meus olhos a minha própria imagem refletida há muitas décadas à frente...

Mas, um forte puxão na linha, me trazia de volta àquele momento. Minha presa, do outro lado, dava mais uma vez sinal de vida. E que vida!

Sentado, eu procurava um lugar para apoiar meu pé esquerdo, me preparando para fazer mais força, caso fosse necessário. Enquanto isso, o mestre, mantinha toda sua atenção voltada a sua linha, continuando com sua luta particular.

Por instantes, eu tinha a impressão de que ele se esquecera de mim. Sua concentração era total. Um homem com um único e sublime objetivo: tirar seu alimento dos braços da mãe natureza. Eu o observava calmamente, e a cada instante, o admirava mais e mais.

Às horas continuavam passando. Como uma lição do senhor de todos os tempos, eu tinha que dominar minha paciência junto à determinação. Senti, de forma clara e evidente, que eu ainda poderia extrair muito ensinamento daquela simples ação de pescar.

A minha vida inteira passava diante dos meus olhos, fazendo uma crescente analogia com o que eu estava fazendo. Percebi que o Sol já começava a se deitar atrás de nós. Pelos meus cálculos, teríamos ainda mais algumas horas para voltarmos. Seria tempo suficiente para conseguir tirar o meu peixe do Mar?

Dúvidas... A eterna incerteza que se fazia sempre presente. Aliás, pensando melhor, eu percebia de forma cada vez mais convincente, que nossas vidas não passa se não de eternas dúvidas que juntas, parecem reger essa grande orquestra da qual fazemos parte.

Sempre que os meus pensamentos divagavam um pouco mais longe, meu amigo, oponente, me dava alguns puxões, me trazendo de volta à outra questão; a minha própria realidade. Sinto que até mesmo aquele peixe, procurava me ensinar de que, só podemos viver a vida, se estivermos no momento presente.

O mestre, ainda concentrado, aos poucos vinha trazendo o seu peixe. Talvez ele, já tivesse aprendido a grande lição, de que toda a nossa história, só pode ser construída, calcada em pequenos e sublimes momentos.

E pela expressão daquele velho pescador, naquele instante, toda sua vida se resumia em tirar seu peixe dos braços do oceano. Eu podia jurar, que naquele instante, no mundo, não existia mais nada para ele se não o que ele estava vivendo. E eu sabia. Eu tinha que exercitar esse poder de concentração, se ainda quisesse poder viver mais um pouco.

Tentei dedicar toda a minha atenção naquele momento, e percebi que eu também poderia começar a trazer a minha presa. Ela, no entanto, quando se sentia ameaçada, retrucava de pronto, tentando desvencilhar-se do anzol.

Eu dava-lhe alguns metros de linha, e continuava puxando em seguida. Imediatamente, me vejo arremetido mais uma vez à minha própria história. Quantos objetivos eu desejei em minha vida, e eu, certamente me cansei primeiro do que eles?

Sim, um paralelo perfeito se fazia presente. Na vida, por vezes pude sentir que do outro lado da linha, estava exatamente o que eu desejava. Sei que também briguei muito. Tentei durante meses, anos, trazer essa minha presa, mas agora eu tinha que admitir: por vezes, eu me cansei primeiro.

E aqueles objetivos, terminaram me vencendo. Eu estava certo, quando logo no inicio daquela simples pescaria, muito ensinamento poderia ser absorvido.

Mas, dessa vez não! Minha determinação crescia de forma assustadora. Eu estava plenamente convicto que traria aquele peixe. Ele, a essa altura, significava para mim, mais do que a minha própria necessidade de viver. Um desafio. Um ensinamento que trazia consigo, um sentido único: vencer, ou ser derrotado mais uma vez.

À minha esquerda, o mestre já mostrava estar quase vencendo o seu desafio. Seu peixe, já começava a pular para fora do Mar, mostrando sua prateada forma, brilhando com o pouco Sol que ainda enchia de luz aquela pintura. Eu podia sentir sua expressão de alegria.

Eu tinha certeza de que, não poderia existir momento de maior felicidade para um homem, do que saborear a sua própria vitoria. Por vezes, o seu peixe, já pranchava sobre a água, dando-nos a impressão de derrota.

Meu mestre continuava puxando firme, mas com uma delicadeza cirúrgica. Aqueles que pesam, que esses homens são brutos, ríspidos, estão completamente enganados. Não demorou mais do que alguns minutos, para ele trazer, de forma definitiva, aquela belíssima espécime até junto ao barco.

E como era grande. Sem dúvida, colocá-lo dentro do pequeno barco, seria um outro desafio. Mas ele, dotado de toda sua experiência, continuava mostrando saber muito bem o que estava fazendo.

Procurei voltar toda minha atenção ao que eu estava fazendo. Devido ao fato de sentir que a minha linha ainda se esticava muito, não era difícil deduzir, que o meu outro amigo o peixe, deveria estar ainda a muitos metros de distância.

Tudo isso me dizia que, a minha luta, estava apenas começando. De súbito, percebo a embarcação adernar a estibordo de forma violenta. Quando me virei, pude ver ao meu lado, o enorme peixe já embarcado, se debatendo. Sim. Aquele velho marujo sabia muito bem o que estava fazendo.

Ele olhou para mim. Um sorriso tomava conta de todo seu semblante. Eu estava diante da realização de um homem. Um simples mortal que se dedicou, que lutou quase o dia inteiro, para vencer e sentir com isso, o sabor que desfrutava agora.

Mesmo sem ele dizer uma só palavra, estava estampado em sua face, que na linha do tempo, ele acabara de escrever mais uma vez, o registro que justificava sua existência. Conhecer; aprender; usar toda sua determinação e finalmente vencer.

Foi quando comecei a me questionar se conseguiria trazer o meu peixe antes que a noite definitivamente caísse. Noto que o velho, radiante, entra na pequena cabine, voltando de lá com seu cachimbo aceso entre os lábios. Sentou-se ao meu lado, como que indagando: “E agora?” “É a sua vez!”.

A minha linha continuava esticada. Vez por outra, uma puxada mais forte, me fazia soltá-la um pouco, temendo arrebentar.

A cada instante, a luz diminui mais e mais. Contando o tempo que levamos para chegar até aquele local, eu já acreditava que voltaríamos em companhia da noite. Meu amigo pescador, sentado ao meu lado, tirando o cachimbo da boca, procura me confortar, dizendo não haver pressa, eu poderia dispor de todo o tempo necessário para vencer o meu desafio.

Troquei a linha de mão. Aliás, eu já vinha fazendo isso nas últimas horas. É evidente, que o cansaço de forma lenta tomava conta de todo o meu corpo. Por mais que eu conhecesse sobre pescaria, não podia supor quanto tempo ainda levaria. Mais uma vez, aquela impressão de que eu estava recebendo, com tudo isso, muito ensinamento continuava, e agora de forma mais latente ainda.

A paciência, a determinação, a percepção, a concentração e toda a sensibilidade se integrando ao momento, se tornavam comportamentos e atitudes imprescindíveis para a minha vitoria.
Enquanto isso, eu me preocupava com o velho, com o momento, com o meu aprendizado, deixando assim, uma parcela bem pequena de toda a minha atenção para o peixe.

Errado! Tudo errado! Para o meu sucesso, eu tinha que dedicar toda atenção à pescaria. Eu pude ver ainda há horas a trás, o velho fazendo o mesmo, e com muita propriedade. Sim. Percebo que teria de varrer dos meus pensamentos, tudo aquilo que não pertencesse aquele momento.

E assim, como em um exercício de ioga, fui jogando em um poço sem fim, todos os pensamentos e imagens que surgiam. Um a um, foram desaparecendo dentro do ébano que se formava dentro desse poço. Comecei a puxar mais a linha. Agora, com a sensibilidade a flor da pele, eu podia sentir mais, quando eu deveria soltá-la ou não.

Eu continuava recolhendo a linha. Tomado por um susto, percebo que meu amigo peixe salta para fora d'água à poucos metros do barco. Sim, estava próximo muito próximo. Foi somente nesse instante, que percebi o dia amanhecendo. Eu havia me dedicado tanto, aguçado a concentração a ponto de não perceber que a noite passara diante dos meus olhos.

O velho, já não estava mais ao meu lado. Quem sabe, descansava dentro da pequena cabine, enquanto aguardava pelo desfecho da minha história. Lembrei-me que agora, mais do que nunca, eu não poderia perder a concentração no que estava fazendo. Eu sabia que, de toda a pescaria, esse era o momento mais crítico. Aquele peixe usaria toda força que ainda lhe restava, para tentar escapar no último instante.

Mais um salto. Por mais uma vez, tive que soltar a linha. Quando o peixe se colocava para fora d'água, ele dava um puxão que sem dúvida, se a linha estivesse esticada, com certeza arrebentaria. Quando estamos pescando com molinetes ou mesmo carretilhas, o próprio equipamento se encarrega em fazer esse trabalho, de forma a não romper a linha. Mas, apenas com as mãos, a concentração deveria ser bem maior.

O Sol começava ofuscar minha visão. Percebo que os meus óculos, devido à maresia, encontravam-se completamente embaçados. Tirei-os. Sim por alguns instantes, senti perder um pouco a visão. Mas, logo em seguida comecei a recuperá-la.

De forma impressionante, percebi que eu estava enxergando cada vez melhor. Cosei a cabeça, enquanto que a outra mão permanecia ocupada com a linha. Por que eu estava enxergando melhor agora sem os meus óculos?

Durante toda a minha vida, eu precisei olhar o mundo através de suas lentes, e agora, no entanto, a olhos nus, eu podia ver melhor do que antes. Por mais uma vez, eu percebia que não podia permitir que a concentração se esvaísse. Agora mais do que nunca, todo o esforço de quase 24 horas, era sem duvida colocado à prova.

Lembrei-me que na vida também era assim. Por vezes cheguei muito perto dos meus objetivos, sentindo-me até mesmo com as mãos nele. E, de repente, por um excesso de confiança, ou quem sabe por falta de um último esforço, deixara escapar e assim, terminava morrendo na praia.

Agora, eu estava decido a não mais ver esse filme rodar na tela da minha própria vida.
Mais alguns instantes, e já podia ver o meu peixe começar a pranchar em direção ao barco. Sim! Eu venci!

Mas, em vez de embarcá-lo, resolvi tentar tirar o anzol de sua boca, com ele ainda dentro d’água. Aquele belo espécime, também mostrava uma exaustão tão grande, que permanecia imóvel ao lado da embarcação. É, eu pretendia soltá-lo. Eu já havia concebido todos os ensinamentos que aquela pescaria poderia ter me dado.

Já tínhamos um enorme peixe para satisfazer nossas necessidades, e afinal de contas, aquele guerreiro, ainda preso a minha linha, merecia voltar às profundezas de seu lar.

Percebo a presença do velho atrás de mim. E, prevendo seus pensamentos, ele estaria aprovando a minha atitude. Finalmente, com a ajuda de um alicate, consegui soltá-lo e confesso: eu nunca havia visto uma criatura marinha tão magnífica.

Lentamente, tentando se recompor, ele começa a partir, de forma desordenada, cansada, como que agradecendo pelo meu ato de misericórdia. Sinto um leve tapa em minhas costas, como o prêmio de quem fez o que deveria. O velho começa a levantar a vela principal, me pedindo para puxar a âncora. Finalmente voltávamos para a costa.




O Mestre já trabalhava, limpando o seu enorme peixe, enquanto o fogo saltitante crescia. Mantínhamo-nos em silêncio. Mas também, para que falar, eu já o entendia tão bem, tínhamos tanto em comum, que não era difícil eu saber os seus pensamentos.

