Livro - Do Outro Lado



m. trozidio


Do Outro Lado


inverno de 2001

Prefácio

Assim deve ser! Então, que assim seja! 

Amanheceu! O Mar, como um enorme espelho cristalino, mostra-se calmo e tranquilo. O ar fresco da manhã, úmido, invade minhas narinas procurando libertar meus pensamentos agrilhoados ao tempo. Em resposta, adiante, algumas gaivotas, dançam mais livres do que nunca o seu voo mágico, encantador, na busca pela continuidade.

Respiro fundo, jogo a cabeça para trás, tencionando a nuca, procurando entender um pouco mais tudo isso. Percebo um certo esforço do Sol, em se mostrar à Terra, mas nuvens robustas, lhe negam passagem. O Mar continua calmo. Parece que ele procura, de certa forma, envolver-me em seus movimentos contínuos e encantadores.

Conforme continuo caminhando, a areia massageando os meus pés, paralelamente os pensamentos persistem. Olho para trás, olho para frente, olho para os lados e não vejo ninguém. O vento tocando o meu rosto, os meus ouvidos, parece querer me dizer algo, alguma coisa que eu nunca entendi.

Uma onda um pouco mais forte chega aos meus pés. A sensação da água fria, tenta me acordar, me despertar de um sonho acordado de toda essa grande ilusão que aprendemos a chamar de vida. Mas, com as raízes do passado, com os mórbidos conceitos sociais, não consigo libertar os meus pensamentos dessa força magnética que tenta, de todas as formas, me arrastar, me envolver e me digerir nessa corrente coletiva.

Percebo toda essa natureza, com todo seu sincronismo matemático, em perfeita harmonia, divergir de forma radical ao filme que se passa dentro de mim. Procuro ainda assim, mais uma vez arremeter meus pensamentos além das fronteiras arqueadas pelo meio, um lampejo, um flash, um suspiro de verdade surge lá no horizonte. Imediatamente a paz, a felicidade brota das entranhas da minha alma, como um veio de água fresca em pleno deserto, dispersando as nuvens de ébano, brilhando com o Sol da manhã e toda sua plenitude, deixando meu coração feliz.

Como por encanto acontece, por encanto termina. Quando lançado à consciência, quando vibrando com toda essa luz, essa plenitude, as raízes dos limites, a imposição do meio com seus milhões de braços e mãos, me puxam de volta, torturando-me pela ousadia implícita do pensar diferente, castigando-me com a solidão de ficar só em meio à multidão. Torno a calar meus pensamentos. Torno a mergulhar na tristeza e na amargura da ignorância.

Ainda assim, vejo de forma doce e suave, como esse dia cumpre todo seu ritual ao despertar, prosseguindo, como se tudo que o compreende estivesse em perfeita harmonia, transbordando felicidade.

Essa imagem, parece ficar gravada em minha mente. Sinto que jamais poderei apagar esse quadro, essa pintura da lembrança. E assim prossigo. Assim caminho. Assim penso. E assim, continuo escrevendo...

m. trozidio


 CAPÍTULO – 1 

...Acordei! Como sugado de um profundo abismo, o som estridente de um motor, passando próximo, me fez ficar esperando pelo balanço característico do deslocamento da água. Não demorou mais de cinco segundos e eu já estava sentindo o Gaivota com suas mais de seis toneladas se mexendo um pouco mais do que o normal. Ainda com os olhos e os pensamentos embaçados pelas horas de sono, olho para as escotilhas, lá fora, o Sol insistente, procura invadir a minha cabine, pedindo, suplicando para que eu desperte para mais esse dia de vida...

...Respiro fundo! O ar fresco da manhã, num misto com a maresia invade o meu corpo, trazendo consigo toda sua inesgotável energia renovadora e junto dela, todo o poder desse novo dia. Esfrego os olhos. Tento alongar o corpo. O gosto do rum amanhecido, misturado com o tabaco, de forma desagradável, ainda insiste em permanecer em minha boca. Por mais uma vez, eu juro a mim mesmo que diminuirei com o meu cachimbo e com a bebida, mais uma das promessas que faço quase todos os dias...