Peguei algumas tiras de bambu, e comecei a trança-las com algumas postas do peixe, que iam sendo cortadas por ele. Notei que o velho me observava com o canto dos olhos, e eu sabia o porquê. Eu estava preparando aquele assado, exatamente como ele o faria.

A tarde avançava calma e tranqüila. Algumas nuvens mais a leste, e o aumento considerável da umidade do ar indicavam que, se o vento continuasse na mesma direção, talvez antes do anoitecer, teríamos chuva. O cheiro delicioso do peixe surgia aos poucos no ar, como um atentado ao pecado da gula. Por mais uma vez, lembrei-me que não comíamos a mais de 24 horas, e o que continuava me impressionando, era o fato de não termos fome.

Aquela refeição, por mais uma vez, teria a pura conotação do prazer. Um detalhe estranho, insistente, que por usa vez, continuava me enchendo de dúvidas e mais dúvidas. Assim que o Mestre terminou com o que ainda sobrara da sua belíssima pescaria, agachou-se, recolheu seus restos, e caminhou até a praia, onde eu já sabia: devolveria ao Mar, para que nada, absolutamente nada fosse desperdiçado.

Muitas vidas marinhas, com certeza, se alimentariam do que havia sobrado. Eu tinha tanta certeza, porque seria exatamente o que eu faria, ou seja, o que sempre fiz.

Eu o observava a distância. Ele se lavava, com um profundo respeito ao Mar, a natureza. Depois de contemplar o horizonte, volta tranqüilo, com a mesma fisionomia triste e serena. Naquele momento, eu podia jurar mais do que nunca – por todas nossas semelhanças – que éramos a mesma pessoa.

Talvez por uma questão de fuso do tempo ou algo ainda maior, que a minha concepção permitisse. Eu continuava no preparo do assado, procurando disfarçar a atenção voltada àquela enigmática figura, quando ele se aproximou, olhou para o fogo, de forma contemplativa, e com mais um pequeno tapa em minhas costas, diz:

– É, o cheiro está bom! Você também prece saber preparar um bom peixe!

Esbocei um leve sorriso, convicto que isso era evidente. Pelo menos naquele instante, eu acreditava fielmente que éramos a mesma pessoa. Tomei alguns goles de água-de-coco, enquanto continuava virando a grade de bambu com os deliciosos pedaços do peixe.

Sentamos. Comemos prazerosamente em completo silêncio. Vez por outra, uma rajada de vento mais forte, fazia-me lembrar, que a chuva não tardaria em nos agraciar com toda sua beleza e magia. Como estávamos relativamente próximos ao Gaivota, nada melhor e confortante, que contemplarmos mais essa benção dos céus em seu interior.

E assim que acabamos, convidei-o subir a bordo. Ele parou por alguns instantes, observou os quatro cantos do mundo, e, certificando-se do que estava por acontecer, aceitou meu convite. Mal pisamos no convés, e os primeiros pingos cintilantes, começavam a cair de forma majestosa.

Descemos até a cabine. Minha embarcação, muito confortável, certamente nos proporcionaria uma noite tranqüila. Verifiquei as baterias, e de forma inexplicável, mantinham-se com a carga máxima. Afinal de contas, há dias, eu não ligava o pequeno gerador. Mas, como eu já estava me acostumando com as várias situações inexplicáveis, não dei importância a mais esse fato.

Tomei um delicioso banho de água doce, e sentados na pequena sala. Entre a mesa de instrumentos e a mesinha no centro, começamos a conversar.

O mestre me pareceu muito à vontade, muito mais do que o normal. Ainda intrigado com nossa incrível semelhança, decidi por impulso fazer um último teste. Eu tinha a bordo uma ampla coleção de CDs, logicamente os meus favoritos. Afinal de contas, aquela era a minha casa.

Sugeri a ele, que escolhesse um, para ouvirmos junto com a sinfonia que a chuva, a essa altura nos proporcionava. Ele me olhou profundamente nos olhos, como que desconfiando de alguma coisa, levantou-se, e foi até a prateleira onde os pequenos discos encontravam-se enfileirado.

Enquanto observava atento aos vários títulos, eu fiquei imaginando qual deles eu escolheria para ouvir naquele momento em especial. Devido a distância em que me encontrava, não pude ver qual ele escolhera.

O Mestre caminhou até o aparelho de som, e colocou o pequeno disco para rodar. Assim que os primeiros acordes surgiram no ar, um arrepio tomou conta de todo o meu corpo. Aquele violino fazendo a abertura, mostrando toda a excelência de Bach, seria exatamente o que eu escolheria para ouvir naquele instante. Sem perceber, estagnado pela surpresa, comecei a balançar a cabeça em sinal de negação.

Ele se senta à minha frente, e sorrindo, gesticula de forma positiva, talvez confirmando todas as minhas suspeitas. Joguei a cabeça para trás, passando as mãos no cabelo, mostrando toda – por mais uma vez – toda minha incerteza quanto a tudo.

Depois de mais alguns instantes de silêncio, ele se levanta, e começa a observar tudo que nos cercava dentro do ambiente onde estávamos. Meus livros, os poucos objetos de decoração, os meus cachimbos, enfileirados no suporte, e tudo mais. Ao se aproximar da pequena maleta de pintura, que quando aberta transforma-se num providencial cavalete, ele colocou sua enrugada mão sobre ela, e com os olhos fechados, suspira profundamente, como que inebriado por uma recordação gostosa e envolvente.

Sempre gostei muito de pintura a óleo. Ainda quando mais novo, cheguei, por um bom período, ganhar o meu sustento vendendo quadros, principalmente retratos de pessoas que os fazia em telas.

Observando-o assim, eu não tinha mais dúvidas. Ele já usufruíra inexplicavelmente de tudo isso. Mas como poderia? Como aceitar o fato de um homem estar diante dele mesmo em tempos, em épocas diferentes?

Por mais que eu sempre me permitisse à devaneios, por mais que eu soltasse a imaginação em cima das mais variáveis possibilidades que o universo me poderia dar, ainda assim, tudo isso mostrava-se muito obscuro à minha compreensão.

A chuva continuava caindo do lado de fora, produzindo uma harmonia perfeita com a música, com todo aquele momento. Pelas escotilhas de acrílico, eu podia ver pequenas gotas d’água, descerem majestosas, procurando se unir a sua fonte natural, o berço de toda vida. Por sua vez, o oceano, calmo e tranqüilo, nos embalava docemente em seus braços.

Por vezes eu já havia me questionado quanto a momentos em nossas vidas, que podemos considerá-los sublimes, e com certeza, esse era mais um deles.

Entre um gole e outro de rum e, tragadas de um bom fumo holandês, a noite prosseguia em sua interminável tarefa de fazer o mundo descansar, meditar sobre o dia passado, e refazer seus planos para o amanhã.

O sono, lentamente, saía de seu abismo silencioso, alçando-nos com suas garras irresistíveis, tentando nos carregar junto a ele. De forma sábia, cedemos. E, embalados pelo momento, viajamos mais uma vez, por seus caminhos encantados. Foi uma noite tranqüila, como os dias que se seguiam desde que aceitei obedecer às vontades do meu coração.

Logo pela manhã, aos primeiros sinais do novo dia, a melodia das gaivotas, tendo ao fundo o bramir de ondas quebrando nos arrecifes que protegiam aquela bacia, anunciavam ao mundo que era hora de despertar, continuarmos com as nossas caminhadas em mais esse pedaço do tempo.

Ainda deitado olhei à minha volta. Para minha surpresa, o Mestre já não se encontrava mais em sua cama. Subi rapidamente até convés. Ainda com os olhos ofuscados pela luz do Sol que começava a se levantar, pude vê-lo caminhando pela areia, contemplando tudo que a natureza podia lhe oferecer.

Eu sabia o quanto esse momento era importante para um homem. Eu mesmo, tinha o hábito de fazer o mesmo. Sentei-me no convés, e ainda observando àquela figura, deixei-me levar por mais esse instante. A vibração que toda aquela natureza produzia, era simplesmente algo indescritível.

O Sol levantando-se à minha frente, parecia ser o estopim de toda manifestação que se via. Pássaros, os animais marinhos, as árvores e até mesmo o Mar, se agitando num ritmo alucinante, mágico e muito, muito envolvente.

Depois de quase uma semana desfrutando de todo esse paraíso, pela primeira vez, senti a vontade de partir. Não que desejasse retornar, muito pelo contrário, queria seguir à frente. Àquela voz interna, tentava me dizer novamente que eu deveria seguir, seguir o meu caminho. Mas, agora, para onde?

Decidi descer, caminhar um pouco também. Quem sabe a areia sob meus pés, pudesse me ajudar a definir melhor as minhas decisões. Caminhando, imagens começavam a surgir como do nada, trazendo aos poucos lembranças da vida, dos parentes, dos amigos deixados em um outro pedaço do tempo.

Como eu não vinha mais fazendo os registros de tudo, dei-me por conta, de que já não era mais capaz de definir com exatidão, quanto tempo eu havia deixado o ancoradouro do Saco da Ribeira, e me colocado nessa viagem. Mas, para o meu próprio espanto, esses detalhes pareciam não me incomodar mais.

Eu sabia muito bem, que as pessoas mais próximas, poderiam estar preocupadas, mas por outro lado, uma certeza se fazia presente, de que, além delas estarem bem, o fato de não terem noticias minha, não deveria estar causando sofrimento a eles.

Decidi não procurar o Velho Mestre durante aquele dia. Talvez, na verdade, eu desejava mesmo, era refletir um pouco sobre tudo que conversamos, sobre a pescaria e seus ensinamentos e também, sobre as coincidências e semelhanças que aquela figura possuía, comigo mesmo.

À esquerda, à uns cem metros de onde o Gaivota estava ancorado, grandes pedras ornamentavam a paisagem, onde as ondas se chocavam com maior intensidade, provocando os sons que eu podia ouvir bem à noite. Caminhei até elas, escalando-as até o ponto mais alto.

Lá de cima, o cenário ainda era mais belo. Eu podia ver toda enseada, e os arrecifes que, observados daquela altura, formavam realmente uma estreita passagem, quase que um portão para aquele pequeno pedaço de paraíso.

O Sol ainda levantando-se à minha esquerda, refletia brilhante sobre as gotas d’água e a pequena névoa que se formava com choque das ondas naquela barreira natural.

Quando menos esperava, pude avistar o Mestre, em sua pequena embarcação, seguindo em direção ao portão. Eu não sabia o que pensar naquele momento. Me recordo que as perguntas surgiam novamente, uma sobrepondo-se a outras em relação ao Velho, que partia diante dos meus olhos.

...Será que eu o veria novamente?...

...Ou será que ele só estava saindo novamente para pescar, e à noite, retornaria?...

...Teria ele me passado os ensinamentos necessários, e agora sua presença não se fazia mais necessária?...

Eu não sabia o que pensar. Mas no fundo do meu peito, uma longínqua vós, parecia me dizer que eu não o veria nunca mais. A sensação de estar só novamente, não me assustava, mas confesso: muito me entristecia.


Acredito mesmo que eu começava a perceber que minha jornada deveria continuar e, caso ele já tivesse me passado todos os ensinamentos necessários para aquele momento, nada mais eu poderia fazer se não, seguir o meu caminho.

Passei o resto do dia ali sentado, observando, contemplando o Mar e todas as suas magníficas manifestações. Uma outra sensação estranha, era de que, aquele cenário, aquela praia, parecia ter sido construída com base na minha imaginação. Eu sentia que aquele era o lugar que sempre sonhei encontrar.

Confesso que vez por outra, o que eu desejava mesmo era ver aquela pequena embarcação entrando novamente na enseada, e ter meu amigo de volta, um amigo onde eu podia enxergar eu mesmo, mais velho, mais sábio, muito mais consciente sobre a vida, sobre mim mesmo.