Por mais que tentasse entender, eu não sabia explicar, mas naquele dia em especial, naquele dia eu estava muito, muito estranho, mais estranho do que o habitual. Assim que subi ao convés, tentando acordar definitivamente, o Sol refletindo na água, arremeteu um brilho intenso nos meus olhos, ofuscando-os por completo. Por mais que ainda eu me sentisse bem naquela manhã, naquela marina, naquele instante, algo me dizia secretamente que eu deveria partir. Partir? Sim! Partir! Partir por algum tempo, ou para sempre, sei lá. Mas..., partir para aonde? – questionei a mim mesmo ainda aturdido por ímpetos completamente desconhecidos.

Eu ainda não estava muito certo desses meus impulsos, encontrava-me confuso, sonolento e estranho, realmente eu estava muito, muito estranho.

Habitualmente, eu me levanto, escovo os dentes, lavo o rosto, coloco meu calção, uma camiseta, meu tênis e vou correr na praia. Depois, suado, cansado, mas muito bem-disposto, dou um mergulho e tomo meu banho, partindo finalmente para meu desjejum. Mas, naquele dia, algo me dizia para quebrar com essa rotina. Por uma questão de importância, hoje havia coisas prioritárias, e assim, mesmo sem saber o que eram essas “coisas prioritárias”, decidi obedecer meu coração, pois, secretamente ele tentava me dizer alguma coisa.

Estudando a natureza humana por mais de dois terços da minha vida, aprendi e acabei aceitando que o nosso Criador, realmente habita em todos os objetos de sua criação, inclusive e claro, em nós. Assim, quando permitimos, quando conseguimos silenciar um pouco nossa balburdia mental, conseguindo assim liberar um pouco de espaço vazio, podemos ouvi-lo. Isso se faz através das nossas emoções, ou seja, por intermédio do nosso coração, nosso órgão físico mais holístico, doutrina essa defendida por todos os grandes mestres, de praticamente todas as seitas e religiões. E hoje, hoje o meu coração estava me dizendo para não ir correr, Ele estava me sinalizando que desejava falar comigo.

Assim, ainda tentando driblar a constante chiadeira dos meus pensamentos e sentimentos, desci até o pequeno bote inflável, preso a popa do Gaivota e lentamente comecei a remar à terra. Eu tinha fome. Eu desejava tomar um bom café da manhã. – Desde pequeno, quando me encontrava deprimido, tenso, ou com algum problema, fazia questão de me alimentar bem, comer exatamente aquilo que mais gosto. E naquele momento, eu me sentia assim, confuso, com vontade de renovação, de mudanças em minha vida, o próprio ar parecia tentar me segredar alguma coisa, alguma coisa que eu ainda não entendia. Definitivamente naquele dia eu estava diferente.

Havia quase cinco anos que eu estava praticamente morando em Ubatuba. Desde que me aposentei, decidi realizar um dos meus maiores sonhos, que era exatamente morar dentro de uma embarcação e me entregar, de forma definitiva, à arte de escrever. De certo que esse desejo fora, é e continuará sendo muito criticado por praticamente todos que me conheciam e conhecem, mas mesmo assim, sempre foi o sonho da minha vida.

Durante toda minha existência, dedicara praticamente, todos os meus momentos de lazer ao ato de relatar minhas experiências de vida. Consegui compor vários livros, quase todos relacionados à filosofia e toda sua enigmática estrutura, chegando a publicar alguns. Tive uma vida profissional muito intensa. Como executivo na área comercial de uma multinacional da indústria farmacêutica, passei os últimos 20 anos literalmente sonhando com aquele momento sublime, o momento em que eu pudesse atirar-me ao Mar, viver tudo aquilo que sempre havia sonhado. E agora, com minhas filhas casadas, seguindo cada qual o seu caminho, com a minha esposa sempre me criticando por essa minha atitude, de nada apreciava esse meu jeito meio diferente de viver, com isso ela permanecia mais tempo com as filhas, do que comigo mesmo, mas mesmo assim, conseguíamos nos entender bem.