A noite começava a dar os seus primeiros sinais. Eu tinha que descer enquanto havia luz. Aquelas pedras, constantemente castigadas pelas ondas, mantinham-se sempre úmidas, escorregadias. O Gaivota lá embaixo, balançando seu mastro de um lado para outro, me convidava para o seu interior, tentar novamente quem sabe, algum contato através do rádio ou mesmo a telefonia por satélite.

E foi exatamente o que fiz e, sem sucesso. As interferências continuavam como antes. Na manhã seguinte, caminhei pela praia, na direção onde encontrará o velho pescador, e nenhum sinal dele se fazia presente.

Meio que desorientado, andei de um lado para outro, olhando para o Mar, com uma última esperança de vê-lo se aproximando, mas no fundo, a certeza que ele havia partido, fazia-se cada vez mais forte. Quanto a mim, aquela mesma certeza me dizia cada vez mais: eu também deveria partir mas, para onde?

Para o Norte! Mesmo sem a bússola, eu teria que voltar a confiar nos meus instintos. Uma verdade, mesmo que ainda muito longe, começava a dar seus primeiros indícios. Se eu já não fizesse mais parte do mundo dos mortais, teria que descobrir qual então seria o meu caminho agora. E, ancorado ali, parado, só esperando, talvez eu nunca chegaria a resposta nenhuma.

Talvez esse seja o maior de todos os erros que um homem possa cometer: ficar parado, esperando que alguma coisa aconteça de bom em sua vida. A vida sempre me pareceu uma eterna caminhada. Mesmo quando não sabemos ao certo o que buscamos, a melhor alternativa é colocar-se na estrada, prosseguindo, de uma forma ou de outra, encontraremos a certeza mais à frente.

Sem dúvida, ficar naquele verdadeiro paraíso seria uma excelente idéia. Seria acima de tudo extremamente confortável. Eu tinha onde dormir, como me alimentar, toda a segurança que o local certamente me proporcionaria mas, dessa vez não. Eu sentia que precisava continuar.

Voltei para o Gaivota, revisei as velas, as amarras, enfim, todos os itens necessários para segurança, enquanto a luz me permitia, decidindo que na manhã seguinte, eu estaria novamente no Mar, na busca de minhas respostas, na direção do meu destino.

Acordei com o barulho da chuva. Quando abri os olhos, vi pela escotilha, as gotas escorrendo serenas. Apesar da chuva, não fazia frio. Uma temperatura agradável, permitiu-me sair, jogar o rosto para cima, e sentir suas gotas lavar a minha face, como que desejando despertar-me para aquele novo dia.

Confesso: sentia o coração triste. Triste como há muito tempo não sentia. Desde que resolvi fazer aquela viagem, tudo deu tão certo, experiências novas e aquela incrível sensação de bem estar, pareciam ter varrido a tristeza para muito longe. Mas, lá estava ela de volta.

Eu podia novamente me sentir vivo. Sim, vivo. Preparei meu dejejum, comi como um bom mortal, ainda observando a chuva que caia do lado de fora.

Peguei minha capa amarela, debaixo do sofá que fica na pequena sala, e subi ao convés. Com as velas já desamarradas, lentamente subi âncora, e com a vela mestra içada, comecei a girar antes que as fracas ondas, me arremetessem novamente de barriga para a areia. Não tardou para que eu começasse a ganhar distância da praia. Desci a bolina.

O leme agora obedecendo mais, me levava em direção ao portão da enseada. A água da chuva continuava caindo sobre meu rosto, era a despedida daquele meu pedaço de paraíso. Não olhei para trás. Mais uma vez: não se deve fazer isso quando se parte. Com certeza, um pedaço do meu coração ficaria encravado naquele lugar para sempre.

Já fora dos arrecifes, tomei à estibordo e segui contornando as pequenas montanhas que à minha direita acompanhavam até o final da pequena ilha. Depois, só o Mar, só o Mar, o Céu e mais nada, absolutamente mais nada.

Apesar da tristeza, lá estava eu novamente fazendo o que mais amava na vida; navegando, me sentindo novamente nos braços de Deus, no berço de onde toda a vida se originou e, para onde eu deveria um dia voltar.

Já à tarde, a chuva ficara para trás. O céu cinza, indicava todo meu estado de espírito. E eu sabia que agora, poderia olhar para trás. O meu paraíso não mais seria visto. Pela primeira vez, desde que parti naquela manhã, ainda não tinha olhado à 360º.

Sentado na popa, com a na mão direita na roda do leme, percebi que a bússola, dava indícios que desejava voltar a funcionar. E, caso ela estivesse realmente correta, eu, até então guiado apenas pelo meu instinto, continuava no rumo certo. O Norte, estava exatamente a proa de minha embarcação.

Imediatamente travei o leme. Desci até a mesa de navegação, onde estão os rádios e tentei sintonizar alguma freqüência. Para minha surpresa, eu podia ouvir novamente os boletins meteorológicos, num sotaque americano, bem conhecido.

Eu não havia morrido, pelo menos tudo começa a indicar isso. Mesmo estando sem meus óculos, que me acompanharam durante toda minha vida e, agora enxergando perfeitamente bem sem eles, mesmo não sentindo a necessidade de me alimentar como o de costume, mesmo convivendo com situações inexplicáveis, o rádio, a bússola, pelo menos naquele instante, a situação, me tentava dizer que eu ainda fazia parte desse mundo, mas por quanto tempo?

Naveguei dessa forma por mais 6 dias. Os dias, se mostravam calmos. Com o Mar sereno, eu podia desfrutar de todo tempo possível para continuar refletindo sobre os dias em que passei com o Velho pescador. Eu podia concluir agora, que realmente ele era a mais pura expressão do homem que sempre desejei ser.

Durante toda minha vida, através de cursos, estudos e até mesmo das religiões, busquei àquela paz e serenidade, recheada de pura consciência. E eu era obrigado a confessar: pelo menos até aquele momento, eu não havia conseguido realizar esse meu objetivo. Por mais que eu tentasse ampliar o meu nível de consciência, ainda assim, as interferências do meio, da própria sociedade, sempre acabavam se sobrepondo, de forma a conduzirem-me em seus laços.

Mas agora era diferente. Eu percebia nitidamente, a importância do pensamento solitário, a importância do silêncio interior, principalmente relacionado com a minha própria vida. Eu tinha um objetivo: navegar para o Norte, o Norte da minha vida. Mesmo sem ter um motivo aparente, eu poderia facilmente desistir de tudo, voltar ao conforto de uma marina, com meus amigos e familiares, mas isso, com certeza, não responderia às minhas perguntas, eu não encontraria o sentido que tanto procurava.

Assim, eu prosseguia. Cada vez que a proa do Gaivota batia na água, deixando um rastro sobre o leito do oceano, minha história ficava cada vez mais para trás. Eu sentia que fazes da minha vida eram vencidas, uma a uma, e o meu destino, à frente, como que de braços abertos, me aguardava serenamente.

No 8º dia depois de um forte nevoeiro, acompanhado por muita calmaria, que eu pude avistar novamente vultos ao longe, vultos do que poderia ser uma outra pequena ilha. O rádio, assim como as bússolas, voltavam a ficar inoperantes. A pouca brisa que me impulsionava, mal era capaz de encher a vela mestra, totalmente aberta com a retranca formando um ângulo de quase 90º em relação a embarcação.

Dessa forma, minha aproximação era lenta, muito lenta. O pequeno vulto aos poucos, se transformava em uma imagem real. Suas cores ganhavam vida. Eu já podia observar a vegetação, as montanhas, seus picos, sempre envoltos em névoa, como uma cerração desproporcional a tudo já observado.

Com o leme travado, caminhei até a proa. Com a mão esquerda sobre a testa, eu tentava diminuir os raios solares que ofuscavam meus olhos, na tentativa de enxergar um pouco mais para onde me dirigia.

Pela primeira vez desde que parti, sinto não estar muito bem fisicamente. Uma espécie de fraqueza, tomava – lentamente – poder sobre meu corpo. Eu não conseguia entender. Há poucos minutos atrás, antes de avistar aquele lugar, eu me sentia completamente normal, bem, alias, muito bem desde que sai de Ubatuba, e agora, de um segundo para outro, eu percebia minhas forças esvaindo-se do corpo, como que sugadas por uma estranha energia.

O mal estar continuava crescente. Voltei para o leme. Uma praia tranqüila crescia à minha frente. Talvez, pelo meu estado físico, eu não conseguiria chegar consciente até ela. Como o vento estava muito fraco, decidi aproar em sua direção, travar novamente o leme, erguer a bolina, e deixar que o Gaivota, ancorasse de barriga na areia, até que eu pudesse me recuperar. E assim o fiz, antes de cair desmaiado.

Sem os sentidos, viajei pelo mundo das alucinações...

...Um vento um pouco mais forte, ameaçava me tirar da popa onde eu estava deitado...

...Senti meu corpo começar a flutuar, emanado pelo vento que o carregava...

...Eu começava a voar. O medo de cair, de me chocar com alguma coisa a frente, se fazia presente...

...Eu não sentia mais meu corpo, que parecia estar livre do peso não só da gravidade, mas principalmente de toda responsabilidade que acumulei durante toda minha vida...

...Lembranças dos familiares surgiam e desapareciam com a mesma magia que me transportava de um lado para outro, vagando sem um rumo definido...

...A história da minha vida começava a ser repassada diante dos meus olhos novamente. Os erros, os acertos. Momentos marcantes como o nascimento das minhas filhas, podiam agora ser novamente vivenciados com toda sua realidade...

...Até que tudo desaparece, desaparece completamente como veio, por encanto...




Acordei! Sentia-me tão fraco, que eu não era capaz de mover nenhum músculo, sequer abrir os olhos. Eu sentia, no entanto, que estava confortavelmente deitado em uma cama. Era capaz de ouvir – vez por outra – pessoas falando ao meu redor. Mas eu ainda não conseguia abrir os olhos.

Tentava a todo custo, aguçar os poucos sentidos que ainda me restavam, na tentativa de saber onde eu estava, e quem poderia ser aquelas pessoas, até que aquele sono descomunal, me carregou novamente em seus braços.

Não sei por quanto tempo permaneci adormecido. Mas posso afirmar, que ali, sobre aquela cama, pude me livrar de todo o cansaço acumulado durante mais de meio século de vida. Assim que despertei novamente, eu sentia meu corpo como nunca havia sentido antes. Livre, solto, absorto de qualquer peso. Uma sensação única, experimentada pela primeira vez.

Dessa vez, com os olhos abertos, pude ver onde estava. Um recinto enorme, rústico, construído por grossos troncos de árvore, empilhado de forma artesanal. Algumas velas acesas, em uma espécie de santuário, deixavam o ambiente com um ar místico, envolvente.

Meus olhos continuavam percorrendo todo aquele ambiente, enquanto a minha mente tentava deduzir aonde eu poderia estar agora. Permaneci assim totalmente imóvel, apenas com os olhos e os sentidos procurando por explicações, durante horas.

O meu corpo, leve como estava, não reclamava dores, muito menos nenhum mal estar, até que a porta lentamente se abre.

Um senhor, de pele escura – não chegando a ser negro – de cabelos lisos, compridos, avermelhados, talvez pelo Sol, com traços delicados, se aproxima, trazendo consigo um leve e doce sorriso nos lábios, entranhados nas espessas rugas de sua face, adentra com passos calmos e tranqüilos. Ele vestia roupas soltas sobre o corpo, brancas, brancas com as nuvens de um céu ensolarado.

– Como se sente agora?

– Bem! Acredito. – Respondi.

– Não se esforce. Você ainda está muito fraco.