Durante esses cinco últimos anos, percorri a costa brasileira de ponta a ponta, chegando a atravessar o Atlântico duas vezes, até o continente Africano. Cheguei a permanecer 68 dias dentro deste veleiro, sem pisar em terra firme. De certo que alguns projetos de viagem ainda não realizados procuravam me dar o tempero especial que sempre motiva aqueles que se sentem um pedacinho do próprio Mar, mas naquele dia, desde que acordei, alguma coisa diferente realmente estava acontecendo, alguma coisa estava literalmente desestruturando antigos planos, quebrando velhos conceitos, destruindo algumas verdades que sempre carreguei, me arremetendo a um novo horizonte, não só de conceitos, mas também de vida.

Enquanto me alimentava, eu não conseguia deixar de me entregar a esses devaneios, onde ainda carregando uma certa preocupação, eu tentava entender, definitivamente o que estava acontecendo.

Sentado a uma mesa no fundo da lanchonete, eu ainda conseguia ver o Mar através de um vidro embaçado pela maresia, um vidro posicionado na parede da frente. Aquele vidro traçava um paralelo direto com os meus pensamentos que, também “embaçados” ainda tentavam entender o que estava acontecendo. Apesar da temperatura estar extremamente agradável, milagrosamente todas as manhãs são um pouco mais frias. Com aquela visão, com aquele ar fresco, abracei o meu corpo me aninhando no próprio calor, acalentando sentimentos diferentes, sentimentos até então desconhecidos. Como o Sol ainda estava muito baixo, assim como eu acordando também, às luzes do recinto ainda permaneciam acesas, mostrando-se progressivamente mais e mais fracas com o gradativo aumento da luminosidade natural, enquanto Alfredo, do outro lado do balcão, procurava organizar tudo para quando os demais fregueses chegassem. Eu estava sozinho e um arrepio percorreu por todo o meu corpo, mostrando-me novamente que alguma coisa – significativa – estava prestes acontecer. Aconcheguei-me no canto novamente entre duas paredes, como me acuando com medo do que pudesse vir. A brisa da manhã, continuava úmida me fazendo permanecer encolhido em meu próprio corpo, sentindo, vivendo a expectativa do que estava por vir. 

...A vida inteira, eu tinha procurado alucinadamente entender o motivo o por quê de tudo, e não conseguira aportar em lugar nenhum. Tudo isso, me ensinara então, a não mais questionar a vida e toda sua complexidade. Melhor mesmo – deduzia eu naquele delicado momento – seria seguir, obedecer a esses desejos que brotam no âmago da nossa mais pura essência. E, mesmo ainda sem estar entendendo nada, decidi assim fazer, soltar o leme e deixar que as correntes da vida me levassem para o meu destino... 

Terminei meu desjejum. Aliás, há muito tempo eu não comia tão bem como fiz naquela manhã. Olhei para o Alfredo, o balconista da pequena lanchonete do píer, um amigo que já havia suportado o meu mau humor e minhas noites de solidão enquanto bebericava o meu rum.

Olhei-o com ternura, estranhamente com o sentimento de quem se despede de um amigo. Lembrei-me do Luiz, do João e de outros tantos companheiros que trabalham, na manutenção, na reforma, no conserto dos diversos barcos ali ancorados e, o mesmo sentimento se fazia presente. No fundo, eu já me sentia partindo, mesmo antes de ter tomado essa decisão.

Subitamente, um desejo incontrolável de me preparar para uma longa viagem surgia imperiosamente. Eu tinha total consciência. Mesmo sem saber ainda para onde eu iria, provisões teriam que ser embarcadas, uma revisão em toda a embarcação precisaria ser feita, uma série de providências teriam que ser tomadas para garantirem a minha segurança.  

Em todas as viagens que eu havia feito até então, sempre tivera o cuidado de traçar minuciosamente os roteiros, procurando dessa forma, minimizar os riscos, garantindo assim o sucesso sempre obtido. Mas daquela vez, tudo era diferente. Eu tinha o ímpeto, uma necessidade maior de atirar-me ao Mar sem um destino, sem rotas, sem um lugar predefinido a chegar. Daquela vez, o compasso, as réguas, as cartas marítimas não seriam usadas previamente como de costume. Era assim que eu sentia que deveria ser. Era assim que uma Força Maior procurava me tirar da minha zona de conforto, era assim que o meu coração dizia que fosse.          