Eu não me esforçava. Na verdade, pelo menos naquele instante, eu não possuía forças para nada, nem mesmo para saber onde eu estava. Sentia-me tão bem, que não desejava que nada, absolutamente nada pudesse prejudicar aquele momento, nem mesmo o idioma que falávamos, me importava.

O homem sentou-se ao meu lado, como quem se dispondo a conversar mais. Falou que eles haviam me encontrado na praia, desmaiado, com meu barco na areia, como antes de desfalecer eu havia previsto. E que, devido a maré descer muito durante a noite, decidiram colocar minha embarcação sob alguns cavaletes, fora d’água.

Eu sentia a boca seca, procurando salivar a todo instante. Sem que eu nada dissesse, ele se levantou, retirando-se do quarto, voltando segundos depois, com um jarro de barro e um copo, oferecendo-me água. Com um pouco de esforço, ergui o corpo, encostando-me na cabeceira de bambu, enquanto ele enchia o copo.

Pela janela, à minha direita, alguns raios de Sol entravam no quarto, eu pude percebê-los nitidamente, ao refletirem no fio de água que escorria para dentro do copo. Depois de tomar 2 copos cheios, sentia que minhas forças começavam a retornar.

Agradeci pela água, quando ameacei esboçar mais agradecimentos por tudo que estavam fazendo comigo, fui subitamente interrompido, sob a singela alegação de que eu era bem vindo e que, eu era um convidado especial.

Sinceramente me sentia bem, inclusive com meus anfitriões. Permaneci encostado na cabeceira de bambu, enquanto tentava despertar definitivamente de um sono de muitos, muitos dias, quando decidi, pela primeira vez questionar onde estávamos. O senhor me olhou profundamente nos olhos, mantendo um silêncio assustador.

Durante toda essa viagem, mil hipóteses já haviam surgido sobre tudo que acontecera mas, a mais forte e que, se mostrava mais evidente para mim, sem dúvida estava relacionada a morte.

Não sei se por ter lido vários artigos, livros espíritas, mesmo sem nunca ter me dedicado a essa religião, tudo que eu estava vivenciando, podia ser comparado, diretamente com todos as histórias lidas.

E o ensurdecedor silêncio daquele homem, aliado a toda sua angelical hospitalidade, tentavam, mais uma vez, confirmar minhas hipóteses, até que finalmente ele se manifesta, respondendo à minha questão.

– Estamos em uma ilha, no meio do oceano, onde vez por outra, temos a visita de náufragos, visitantes perdidos e...

– Visitantes doentes. – Completei sua resposta, interrompendo-o.

Ele sorriu graciosamente, concordando com minha afirmação.

– Teremos uma festa hoje à noite. Será que você estará recuperado até lá? – Perguntava ele.

Eu acreditava que sim, pois, tirando o leve mal estar provocado pela inércia de muitos dias adormecidos, eu podia continuar afirmando que me sentia muito, muito bem, não só física, com espiritualmente bem. Aceitei seu convite, me retorcendo pela cama, como quem desejando me levantar. Ele, prontamente estende a sua mão direita.

Assim que a toquei, uma sensação estranha toca também todo meu corpo. Aquela mão, oferecida a mim, trazia consigo mais que um simples apoio para o meu corpo ainda debilitado, me passava uma segurança poucas vezes sentida em minha vida. Olhei em seus olhos, olhos de uma negritude tão intensa, que chegavam a cintilar de tanto brilho.

Em pé, respirei fundo por alguns instantes, procurando me readaptar a uma condição tão simples, e que as vezes, se torna tão difícil. Eu tinha em minha consciência que há vários dias eu não me alimentava, e que, caso ainda estivesse vivo, toda minha fraqueza poderia ser resultado desse jejum forçado.

Mas, agora, pelo menos naquele instante, eu não desejava pensar nesse assunto, que tanto vinha me atormentando nesses últimos meses. Eu desejava mesmo, sair daquele quarto, tomar um pouco de ar, ver com os meus olhos onde eu estava, ver se o Gaivota estava seguro...

O velho abre a porta, deixando a luz invadir definitivamente o quarto. Não sei se por culpa dos dias em que estive em plena escuridão ou não, aquela luz possuía uma intensidade maior do que eu podia suportar. Durante toda minha vida, tive problemas, além de miopia, o de foto-sensibilidade, necessitando, não só das lentes corretivas, como também das lentes escuras.

Consegui chegar somente até a porta, precisando virar o rosto para dentro do quarto, não conseguindo olhar para fora.

Preocupado o senhor, me questiona sobre o que estava se passando. Depois de explicar-lhe o fato, peço a ele que fizesse a gentileza de pegar em minha cabine, sobre a mesa de navegação, os meus óculos, os mesmos que eu já não vinha mais usando ultimamente.

Ao sair do quarto, posso ouvi-lo pedindo à alguém, que entrasse em meu veleiro, e trouxesse os óculos. E assim foi feito. Minutos depois, ele retorna com meu par de lentes escuras. Agora com os olhos protegidos e um pouco mais adaptados a luz, talvez eu conseguisse sair.

Novamente ele abre a porta e dessa vez, consigo suportar melhor a intensa claridade que fazia lá fora. Assim que me coloquei à porta, percebi que uma fina areia, de uma brancura tão expressiva, refletia muito o Sol, provocando todo o desconforto sentido.

O lugar era uma espécie de vilarejo, uma vila de pescadores, ou uma pequena aldeia. Crianças corriam pela areia, brincando, pulando, enquanto outras em torno do Gaivota, observavam, talvez espantadas, o tamanho da embarcação.

Um veleiro, quando visto dentro d’água, possui um tamanho muitas vezes menor do que quando fora d’água, devido a todo o seu lastro.

Espantado, olhei em volta, procurando por um guindaste, ou mesmo algum pequeno trator, para justificar como, eles haviam tirado minha embarcação da água, mas nada, nada disso parecia existir por ali. Talvez muitos homens puxando, com a ajuda da maré alta... – pensava eu.
Começamos a caminhar pelo vilarejo.

Meu anfitrião, fazia questão de me mostrar tudo que lá havia. À medida com que eu conhecia mais e mais aquele lugar, eu começa a perceber que não havia uma característica definida, quanto a seus habitantes.

Eu poderia jurar que acabara de ver um japonês, antes de alguns europeus. Não pude deixar de questionar sobre esse detalhe, uma vez que meu novo amigo se mostrava demasiadamente gentil.

– Sr.. Parece que aqui temos pessoas de todas as partes do mundo.

Ele sorri novamente, dizendo que muitos dos visitantes, se adaptam tão bem, que acabam ficando por um tempo maior. Que este fato, era muito comum por aqui, acrescentando:

– Temos médicos, engenheiros, advogados, empresários... pessoas de todas as partes do mundo.

Percebi que enquanto caminhávamos, olhares atentos nos seguiam, talvez pela presença do novo visitante, eu e quem sabe, principalmente pela forma como aqui cheguei, desmaiado, tudo isso deveria ter causado mais curiosidade ainda.

Não demorou muito, para chegarmos aos limites do povoado. Mais à frente, só areia e pedras compunham o cenário. De frente para o Mar, podíamos contemplar o pôr do Sol, de uma beleza infinita. Começamos a voltar. Eu desejava tomar um bom banho.

Agora com o Gaivota sobre cavaletes, ficava um pouco mais difícil, fazê-lo em minha embarcação, mas com certeza, haveria algum lugar por ali, onde eu poderia saciar minhas necessidades físicas.

Ao chegarmos próximo ao quarto onde estive, pude perceber um ruído de água caindo, como o de uma cascata. Comentei ao velho, minha vontade de banhar-me, e que se haveria algum problema se isso fosse feito na pequena cachoeira. Com a sua aprovação, me dirigi ao Gaivota, subindo até ele ainda com alguma dificuldade, para apanhar algumas roupas limpas.

Afinal de contas, eu havia sido convidado para uma festa, mais à noite.
Eu começava a dar os meus primeiros passos, sozinho naquele lugar. As pessoas, não deixavam de me olhar, como que esperando que eu me ambientasse um pouco mais, antes de se aproximarem. Depois do banho, voltei para o quarto e quando dele saí, a noite já se fazia presente.

Varias tochas estavam acesas por toda pequena praia. Aguardei por alguns instantes, na expectativa de que o velho viesse me buscar. Afinal, eu não sabia onde seria a tal festa, muito menos de que festa se tratava.

Eu estava vestido todo de branco, como assim a maioria dos que ali habitavam. Dessa forma, acreditei estar mais em conformidade com o local. Depois de quase meia hora esperando, decidi caminhar, e tentar achar, por mim mesmo onde seria a festa.

Com certeza, lá, eu teria a oportunidade de me relacionar com outras pessoas, conversar, conhecer melhor o lugar onde estávamos.

Não demorou muito, para que eu percebesse, que tochas acesas enfileiravam-se, formando uma espécie de corredor, por onde se podia caminhar dentro dele. Aos poucos, pude começar a ouvir sons, ruídos de pessoas conversando, uma espécie de música desconhecida, ou seja, sinal de que eu me dirigia para o lugar certo.

Mais e mais tochas apareciam, provocando uma luminosidade considerável para o lugar e, a medida com que eu me aproximava, as pessoas lentamente calavam-se, olhando em minha direção. Confesso que comecei a ficar constrangido.

Em toda minha vida, nunca fui alvo de tanta atenção, mesmo assim, eu não conseguia parar de caminhar ao centro daquela festividade. Num lugar um pouco mais elevado, uma espécie de palco, o Velho, o Sr. que me recepcionara, assim que me viu, pediu a atenção de todos. Aquela festa, estava sendo dedicada ao novo hóspede da ilha. Eu!

Não acreditei no que acontecia. Um desconhecido, que chegara desmaiado, sem nada a oferecer aquela simpática gente, estava sendo homenageado. O que levaria aquele povoado a fazer isso? Será que faziam com todos que ali chegavam? E, por que o faziam?

Não me restou senão, agradecer toda a gentileza e hospitalidade. Eu não falava em público desde que deixei meu trabalho, onde constantemente realizava muitas palestras e apresentações. Mas, confesso que não me sai mal.

A festa continuou. Agora, um pouco mais refeito da surpresa, às pessoas se aproximavam para me dar pessoalmente boas vindas. O mais curioso, é que todas falavam uma mistura de dialetos. Inglês, francês, castelhano, às vezes com um pouco de italiano, línguas bem conhecidas, e que não impediam, de forma alguma, que conseguíssemos nos comunicar perfeitamente.

Eu começava a me sentir mais feliz. À medida com que conhecia mais e mais pessoas, percebia a grandeza do universo naquela pequena ilha. Quanta sabedoria, quanto conhecimento poderia haver contido em um pedaço tão pequeno de terra no meio do oceano?

Não demorou muito para eu começar a saber, que as pessoas que ali estavam e que não eram nativas, possuíam coisas em comum. Nenhuma delas planejou chegar naquele lugar. De uma forma ou de outra, uma espécie de acidente acabou trazendo-as.

E que, ficavam lá, por um determinado tempo e depois, partiam ou não. Percebi que mesmo estando muito à vontade, o Velho sempre me tinha diante dos seus olhos, me observando, como que policiando minhas atitudes. Não me importei com o fato. Afinal, o estranho ali, era exatamente eu.

Comi, bebi, pude saborear as delícias de tudo que o Mar sempre nos proporcionou, feito com realeza e magia de quem vive desses frutos da natureza. Percebi também, uma certa curiosidade daqueles que se dirigiam a mim, sobre minha vida, de onde eu vinha, o que eu fazia.