Em vez de voltar ao Gaivota e refletir um pouco mais sobre tudo isso, decidi dar um pulo até a cidade, eu precisava de provisões. Não sabia o que compraria, mas uma certeza me acompanhava, só ela, nada mais: obedecer àqueles meus impulsos. Inconscientemente eu iniciara ali a minha grande viagem, pura e simplesmente obedecendo sem questionamentos o que o meu coração pedia. Passei toda manhã daquele lindo e quente dia no centro de Ubatuba. Comprei mais alguns metros de cordames, 1moitões extras, alimentos desidratados e me lembro muito bem: um novo rádio para comunicação, mais moderno, com mais tecnologia e recursos. 

1Moitão: polia, roldana utilizada em barcos (principalmente em veleiros) para diminuir a força quando utilizada cordas para puxar, hastear, arriar velas, etc.   

Assim que retornei ao píer, alguns amigos, me vendo descarregar os equipamentos adquiridos e, habituados à rotina de um ancoradouro, logo suspeitaram da minha partida. De certo acreditavam ser mais uma, das muitas viagens que já fizera até então. Eles não imaginavam, porém, do sentido maior que daquela vez se fazia presente.

Ainda naquela tarde, comecei a preparar meu veleiro, revisando seu mastro, velas, amarras, roldanas e tudo mais que envolve o sistema de navegação de uma embarcação movida pelo vento. Vez por outra, um amigo, deslizando pelas calmas águas daquela baia, me questionava para onde eu pretendia ir desta vez. Procurando não ser indelicado, simplesmente respondia que seguiria para o Norte, sem um destino especifico. Eu ainda não sabia quando partiria, além de não saber se quer para onde, mas um desejo emergia aos poucos, me dizendo sim: para o Norte.  

A tarde começava a se despedir de mais aquele dia.  Com o ar mais fresco, o Sol tombando atrás das montanhas, davam os primeiros indícios de uma noite clara, tranquila, com um Céu estrelado e bonito.

Depois de um bom e relaxante banho morno, com a água aquecida pelo forte Sol do dia inteiro, nada mais justo e recompensador que premiar todo aquele trabalho com o meu ritual noturno. Eu me sentia cansado. Meu corpo pedia uma boa dose de rum, recostar-me no sofá, e sob o eterno balanço do Mar, saborear o meu velho e bom cachimbo carregado com o seu 1Borkum Riff, permanecendo assim por algumas boas horas totalmente entregue a inércia como prêmio de um dia de muito trabalho.

Como de costume, eu não consegui resistir às suplicas do meu notebook, sobre a mesa de navegação. Ele tentava me dizer que eu precisava começar a relatar essas novas aspirações, detalhes simples e inexpressivos, mas que juntos, poderiam justificar uma vida. Assim, naquela mesma noite, comecei a escrever este, que agora você tem nas mãos.  

1Borkum Riff: fumo para cachimbo produzido na Dinamarca

Após algumas horas escrevendo, o peso do dia, mais o relaxante efeito da bebida se mostraram presentes. Minhas pálpebras gradativamente ficaram mais e mais pesadas, suplicando o meu repouso e assim, atirei-me na cama e procurei dormir sem pensar em mais nada. Apesar de estar me sentindo muito bem, em paz, o fato de não saber ao certo tudo o que estava acontecendo comigo mesmo, não deixava de provocar um certo grau de preocupação com tudo isso. Mas, mais uma vez, como por um encanto mágico da natureza, fui arrastado e tragado ao mundo dos sonhos.

Durante aquela madrugada, muitos sonhos desfilaram em minha mente com toda sua confusão tão característica. Vozes obscuras como um filme de ficção científica, surgiam e desapareciam do nada. Luzes muito fortes não me permitiam uma visão clara do que estava acontecendo, Pessoas, vultos, tentavam me dizer algo que eu não compreendia. Por vezes eu levitava, ou mesmo chegava a voar, e ninguém parecia se impressionar com isso. Coisas estranhas, muito estranhas mesmo.