Não sei se por cisma minha, todos se mantinham reservados, como que se não pudessem dizer tudo que sabiam. Isso me intrigava. Talvez eles não pudessem fazê-lo mesmo, ou temiam que eu ainda não estivesse preparado para aceitar certos fatos. Depois de horas conhecendo mais e mais pessoas, a noite avançava firme em seu tradicional curso, quando nos recolhemos.

Naquele lugar, o fator tempo parecia não existir. De certo que o Sol nascia e se punha, mas ninguém se prendia a esse fato. O sono, ou o descanso de uma noite bem dormida, definiam seus comportamentos.

Amanheceu! O barulho forte do Mar, à poucos metros do quarto onde eu estava, confundia-se com o grasnar das gaivotas e a pequena queda d’água à minha esquerda. Que som maravilhoso. Mesmo ainda deitado, com os olhos ainda fechados, eu dizia a mim mesmo que eu não desejava nunca deixar de acordar ouvindo aquela manifestação da natureza.

Uma pressa incabível, toma conta de mim. Eu desejava me levantar, caminhar pela praia, tomar um bom banho, fazer um bom dejejum, e continuar explorando aquele lugar, conhecendo mais e mais pessoas interessantes, saber como eu também poderia ser útil a eles, uma necessidade intrínseca de retribuir tudo que haviam feito para mim até então.

Assim que sai, descalço, sentindo toda energia viva do local, comecei a caminhar pela praia. O nevoeiro que eu havia visto, ainda antes de desembarcar ali, se fazia presente com mais intensidade. Parecia que as ondas, assim que chegavam e entravam em contato com a areia, desencadeavam uma espécie de fumaça.

Uma maravilhosa imagem, iluminada com os primeiros raios do Sol, que, embora ainda modestos, enchiam tudo de um brilho prateado, encantador.

Eu já havia estudado, anteriormente, sobre a energia renovadora da manhã. Como que se todo o universo, diante de um novo dia, descarregasse um potencial energético para isso, de forma incalculável. E eu podia sentir essa força renovadora. Eu fazia parte dela agora, uma parte intrínseca, viva e participante.

A aldeia toda parecia ainda adormecida. Talvez, toda essa magia que tanto me fascinava, já se tornara comum a eles. Quando percebi mais à frente, o vulto de alguém caminhando, vindo em meu encontro. Curioso em saber quem era, perdi o elo energético que me prendia àquele momento.

Não demorou muito, para que eu percebesse que se tratava do Velho Ancião. Que sorrindo, me deseja um imponente bom dia.

Caminhamos juntos devolta a aldeia. Falamos sobre a grandeza do lugar, principalmente do quanto eu estava impressionado com tudo. Evitei fazer perguntas. No fundo eu sabia, que quando chegasse a hora, eu teria respostas a todas as minhas dúvidas.

Finalmente, depois de ter vivido mais de meio século, eu aprendia a esperar, a ter paciência. Quanto que essa inaptidão já havia me prejudicado. Por mais que eu ouvira falar, por mais que eu tivesse lido, concluído, ainda assim, até aquele momento, eu não havia, definitivamente concebido, que em nossas vidas existe realmente, um tempo certo para tudo. E que, quando impacientes, quando forçamos uma determinada situação, os prejuízos são extremamente sérios, em todos os sentidos.

Não! Dessa vez não! Eu não desejava mais atropelar a ordem natural das coisas. Afinal, eu fazia parte de uma natureza, cuja sua principal lei, é e sempre foi, a de agir de forma natural. Quando chegasse o meu momento, o devido momento, eu saberia tudo que eu precisasse, tudo o que o meu grau de desenvolvimento permitisse.

Assim que voltamos, um delicioso café da manhã nos aguardava, servido numa espécie de galpão maior. Mesmo construído com materiais rudimentares, não deixava de expressar sua engenharia e beleza arquitetônica. Muitas frutas, sucos e uma espécie de pão fresco, compunham a mesa.

Sentamo-nos. Expressei ao Velho, minha necessidade de contribuir, de alguma forma a todos. Quando ele sorrindo me diz que não tardaria, para que isso acontecesse. Falei-lhe um pouco sobre minha vida, e que eu havia adquirido conhecimentos com trabalhos manuais, como: marcenaria, hidráulica, desenho, pintura, escultura.

Eu poderia ainda construir barcos, casas, represar e canalizar água... eu sentia realmente que poderia ajudá-los, não só quanto a conservação de tudo já existente, mas como também na construção do que fosse necessário.

Mais uma vez ele me pedia calma. E, arremetendo seus negros olhos para o horizonte, sugeria que desfrutasse de toda aquela beleza, que caminhasse, conhecesse, participasse da vida deles e que, o trabalho surgiria assim, naturalmente.

Ele tinha razão. Meu ímpeto poderia me prejudicar mais uma vez. O melhor mesmo seria caminhar, conhecer mais e mais pessoas e, acima de tudo, continuar aprendendo.

Confesso que às vezes, a cena do Gaivota, sobre os cavaletes na entrada da aldeia, destoava do restante das outras embarcações. Eu desejava tirá-lo de lá. Por outro lado, não sabia onde poderia colocar uma embarcação de quase 40 pés, pesando mais de 5 toneladas? Mais tarde, certamente eu saberia o que fazer.

Enquanto admirava minha própria embarcação, um francês, amante da náutica, se aproxima, elogiando meu barco. Tratava-se de um senhor, aparentando uns 60 anos, de estatura mediana, olhos claros, pouco cabelo, com a pela muito bronzeada. Ele me contou que estava naquela ilha há aproximadamente 4 anos. Já havia pensado em partir, mas sentia ainda não ser o momento certo.

Tratava-se de um médico, cardiologista, mas que ali, se via obrigado a praticar uma espécie de clínica geral. Os habitantes, dificilmente adoeciam mas, acidentes aconteciam. E mais, constantemente chegavam pessoas com problemas de saúde, como eu mesmo por exemplo.

Quando fui colocado naquele quarto, ele me examinara, atestando que eu estava bem e que, precisava apenas de muito repouso. Eu não sabia disso. Confesso que fiquei surpreso com a informação. Lembrei-me imediatamente, que todos, ali, possuíam uma função específica, mesmo que, aparentemente, para quem acabasse de chegar, parecesse que estavam desfrutando de merecidas férias.

Nossa conversa estava agradável, até que uma espécie de gongo começou a ser ouvido, por toda a aldeia.

Pudemos observar que homens corriam para seus botes, na beira da praia, lançando-os ao Mar. Curioso, meio que preocupado, eu desejava saber o que estava havendo. O médico francês tentando me acalmar, disse ser uma espécie de sinal, que pessoas no Mar poderiam estar precisando de ajuda.

Geralmente, um novo visitante. Rapidamente fiz uma analogia com a minha chegada. Sim, fazia sentido. Aqueles que aqui chegam, de uma forma ou de outra, estariam sempre precisando de ajuda, uma ajuda física ou na maioria, uma ajuda espiritual.

Não sei o que deu em mim. Sai correndo em direção aos botes. Percebi que dois nativos, desempenhavam muita força para lançar ao Mar, um desses botes, aqueles cavados em troncos. Imediatamente comecei a ajudá-los e assim que avançamos até a primeira onda, dei um salto e de posse de um remo, começamos seguir em direção a outros dois barcos, que já estavam à nossa frente.

Agindo por instinto, não pensei – pelo menos naquele momento – no que estava fazendo. Eu e os outros dois nativos, remávamos em uma sincronia tão perfeita, que não demorou muito, para alcançarmos os outros dois botes. Eu ainda não conseguia ver nada à nossa frente.

...Como eles poderiam saber em qual direção seguir?...

...Eu não havia visto nenhum tipo de antena, rádio, ou coisa parecida na aldeia, capaz de captar sinais de socorro ou coisa assim. Como poderiam eles, receberem esses pedidos de ajuda?...

Bem, naquela hora não importava. Eu acreditava realmente que poderiam haver pessoas precisando de ajuda, e continuava remando, remando cada vez mais rápido. Não demorou mais que 30 minutos, para avistarmos uma pequena aeronave, ainda sobre as águas.

Assim que chegamos, a parte dianteira, onde estavam o motor e a hélice, começava a afundar lentamente. Talvez devido ao choque com Mar, os vidros dianteiros estavam quebrados, e pela forma com que aquele avião se encontrava, com o bico afundando, a água começava a invadir o seu interior.

Lá dentro, um casal desfalecido, mostrava nítidos sinais de ferimentos. Cortes no rosto, e sabe-se lá o que mais. Atirei-me ao Mar. Nadei até aquela pequena cabine, tentando abrir a porta. Eu não conseguia abri-la sozinho, quando um jovem, de músculos avantajados, começa a me ajudar e juntos, quase que arrancamos a fina portinhola.

A essa altura, o casal já estava com a água no peito. Desatei os cintos, puxando-os para fora. Com os outros barcos ao nosso lado, outros nativos nos ajudaram a embarcar, primeiro a mulher, depois o homem, que aparentava estar mais ferido ainda, com um profundo corte no pescoço, sangrando muito.

Rapidamente subimos em nossos botes, e remamos de volta para a aldeia. O casal estava no bote a nossa esquerda. Eu os fitava atentamente, na esperança de ver alguma manifestação de vida, mas eles não se mexiam. Permaneciam largados, na mesma posição em que foram colocados. Eu estava tenso.

O avião, que ficara para trás, já não estava mais lá. Com certeza já havia afundado e os dois, não se mexiam em hipótese alguma.

À medida com que nos aproximávamos da praia, uma verdadeira operação de resgate já havia se formado. Eles deveriam estar acostumados, preparados para essas emergências. Homens, mulheres, com macas, ataduras, nos aguardavam também ansiosos.

Assim que chegamos, os feridos foram imediatamente transferidos para as macas, e carregados até o meu quarto. Sim, aquele era o quarto reservado para os feridos, para aqueles que ali chegavam.

O doutor francês, com sua malinha preta na mão, entrou logo em seguida. Eu me aproximei, desejava também entrar. Um nativo, que fazia uma espécie de guarda à porta, impediu-me, gesticulando com a cabeça em sinal negativo.

Mais uma vez eu pude compreender sem maiores explicações. Aos poucos tudo ali começava a fazer sentido. Lentamente o entendimento surgia espontaneamente, esclarecendo minhas dúvidas. Mais um detalhe mostrava-se muito claro e objetivo.

Eu adquiria a compreensão, eu obtinha as respostas, mas, no seu tempo certo, não quando eu simplesmente às desejava.

Afastei-me ainda pensativo. Eu me encontrava exausto. Há certo tempo eu não desempenhava um esforço físico tão grande. Mesmo assim, eu não conseguia deixar de pensar em tudo que acontecera.

Durante toda minha existência, sempre acreditei que a vida não passava se não, de um grande sonho. Lembro-me muito bem, que quando adolescente, tentando expressar minhas idéias nesse sentido, eu era ridicularizado. Mas nem assim, desisti de minhas primeiras teorias.

Com o passar dos anos, estudando, pesquisando mais, entrei em contato com pessoas, livros que também compartilhavam de minhas idéias.

Tive a oportunidade de ler Ilusões de Richard Bach, uma verdadeira obra prima, e muitos outros trabalhos, teses e livros sobre o conceptualismo, doutrina segundo a qual os universais não existem em si mesmos, sendo construções do espírito, de um realismo conceitual.

Segundo essa doutrina, as idéias são formas, ou são mesmo, operações próprias do pensamento e não meros sinais que se aplicam igualmente a indivíduos diversos.

Carreguei comigo essa teoria por toda minha vida até aqui, sem que ninguém, ninguém conseguisse provar o contrário. Tudo isso agora então, poderia ser uma espécie de continuação, de toda essa ilusão, de todo o sonho que vivi até hoje.

E aquela ilha, como fazendo parte de um gigantesco quebra-cabeça universal, se encaixava perfeitamente também dentro de todo esse contexto.

Sentei-me embaixo do Gaivota. Ainda ofegante, molhado. Minha mente voltava a trabalhar de forma alucinada, como um faminto diante a um prato de comida. Mas durante esses últimos tempos, mais precisamente desde que iniciei essa viagem, muitas lições eu já havia absorvido.

Eu não poderia, simplesmente, por mais uma vez, enterrá-las no fundo de um poço, como muito já havia feito no passado. Eu precisava escrever, anotar todas essas experiências, registrar minhas conclusões.

Por um instante, me esqueci completamente do casal ferido. Na porta do quarto principal, um número razoável de pessoas permaneciam como que fazendo uma forte corrente de vibração positiva, enquanto que outras, entravam e saiam, carregando coisas como bacias, ataduras, ervas...

Eu continuava confuso. Os pensamentos passeavam pela minha mente, como o vento quando sopra em todas as direções. Eu precisava escrever. Sim, escrever sempre foi para mim um ótimo calmante, um organizador das minhas idéias e que, de uma forma ou de outra, me trazia novamente a serenidade.

Lembrei-me imediatamente do meu notebook, que há tempos eu não lhe procurava. Subi no Gaivota e, dentro de sua cabine, mesmo que fora d’água, me coloquei a narrar tudo, tudo que eu havia vivido nessas últimas semanas.

A noite caiu. O dia amanheceu. Mesmo com a bateria do pequeno computador ter se esgotado, eu ainda tinha as baterias do Gaivota, o que me permitiu continuar escrevendo, escrevendo, páginas e mais páginas dessas últimas experiências vividas.

O cansaço eminente me fez perceber, junto com os primeiros raios de Sol, que eu deveria descansar um pouco. Com o quarto que me serviu até então, ocupado pelo casal, decidi repousar por ali mesmo. Afinal, conforto era tudo o que não me faltava.

De certo, eu não era embalado pelo Mar, mas mesmo assim, o estresse era tanto, que não tive nenhuma dificuldade em adormecer.

Com o barulho característico das pessoas, durante o dia, despertei meio que assustado. A tarde avançava em sua jornada em direção à noite e eu, ainda entorpecido pelo sono, me levantei. Ao sair da minha embarcação, notei que não havia mais pessoas à porta daquele quarto de recuperação – se é assim que podia chamá-lo.

A rotina parecia ter tomado conta novamente daquela aldeia. Mas, eu mantinha-me curioso, quanto ao estado de saúde dos nossos novos visitantes. Eu poderia jurar, que pelo menos o homem, devido a gravidade de seus ferimentos, não sobreviveria.

Fui buscar informações. Notei que o médico francês, estava em um quiosque, tomando alguma coisa. Dirigi-me até ele, indagando-o quanto ao estado de saúde do casal. Ele se recostou na cadeira, relaxando e, jogando seu olhar ao infinito, me disse que ficariam bem. Precisavam descansar por alguns dias, mas que, ficariam bem.

Imediatamente lembrei-me quando ali cheguei. Meu estado de saúde também não era bom. Também fiquei adormecido por alguns dias.

...Será que isso fazia parte de uma rotina de tratamento?...

...Será que, para que as pessoas pudessem começar a se adaptar a uma nova realidade em suas vidas, aquele período de inércia era necessário?... Mas, por quê?...

Senti de forma explícita, que meu amigo médico, não desejava mais falar sobre o caso, assim que ele desviou o assunto questionando se eu estava com saudades da vida no Mar. Ele deve ter notado que passei a noite, e boa parte da manhã, dentro do meu barco.

Respondi que sim. Afinal, por mais bem tratado que eu estava sendo, o Mar parecia a todo instante, insistir para que eu retornasse a seus braços. Por mais vaga que deva ter sido minha resposta, eu sentia que ele compreendia perfeitamente.

Não demorou muito, para que o Velho anfitrião, surgisse como que do nada à nossa frente. Com seu doce sorriso nos lábios, comentou sobre minha desenvoltura, quanto ao resgate do casal. Me senti feliz. Pois, eu havia sido útil, talvez da mesma forma como fizeram comigo.

O velho conceito de que precisamos, servir uns aos outros, se fazia presente novamente, sem a necessidade de maiores comentários. Assim era a vida. Assim deveria ser em qualquer espécie de vida.

Eu continuava jogando com as mais diversas possibilidades, para justificar o que acontecia. Um jogo – confesso – macabro, meio que de adivinhações, suposições que constantemente beiravam o absurdo.

Um jogo onde eu tentava descobrir e provar a mim mesmo, se eu ainda estava vivo ou não. Mas assim era, assim parecia continuar. Eu dedicava um enorme esforço, para não me deixar ser levado pela precipitação, pelas conclusões puramente racionais. Eu não desejava mais inserir nos mesmos erros do passado.

Assim como o nascer do Sol trazia consigo uma demanda de energia imensurável, o seu partir, daquele dia, não deixava por menos. Ele se deitava à nossa frente, cintilando em todas as direções, despedindo-se como quem estava feliz, por cumprir com o seu dever.

Nós, os três, sem perceber, paramos para contemplar mais aquele derradeiro milagre da natureza.

O dia seguinte amanhece chovendo. Ainda deitado, eu pensava exatamente há quanto tempo, eu não contemplava uma boa chuva. Sempre, durante toda minha vida gostei e gosto muito de uma boa chuva.

E naquele dia, em mais algum pedaço do paraíso, ela descia dos céus, como que abençoando toda a criação, enchendo de vida, de cor, de mais magia ainda à nossa existência. Como havia dormido no Gaivota, eu podia contemplar as gotas que escorriam pelas escotilhas, envolvido naquele aconchegante som tão característico.

Novamente eu me sentia muito estranho, estar dentro de uma embarcação, e ela manter-se solidamente firme. Não era somente minha percepção que se manifestava, mas os desejos mais profundos do meu coração.

Eu desejava mesmo voltar ao Mar. Não sei se apenas por saudade, ou porque algo me dizia que ainda, minha viagem não havia terminado. Eu, inconscientemente fazia planos...

...Aproveitando que minha embarcação estava em terra, eu poderia tirar as cracas do casco, fazer a manutenção do mastro e cabos, alguns reparos na cabine, que eu já vinha adiando há um bom tempo...

Esse devaneio enchia meu coração de alegria. Não demorou muito para que começasse a ouvir a pequena aldeia acordar. Apesar da chuva, a temperatura ainda assim, mostrava-se muito agradável. Eu podia ouvir pessoas passando próximo ao gaivota, conversando, comentando sobre o tempo...

Levantei-me. Preparei um dejejum com os alimentos desidratados e sai para mais um dia em minha vida. Desejava obter informações sobre o casal, desejava mais informações de onde eu estava, o que, realmente havia acontecido comigo.

Assim que me aproximei do quiosque maior, com seu enorme telhado de vime, pessoas lá embaixo, pareciam também contemplar a chuva. Sentei-me em um dos bancos e mais uma vez, lancei meus pensamentos ao longe, embalados pelo encanto daquela água que descia dos céus.

Quando voltei a realidade, fui tomado de súbito pela imagem de um garoto à minha frente. Na chuva, molhado, ele estava parado, me olhando. Calculei não ter mais de 13 anos. Com a pele marcada pelo Sol, seu corpo esguio, parecia sumir dentro da roupa larga e clara.

Descalço, como quase todos ali, ele usava uma bermuda e camiseta. Uma aparência triste, reflexiva, de quem procurava mais observar do que mesmo se manifestar.
Sem dúvida, um rapaz totalmente diferente do comum. Mas foram os seus olhos, os seus olhos que me arremeteram ao meu passado.

Na minha infância, tive muitos problemas de adaptação com o meio. Sempre fui uma criança retraída, de pouquíssimos amigos. Quase não brincava. Passava boa parte do meu tempo lendo, escrevendo ou desenhando. Assim eu me comunicava com o mundo.

Eu era constantemente recriminado por essa característica, o que causava-me um certo incomodo que só agora eu percebia; eu os carregava até hoje. Quando retornei desse devaneio ao passado, o jovem não estava mais à minha frente. Procurei-o ao redor em vão.

Olhando para o céu, percebi que aquela chuva duraria pelo menos todo aquele dia. Apesar de adorar aquele clima, uma tristeza parecia invadir o meu coração sem pedir licença. Por mais uma vez, minha vida inteira, passava pela minha frente.

Momentos de muita, muita reflexão. Não sei precisar quanto tempo fiquei ali mesmo, sentado, pensativo, deixando ser levado pelas imagens do passado. A água que descia do telhado de vime, fazia possas na areia, por quase toda volta.

A brisa, as vezes trazia respingos até meu rosto, tentando me trazer de volta. Sem dúvida, mais um daqueles momentos que ficariam para sempre registrados em minha mente.
Mais tarde, fiquei sabendo que o casal passava bem. Se recuperavam dos ferimentos e em breve, teríamos uma festa em homenagem a eles.

Mais uma vez pensei seriamente sobre as idéias que eu fazia do paraíso. Poderíamos estar todos mortos ali, obviamente sem ainda termos essa consciência. Aqueles dias, aquela convivência com entidades superiores, poderiam ser uma preparação para outra fase, ou coisa assim.
Eu não sabia!

Mas, por mais absurda que essas idéias poderiam parecer, pelo menos explicavam quase a todas as perguntas que eu fazia a mim mesmo. Por mais uma vez, eu não desejava me antecipar aos fatos. Acreditava mesmo que, essa consciência, viria com o tempo, como a minha própria aceitação dos fatos.

Na manhã seguinte, o Sol reinava soberano novamente. Assim que me levantei, fui caminhar pela praia. Ainda com pouca luz, o Mar em seu bramido me dizia coisas que só mesmo o meu coração podia decifrar. Dessa vez, a minha razão não se importou com o fato. Eu me sentia bem, disposto a continuar.

Voltei para a aldeia, conversei com algumas pessoas, e logo me coloquei embaixo do Gaivota, com algumas ferramentas, raspando o seu casco. Não havia muita craca. Constantemente eu fazia esse tipo de manutenção, mesmo com a embarcação dentro d’água.

Mas essa atitude, para mim mesmo, dizia que eu estava mesmo, era me preparando para mais uma viagem. Fiquei concentrado no que fazia, imaginado quantas milhas e milhas náuticas aquele casco branco, de fibra, já havia percorrido. Até que sou interrompido pela presença do mesmo rapaz de ontem.

Percebi que ele me observava atentamente, da mesma forma como eu costumava fazer na minha infância, de longe, com receios, mas desejando se aproximar. Parei por alguns instantes e antes que ele, tímido, se retirasse novamente, procurei conversar.

– Bom dia! – Cumprimentei-o.

Ele esboçou um leve sorriso, respondendo com a cabeça, dando um passo à frente.

– Como é seu nome?

– Antônio senhor – Respondeu ele, ainda com muita timidez, dando mais um passo à frente.

– Você já havia visto um barco como o meu antes?

Perguntei, mesmo sabendo que sua resposta seria positiva. Aquela ilha, deveria ser freqüentemente visitada por grandes embarcações, mas eu desejava manter algum diálogo e, não sabia o que dizer. Ele responde que sim, ainda restrito em suas palavras, até que se encoraja a falar mais.

– Já vi muitos barcos, mas o seu, me parece especial.

Sua afirmação me deixou emocionado. Me pareceu sincera e absolutamente convincente.

– E o que o faz achá-lo especial?

– Não sei. Mas é especial, diferente, não sei explicar.

– Você quer conhecê-lo por dentro? – Questionei.

Seus olhos imediatamente se encheram de brilho. Ele deveria estar desejando isto há mais tempo. Convidei-o subir a bordo. Mais animado, ele chegava ao convés tentando olhar tudo ao mesmo tempo.