Porém, por mais uma vez, tudo passou, tudo desapareceu e, assim que despertei, novamente me sentia nos braços da mãe natureza, sendo embalado com toda suavidade por águas tranquilas. Não tardou para que definitivamente amanhecesse.

Quando me levantei, antes mesmo de qualquer outra atitude, liguei o rádio, a fim de ouvir os boletins meteorológicos, passados de hora em hora sob as condições climáticas de praticamente o mundo inteiro. O meu ímpeto de seguir para o norte permanecia imperioso sobre os meus instintos racionais. Aquela manhã se mostrava ótima para dar início a essa viagem sem precedentes. Instalei o novo radio, que também possuía comunicação telefônica via satélite. Com o objetivo de testar o novo equipamento, aproveitei a oportunidade para comunicar a minha família e alguns amigos mais próximo quanto a minha partida, dando como destino, o Norte do continente americano. Mesmo sabendo que fazia tudo isso, muito a contragosto da minha esposa, eu não poderia deixá-la sem informações do que eu pretendia fazer.

Com todas as provisões a bordo e tudo revisado, às 09hs30min levantei âncora, soltei as amarras, e subindo a 1vela da retranca, comecei lentamente a sair do Saco da Ribeira.  

1Vela da retranca: ou vela mestra, vela que presa ao mastro principal cuja outra extremidade é amarrada a retranca, que gira quase 360 no mastro principal.


CAPÍTULO – 2 

Era uma linda manhã de quarta-feira. Apesar do inverno, a temperatura mostrava-se muito agradável. O céu pintado de azul cristalino, adornado por pequenas nuvens, mantinha sob si uma brisa suave e envolvente que sibilava em meus ouvidos um segredo que eu ainda não era capaz de decifrar. Uma certa energia pairava no ar, causando arrepios estáticos de expectativa e emoção. De alguma forma eu sabia que estava cumprindo com o meu destino, mesmo que isso pudesse me levar para o outro lado da vida, ainda assim, eu estava feliz e em paz comigo mesmo. Olhei para trás, um leve rastro do deslocamento da água seguia o Gaivota desaparecendo em poucos metros. Atrás, imagens conhecidas lentamente desapareciam perdidas na distância, mas gravadas eternamente em meu coração.

Conforme as horas percorriam por aquele pedaço do tempo, o dia parecia ficar cada vez mais lindo. Embora ainda um pouco frio, a proximidade com a primavera, já, mostrava encher de encanto e cores toda a natureza. Não pude deixar de lembrar imediatamente de Dom Antônio Lúcio, o Vivaldi, que inebriado com toda beleza dessa estação, compôs a Primavera, dentro da sinfonia Quatro estações. Olhando toda aquela maravilha, não era difícil entender como esses mestres encontravam inspiração para criarem obras tão espetaculares. Eu era capaz até mesmo de ouvir o seu violino, entoando a poesia de toda a natureza, enquanto eu começava a singrar o oceano a minha frente. 

Aos poucos, eu ganhava mais e mais vento conforme me afastava da costa. Desta vez, eu não desejava costear o continente, apreciando suas maravilhosas praias, dessa vez, eu desejava seguir mar aberto, seguindo apenas e tão somente a agulha magnética da minha bússola, postada à frente da roda do leme, apontando para o Norte, assim como a proa do Gaivota. Incrível, eu já havia feito esse percurso incontáveis vezes sempre seguindo com a visão do continente, mas dessa vez, dessa vez realmente eu estava diferente, diferente de tudo que eu já havia vivido em minha vida.

Em mais algumas horas, eu sabia que estaria passando pela ilha do Prumirim, depois por Parati, em seguida Angra dos Reis, Ilha Grande, Restinga de Marambaia, Rio de Janeiro... subindo e me afastando cada vez mais da costa, deixando com ela toda segurança de ancoradouros para pernoitar.

Um ar um pouco mais gelado parecia não mais permitir que o Sol continuasse aquecendo tanto, tudo abaixo de si. Mas, mesmo assim, um brilho todo especial, refletido nas águas, agora um pouco mais agitadas, me fazia não esquecer da beleza desse astro tão importante em nossa a vida. A cada instante, a costa se distanciava mais e mais. Sentimentos conhecidos, como a euforia de uma partida e a tristeza de deixar para trás amigos, parentes, lugares que realmente nos sentimos muito bem, crescia em mim, provocando um certo aperto no peito. Tudo isso, eu sabia: fazia parte da vida e da morte, de partidas e de chegadas, assim era a vida, assim era a morte.