Lembrei-me da primeira vez que eu pisei em um convés, e toda a sensação que tive. Naquela época, eu já sonhava com os veleiros sem mesmo nunca ter visto um à minha frente. A cidade onde morava, São Paulo, a praia mais próxima ficava a pelo menos 80 km de distância.

Eu brincava com pequenos barcos que eu mesmo fazia com latas de sardinha, em uma enorme bacia de alumínio, nos fundos do quintal. As imagens que eu tinha dos veleiros, eram páginas arrancadas de revistas, jornais, que já guardavam o meu mais profundo desejo de viver no Mar.
Descemos até a cabine. Ele olhava em volta, acima e abaixo, atônito, impressionado.

– E então o você acha? – Perguntei.

– É mais bonito do que eu imaginava. O senhor deve ter navegado muito com ele. – Afirmava Antônio.

– Sim! Nesses últimos anos, esta tem sido a minha casa. Naveguei muito, mas não tanto quando ainda desejo.

– Quando o senhor ira partir?

– Ainda não sei. Preciso aprender mais alguma coisa por aqui.

– Eu também sei que preciso aprender muitas coisas ainda em minha vida. – Concordando comigo, o jovem falava a mesma coisa.

Fui tomado de surpresa. Aquele rapaz não só me fazia lembrar de toda minha infância, como também demonstrava e muito, ter atitudes como as minhas. Há semanas atrás, na última ilha em que estive ancorado, com o velho Mestre, tive a sensação de estar me vendo há muitos anos à frente.

E agora, o inverso acontecia lentamente, à medida com que conhecia o jovem Antônio. Ele me fazia olhar o passado. Ver-me nitidamente na criança que fui. Naquele instante, eu desejava conhecê-lo mais e mais. Ver até onde seria possível nossas afinidades, nossas coincidências.
Sentamos. Perguntei sobre onde morava, sobre seus pais...

Ele me disse que um acidente havia levado sua mãe, ainda quando ele era muito criança, não se lembrando dela. Quanto ao pai, estava na América, trabalhando. Ele vivia com uma avó, uma senhora idosa, mas que o tratava muito bem.

Estudava junto com outros jovens, na única sala de aula da aldeia, e que todos cursavam juntos, independente da idade. Uma única professora, ensinava-os o básico para a escrita e a leitura, com algumas informações sobre o mundo. Sem dúvida, um ensino rudimentar, assim como o próprio lugar.

Ficamos conversando por algumas horas. E à medida com que eu o conhecia melhor, mais me convencia de estar diante do meu passado. Fomos almoçar juntos. Perguntei a ele sobre seus amigos, o que faziam por ali. Sua resposta foi incisiva:

– Não costumo ficar muito com eles. Tenho mais amizades com os adultos, além do mais, prefiro ler, escrever, do que ficar correndo por ai.

À partir daquele momento, eu já não me surpreendia mais. A cada pergunta, a cada resposta, eu me via nitidamente naquele garoto. O que eu agora poderia aprender com tudo isso?

A tarde chega e com ela uma brisa maravilhosa balançava as folhas dos coqueiros, espalhados por toda orla. Convidei meu novo amigo a me ajudar com o Gaivota. Mais uma vez ele demonstrou muita alegria com isso.

Dei-lhe uma espátula, mostrei como fazia para retirar as cracas sem danificar o casco de fibra e com o cuidado para não se ferir.

Antônio muito concentrado, realizava o trabalho com dedicação. Quando a noite nos dava seus primeiros sinais, já estávamos quase terminando. Enquanto trabalhávamos, conversamos sobre muitas outras coisas.

Prometi a ele, que após a manutenção que fazíamos, eu colocaria novamente o Gaivota na água e que, velejaríamos juntos.

Aos poucos, eu percebia que dedicava a ele, toda a atenção que eu nunca tivera de um adulto, quando criança. Talvez mesmo, eu estivesse, com essa atitude, suprindo uma enorme lacuna que eu trazia desde a minha infância, devido ao meu comportamento atípico.

E com isso tudo, eu me sentia cada vez melhor, como que, depois de muitos anos, eu estivesse curando algumas feridas da minha própria personalidade. Aliás, eu estava me sentindo muito bem.

Assim se passaram outros dois dias. Depois de polir e encerar todo o casco, minha embarcação brilhava como nova, reluzindo toda luz do Sol que nela tocava. Fomos informados sobre a festa que seria realizada mais à noite, em homenagem ao casal que se recuperara de forma inacreditável.

Mais uma festa. Por mais uma vez, o ritual se repetiria, assim como devia ter acontecido com todos que ali chegaram.

Na manhã seguinte, pedi ajuda aos pescadores, para que nos auxiliassem a recolocar meu barco na água. Junto com cerca de 30 homens, habituados a despenderem de muita força física, aos poucos, deslizávamos o Gaivota com a ajuda pequenos roletes de madeira, até a praia em frente, que com a maré alta, ficava à poucos metros.

Pronto. Agora minha embarcação estava em seu devido lugar. Subimos a bordo, eu e o jovem Antônio. Naveguei até uma profundidade segura para lançar a bolina e surpreendi meu convidado, com o convite para que ele assumisse o timão.

Seu sorriso parecia não caber em sua face. Mais uma vez, eu estava realizando ao garoto, um sonho frustrado que eu carregava comigo. Na verdade, apesar de todo meu amor ao Mar e aos barcos, só quando adulto, apenas quando tive condições de juntar dinheiro para adquirir um pequeno veleiro, usado, da classe laser com cerca de 14 pés, mais parecido com uma banheira, que eu pude finalmente viver este prazer.

Ele no entanto, muito jovem, tinha suas mãos conduzindo um veleiro de quase 40 pés, com tudo de mais moderno que a navegação atual poderia oferecer. Sim. A felicidade que eu podia proporcionar ao rapaz, completava alguns ciclos que ainda faltavam em minha vida.

Não demorou muito para ele, amante da navegação, expor todo seu instinto natural para a coisa. Enquanto navegávamos, eu lhe explicava os fundamentos básicos da captação do vento, posicionamento do leme em relação a retranca e coisas assim.

Velejamos por toda aquela tarde, circundando a pequena ilha por várias vezes. Ao voltarmos a terra, eu percebia nitidamente o cansaço do rapaz com o feito de hoje. Ele já falava que agora, possuía toda a certeza do mundo, do que desejava para sua vida; ter um veleiro, e sair pelo mundo para continuar aprendendo.

Todo esse filme passava novamente diante dos meus olhos, cheios d’água, como um antigo vídeo onde eu conseguia entender como nascem os sonhos, os desejos em nossas almas.

Enquanto ainda caminhávamos em direção ao quiosque maior, o novo herói do vilarejo, era fitado por olhares atentos dos outros meninos, que talvez invejosos, puderam ver o rapaz conduzindo minha embarcação.

O meu aprendizado continuava. Todos eles, que brincavam enquanto eu e o rapaz trabalhávamos no Gaivota, poderiam ter se aproximado, assim como fez Antônio. Mas a vontade de aprender, de procurar pelo conhecimento, fez com que apenas quem se dispõem a ele, tivesse a recompensa de sua busca. Nada, absolutamente nada cai do céu, de graça, se não nos dispomos a buscá-lo.

Depois do jantar, eu precisava caminhar um pouco. A praia iluminada pela noite clara, fazia-me esse convite irresistível. Por mais uma vez, eu tinha uma grossa areia massageando meus pés. As gaivotas, recolhidas, dessa vez não me faziam companhia.

Eu precisava mesmo era ficar só. Só com os meus pensamentos. Eu tinha muito o que refletir sobre todos esses meses desde que sai de Ubatuba. Confesso que até então, não havia uma definição do que de fato, poderia estar acontecendo. As hipóteses se avolumavam uma sobre as outras, sem uma conclusão plausível.

Mas, afinal de contas, durante toda minha vida, a certeza parecia passar sempre à alguns metros à minha frente mas, nunca chegando definitivamente.

...Seria a vida assim mesmo?...

...A velha teoria do conceptualismo estaria correta, onde na verdade vivemos uma grande ilusão, onde a verdade está exatamente onde desejamos que ela esteja?...

...Dessa forma, eu também poderia explicar tudo...

...Sendo a verdade relativa, ela existe exatamente da forma como acreditamos nela. Assim, cada um possui a sua verdade, terminando por forjar o seu próprio mundo, baseado em suas crenças, totalmente independente de uma suposta verdade suprema...

Devaneios. Devaneios e mais devaneios. Mais uma vez lá estava eu viajando dentro dos meus pensamentos, buscando no fundo da minha alma, às respostas que tanto procurava. E agora, por mais uma vez, todas as evidências se manifestavam no sentido de que, a verdade absoluta que eu tanto procurava, talvez não existisse mesmo.

O que realmente insistia em se mostrar como verdade, era “verdadeiramente” a minha crença, ou seja, a verdade estaria dentro do que cada um realmente acredita como verdade.

Dentro dessa teoria, eu tentava então explicar todos esses últimos acontecimentos. Tudo isso que eu estava vivendo, de certa forma, foi sempre o que desejei na vida.

Essas experiências, essas pessoas que surgiam pela frente, mostravam-se retratos vivos de tudo que eu fui na vida, e de tudo que eu gostaria de ser. E vivendo esse momento, eu conseguia uma realização quase que total, fazendo o que mais amava, vivendo da forma que sempre sonhei.

Na volta ao vilarejo, encontro com o velho anfitrião, outra fonte de puro conhecimento e sabedoria. Ele, preocupado comigo, questiona-me se pretendia partir, uma vez que minha embarcação estava novamente na água.

– Não sei Sr. Ainda me encontro confuso.

– Sinto que você precisa de mais tempo para refletir. Acredito que ainda não é uma boa hora para sua partida. - Afirmava ele, com a nítida impressão de que estava evitando dizer que eu não poderia partir ainda.

Aquilo me deixava mais confuso ainda. Voltei para o Gaivota. Agora sobre a água, eu sentia como se as coisas estivessem no seu devido lugar. Resolvi escrever um pouco. Ainda incomodado, escrever parecia uma boa maneira de tentar clarear um pouco mais minhas idéias.

Já com meu notebook sobre a mesa de navegação, eu relatava sobre minhas últimas impressões. Vez por outra, minha atenção era desviada pela imagem dos rádios, do telefone por satélite, que permaneciam desligados por vários dias, desde que cheguei naquele lugar.

Ainda tentando manter a concentração no que fazia, aqueles aparelhos definitivamente não me permitiam. Até que, acabei cedendo.

Liguei o rádio. Boletins meteorológicos eram transmitidos em vários idiomas. Liguei o telefone. Por mais uma vez em vão, tentei um contato com meus familiares. Voltei a escrever. Percebi de forma nítida, que a saudade me incomodava. Mesmo assim, continuei escrevendo.

Entre um gole de rum e meu cachimbo, eu entrava pela madrugada. Pela escotilha à estibordo, eu podia ver que a aldeia dormia tranqüila. Até que para minha surpresa, o telefone se manifesta; minha filha Milena, me fala do outro lado. Imediatamente me senti feliz, aliviado por estar em contato com minha família.

Depois de saber que todos estavam bem, ela, expressando um tom nervoso, expressava sua preocupação comigo.

– Pai, você precisa parar de assustar a todos nós. Há quase um mês que não temos notícias.

Perdi completamente o sentido. Fiquei mudo, estático, sem conseguir esboçar nenhuma reação. Essa era a prova mais contundente de que, definitivamente eu estava vivo. A medida que fui me acalmando, pedi desculpas, tentando explicar que tive problemas com o equipamento, mas que estava tudo bem, dizendo que em breve eu estaria de volta.