Realmente, a cada minuto que se passava, eu sentia, se confirmava mesmo sem eu ainda poder explicar que algo muito grande estaria por trás daquela viagem, algo que certamente transcenderia a tudo que eu já havia vivido. Mas, em vez de ficar me torturando atrás de explicações, decidi que melhor mesmo seria viver aquele momento, aquele momento que os Grandes Mestres de todos os tempos de forma unânime defendem que devemos sim viver o nosso “momento presente” em toda sua intensidade. Aliás, como eles dizem, é o único momento que pode ser realmente vivido. E foi exatamente isso que eu decidi fazer.

Na popa, com a roda do leme nas mãos, levantei a cabeça para ver a 1biruta de vento, presa no alto do mastro, ela mostrava um vento perfeitamente a favor.

 

1Biruta de vento: dispositivo que fica preso na ponta do mastro, no lugar mais alto da embarcação e que indica a direção do vento. Alguns, mais sofisticados, podem até medir a velocidade do vento.

Isso me possibilitava navegar com extrema segurança, sem ter que 1orçar muito a embarcação, aproveitando bem o vento, podendo inclusive, se eu quisesse, aumentar a velocidade, puxando mais a retranca. Mas, eu não tinha pressa, decidido que navegaria a noite toda, eu procurava mesmo era me afastar da costa e do perigo de arrecifes, corais ou pequenas ilhas sem faróis luminosos. Eu continuava sentindo a brisa tocando o meu corpo, esvoaçando os meus cabelos enquanto a proa subia e descia batendo carinhosamente no leito do oceano que a cada instante ficava mais agitado, pois, mesmo com o bom tempo, o mar aberto sempre é mais agitado do que próximo à costa.

1Orçar a embarcação: conduzir o veleiro inclinado, devido a força da vela mestra quando se deseja impor mais velocidade na embarcação.


CAPÍTULO – 3 

As horas passavam, o Sol já havia cruzado sobre a minha cabeça e agora, lentamente começava a se deitar do meu lado esquerdo. Eu sabia, pelas cartas náuticas, conversas com outros navegadores, que eu poderia seguir seguramente por aquela rota, travando o leme e a retranca, eu poderia inclusive ter – se necessário fosse – alguns minutos de cochilo durante a madrugada, o famoso 10min x 20min ou 10min x 30min (10 minutos acordados e 20 ou 30 minutos dormindo), pois, certamente não haveria obstáculos à frente,  com  exceção nos  pontos pré-determinados para a travessia dos transatlânticos, seja de turismo ou cargueiros que cruzam incessantemente os mares do mundo inteiro. Além disso, embaixo do Gaivota eu tinha colocado um pequeno sonar, que me avisaria, algumas milhas antes, caso algum coral, pedra ou qualquer obstáculo estivesse submerso, imperceptível a olho nu. Sim, eu estava em segurança. Boletins da NASA informavam tempo bom em toda aquela região, sem nenhuma previsão negativa para os próximos dias.

            Com a proximidade da noite, eu conseguia ver os últimos raios do Astro Rei se despedindo deste dia, literalmente se deitando a Oeste. A visão que eu tinha era de que o Sol lentamente mergulhava no oceano, deixando seu alaranjado desaparecer e, com isso, cedendo lugar ao cobertor negro que já se posicionava para tomar conta do espetáculo agora. Quando o céu começou a escurecer, as estrelas de primeira grandeza começaram a surgir sorrateiras, cintilando seu pisca-pisca azulado, como que chamando às demais para participarem de mais um grande show da noite, um show maravilhoso que eu, particularmente jamais me cansaria de assistir.