Perguntei como estavam e me despedi enviando beijos a todos, prometendo estar mais em contato com eles. Caso eu não o fizesse, por algum motivo técnico, que eles tentassem me ligar.
De certa forma, essa não era a primeira vez que eu deixava de manter contato. Em minhas muitas viagens, já havia ocorrido situações semelhantes, o longo período de silêncio desta vez, foi o que assustou-as mais.

Voltei ao notebook. Senti que precisava escrever mais buscando entender melhor toda essa situação.

Confesso que mesmo sendo tarde, perdi completamente a vontade de dormir. Em minha mente, mesmo que já – de certa forma – habituada aos fatos estranhos que vinham acontecendo desde que decidi fazer essa viagem, agora algo parecia determinante.

Primeiro pensei sobre a possibilidade de estar em contato com seres de outros sistemas, devido as manchas escuras, enormes, velozes, que circundaram sobre o Gaivota durante a forte neblina.

Depois realmente acreditei que poderia estar morto, sendo preparado, por uma entidade mais evoluída, ao aceitar esse fato, como o velho Mestre que se manifestava em minha própria pessoa, com muito mais idade. Assim que cheguei a esta pequena ilha, eu fora recebido e tratado como alguém que – definitivamente – estava entrando no reino do céus.

Conheci um jovem que, nada mais nada menos, se mostrava ser eu mesmo, durante a minha infância. Levantei hipóteses e mais hipóteses com relação ao conceptualismo e suas influências que me acompanharam durante toda a minha vida. Tudo isso em quase 3 meses que estou no Mar, e agora minha filha, me liga mostrando definitivamente que estou vivo, arremetendo assim, qualquer outra possibilidade até então levantada.

Me joguei no pequeno sofá. Levei as duas mãos a cabeça, gesticulando um enorme não. Definitivamente eu não entendia mais nada. Era só me colocar em uma determinada linha de raciocínio, na tentativa de entender o que estava acontecendo, que logo em seguida uma nova situação aparecia, destruindo por completo tudo que vinha sendo construído.

Desliguei o pequeno computador. Pelo menos momentaneamente eu não possuía condições de manter qualquer raciocínio que fosse. Pensei em descer até a praia, procurar por nosso Anfitrião e com isso, tentar esclarecer de uma vez por todas, todos esses mistérios. Mas, assim que subi ao convés, a madrugada avançava firme em seu rotineiro curso.

A aldeia e todos que lá habitavam, deveriam estar entregues ao mundo dos sonhos. Aliás, o que eu também deveria estar fazendo.

Voltei para dentro da cabine, senti que a luz estava mais ofuscada, como que indicando que o nível das baterias do Gaivota pudessem estar baixo. Assim que olhei os instrumentos, se confirmava minha suspeita.

Percebi que eu estava sentindo fome. Um tipo de fome que não sentia há muito tempo. Olhei para as bússolas. Estas, perfeitamente mostram estarem operantes sem nenhum resquício de mal funcionamento. Notei que os rádios continuam transmitindo os boletins meteorológicos sem nenhuma interferência.

O sistema de telefonia por satélite ainda há pouco, permitiu-me falar com minha filha. Novamente eu estava usando os meus óculos e, realmente percebi que voltava a precisar deles. Ou seja, tudo parecia ter voltado ao normal, de um instante para o outro.

Mesmo que eu ainda me encontrasse sem uma definição capaz de explicar racionalmente tudo que aconteceu nessa viagem, uma fato era certo, tudo parecia voltar a sua normalidade. Em um instante como esse, nada melhor que tomar algumas doses de rum, acender meu cachimbo, e dar tempo ao tempo. Com certeza, se eu persistisse mais nessa busca por respostas, perderia de vez o equilíbrio racional que ainda sustentava.

Não sei precisar por quanto tempo ainda permaneci acordado, bebendo, fumando, pensando em tudo. Me recordo que acordei, com o barulho de alguns garotos nadando envolta do Gaivota. Sai até o convés.

Eles se divertiam como nunca, brincando, mergulhando, passando por baixo da embarcação. Sem dúvida, apesar da minha péssima noite, o dia se mostrava lindo. Pela posição do Sol, eu acreditava ser umas 08:00h aproximadamente. Como eu estava apenas de bermuda, não resisti ao ímpeto de pular na água, para o delírio dos garotos.

Aquele mergulho gelado, o choque térmico, poderia despertar minha mente mais do que nunca, para naquele dia em especial. E eu, precisava resolver muitas questões.

Nadei na companhia de meus pequenos amigos até a praia. Assim que comecei a caminhar, a visão da pequena cachoeira me convidava para mais um banho. Mais um banho que dessa vez certamente seria com águas mais frias ainda.

Me sentei sob a água que caia forte em minhas costas, sobre a minha cabeça. Era tudo o que eu mais precisava para decidir o que fazer. Depois de alguns minutos, já refeito, fiz um rápido dejejum que ficava servido a todos no galpão principal, e definitivamente fui procurar o velho Anfitrião.

Conte-lhe praticamente tudo que ocorrera comigo desde o início daquela viagem, até finalmente a ligação que recebera de minha filha, na noite anterior. Ele pacientemente ouvia e, acima de tudo observava-me com uma atenção toda especial. Quando terminei, pedi seu conselho, sobre como proceder, o que fazer agora. O velho esboçou um pequeno sorriso e segurando a minha mão, começou a falar:

– Meu filho, você pôde desfrutar de uma experiência que poucos mortais tiveram a oportunidade em suas vidas. Em toda minha existência, pouquíssimas vezes pude presenciar um fato como este. Mas eles existem. Você é a prova mais concreta de tudo isso.

– Sinceramente, todo o conhecimento que me é permitido neste plano, não é suficiente para te explicar o porque você precisou vivenciar essa experiência. Um detalhe no entanto é muito claro para mim: já é hora de você partir. Não para continuar adiante com essa tua viagem, mas sim, para retornar ao ceio da tua família pois ela, ainda precisa de você. Acredito que essa viagem, já lhe proporcionou tudo o que você precisava por este momento.

No fundo, eu sentia que meu coração – mesmo sem uma compreensão – concordava plenamente com essas colocações. Desde que falei com minha filha, uma saudade absurda tinha invadido a minha alma, desejando controlar os meus passos. Eu me sentia totalmente satisfeito com tudo o que essa viagem havia me proporcionado.

E mais, eu sabia que ainda para voltar, eu precisaria, seguramente, de pelo menos uns 30 dias navegando quase que ininterrupto. Durante esses longos dias de extrema solidão, eu teria tempo mais do que suficiente, para pensar, analisar melhor tudo que eu vivi nesses quase 3 meses.
Ainda segurando a sua mão, a mesma mão que dias atrás havia me curado, agradeci profundamente.

Agora então, era hora de preparativos. Eu não pretendia parar mais, assim que levantasse âncora. Para isso, o Gaivota teria que ser abastecido de tudo que poderia garantir esse retorno tranqüilo e seguro.

Dessa vez no entanto, eu sentia ser necessário traçar detalhadamente uma rota, determinando os locais de paradas, onde eu apenas dormiria um pouco, como também desviando da rota dos navios mercantes, que constantemente cruzam o Atlântico.

Além do mais, provisões teriam que ser embarcadas. Uma revisão mais detalhada em todo o sistema de navegação precisaria ser feita, ou seja, tudo aquilo que não fiz para chegar até onde eu me encontrava.

Já se aproximava da hora do almoço. Meu corpo, agora mortal, mais mortal do que nunca, necessitava repor suas energias. Caminhando para o galpão maior, onde seria servido o almoço, encontro com o casal de franceses, caminhando de mãos dadas. Confesso que a saudade de minha esposa marcou forte presença naquele momento. Como eu desejei de tê-la junto comigo ali também.

Percebi que os franceses não iriam almoçar, passaram direto em frente ao galpão. Talvez, pensei comigo mesmo, eles não precisassem mais desse tipo de alimento.

A tarde se mostrava presente. Decidi começar meus preparativos com a rota a ser traçada. Enquanto caminhava para a praia, encontrei-me com Antônio. O jovem se mostrava ainda encantado como o meu barco. Convidei-o a subir a bordo. Eu pretendia começar a ensiná-lo sobre as cartas marítimas, o uso da bússola, do compasso e coisas assim. Um dia, quem sabe, ele poderia estar traçando o seu próprio destino.

Então, com todos os instrumentos voltando a funcionar perfeitamente, não foi difícil saber com extrema exatidão onde eu estava. De certo que aquela ilha, não constava nos mapas, muito menos nas cartas. Mas, o GPS era capaz de indicar através de um ponto no meio do oceano, onde nos encontrávamos. É evidente que eu entendia tudo isso.

Com certeza, se no futuro eu ou qualquer outra pessoa tentasse encontrar novamente aquela mesma ilha, de forma proposital, ela simplesmente não estaria mais lá. Como eu previa, até que eu pudesse estar de volta à minha família, muitas dúvidas seriam esclarecidas, cada uma em seu devido tempo.

Apesar de Antônio mostrar alguma tristeza com a minha partida, logo ele se entusiasmava em me ajudar com os preparativos. Vê-lo trabalhando, eu era capaz de ver exatamente o que ele faria no futuro, assim que possuísse a sua embarcação.

Eu não entendia esses detalhes de dimensões perfeitamente, mas sabia que aquele garoto era eu. E que no fundo, tudo que eu pudesse ensinar a ele agora, eu sentia que me seria extremamente útil em um futuro.

Não definitivamente eu não era capaz de entender tudo isso, mas vibrava dentro de mim essa certeza. Um sentido maior estava por trás de tudo e que, justificava-o plenamente.

Não foram necessários mais do que três dias, para eu estar preparado para partir. Depois que decidi voltar, eu já havia me comunicado com a minha família várias vezes. De agora em diante, essa comunicação era pelo menos uma vez ao dia. Até que numa linda manhã, com o Sol ainda tentando se levantar, agradeci, me despedindo de todos, levantando âncora.

Como nas vezes anteriores, evitei olhar para trás. No fundo do meu coração eu sabia que, se o fizesse de nada adiantaria. Aquela ilha e todos que gentilmente me receberam, simplesmente não estariam mais lá.

Dessa vez, o Gaivota e eu, não tínhamos a mesma brilhante performance que nos levou até onde chegamos. Em minha ida, certamente eu contei com poderosas forças que me conduziram pelos melhores caminhos.

Agora, no entanto, eu dependia dos equipamentos, de todo o meu conhecimento náutico para retornar em segurança. E com isso, mais e mais detalhes aos poucos se encaixavam dentro desse enorme quebra-cabeça.

Agora, a fome, o cansaço físico e mesmo mental, se faziam presentes. O tempo, não se mostrava sempre tão favorável. Por vezes, precisei refazer a rota, desviando de tempestades anunciadas de forma providencial pelos boletins meteorológicos. Mas nada, absolutamente nada que pudesse colocar em risco, esse meu retorno.

Já na costa brasileira, ainda com várias questões agulhando meus pensamentos, uma em especial se mostrava mais marcante:

...Por que eu?...

...Por que será que passei por essa experiência?...

Essa pergunta certamente habitaria meu coração por muitos anos. Mas, um detalhe devia ser analisado e acima de tudo aceito. Mesmo não tendo a compreensão deste “por que” uma coisa era certa: eu precisava viver essa experiência. O tempo, quem sabe, traria essa compreensão. Mas, também caso não a trouxesse, não teria importância.

Com certeza, William Shakespeare tinha razão: “Entre o céu e a terra, existem mais mistérios do que a nossa vã filosofia pode imaginar”.

Mas, de tudo isso, um fato eu podia entender perfeitamente, eu estive, com toda certeza, “Do Outro Lado”.









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