            Enquanto isso, o Gaivota parecia tão feliz quanto eu, sua performance me surpreendia cada milha percorrida, mostrando uma estabilidade e respostas às manobras como nunca eu tinha observado. Eu conhecia muito bem aquela embarcação. Afinal, eu morava dentro dela. Lembro que eu a comprei no Rio Grande do Sul. Ela estava literalmente abandonada havia quase 8 anos. Eu tive que trazê-la para São Paulo, rebocada por um outro veleiro, um favor que jamais esquecerei do meu grande amigo Júlio. Com muitos pontos para serem restaurados, eu mesmo trabalhei no seu conserto, por quase dois longos anos. Nessa época, ainda trabalhando no laboratório, eu tinha que descer para o litoral, praticamente todos os finais de semana. Mas, valeu a pena. Quando pronta, completamente restaurada, dentro e fora, como prova de gratidão, ela me proporcionou momentos de muita emoção e prazer, e agora, galopando comigo em alto mar, seguíamos juntos o nosso destino, felizes e realizados.  

O mesmo podia ser observado comigo. Não sei se por culpa da felicidade que eu estava vivendo, ou por algum outro motivo que eu ainda desconhecia, eu tenho que confessar que naquele momento eu também me sentia muito bem, desfrutando de um estado de consciência ainda não experimentado em minha vida. Eu sabia exatamente onde estava, o que estava fazendo naquele exato momento. Como se diz em francês, eu estava em Dèjá Vu, acreditando mesmo estar vivendo aquilo que eu já havia vivido, em algum momento, em algum lugar, sem saber quando nem onde e principalmente o porquê. Mas, eu estava bem e isso, isso sem dúvida era o mais importante naquele sublime momento.

A noite se fez completa. Não contávamos com a presença da nossa amiga Lua, mas o céu mantinha-se tão estrela, mais tão estrelado agora, que deixava a noite, sensivelmente mais clara, e que noite maravilhosa. Apesar do vento ter diminuído consideravelmente, ainda assim, era o suficiente para encher duas velas do Gaivota e nos manter firmes em nossa jornada. Vez por outra, eu podia sentir a presença de algumas nuvens que escondiam às estrelas, mas por um tempo rápido e insignificante.

Por um instante resolvi descer. Eu estava vivendo um estado de estase tão grande, mas tão grande, que confesso ter esquecido de me alimentar, de tomar água, de checar os boletins meteorológicos, ou seja, eu havia me esquecido de coisas básicas, básicas, mas necessárias para minha própria segurança. 

            Sentei-me um pouco à mesa de navegação. Olhei para as várias cartas marítimas que havia sobre ela, foi então nesse momento que eu percebi que eu não havia feito nenhum plano de navegação, nenhuma rota, não havia estipulado paradas, pernoites, onde reabasteceria a embarcação e coisas assim. Foi então e somente então que percebi que a minha vida estava integralmente nas mãos da Mãe Natureza. Eu sabia apenas e tão somente de uma coisa: eu tinha que navegar para o Norte do nosso planeta, até onde, eu também não sabia.

Confesso que essa percepção causou um certo espanto em mim mesmo. Eu nunca havia feito uma viagem, eu nunca havia me deslocado no Mar sem um planejamento antes. Eu sempre respeitei e muito o Mar por acreditar conhecer a sua força, todo o seu poder. Eu o amava sem proporções, maior prova disso era o fato de morar sobre os seus braços, mas sempre o respeitei e muito. Porém, dessa vez, sem saber explicar o que estava acontecendo, acabei quebrando com todas as regras de segurança e respeito. Mas, mesmo assim, eu não me sentia culpado ou qualquer outro sentimento negativo por essa minha atitude. Na verdade, na verdade mesmo, eu me sentia como se estivesse respondendo a um chamado. Alguém ou alguma coisa me pedia para fazer isso e mais, para fazer isso e dessa forma como eu estava fazendo e, quando você recebe um chamado, quando você atende a um pedido, não existe receio nenhum, não existe o medo, não existe a culpa e nem arrependimento. Era exatamente assim que eu estava me sentindo.

            Voltei ao convés. Mesmo estando em Mar aberto, percebi que suas águas estavam tranquilas, mais tranquilas do que normalmente vemos, confesso que achei aquilo muito estranho. Com o leme e a retranca travadas, eu seguia em frente sem que o curso fosse alterado: exatamente navegando rumo ao Norte. Mas, ao perceber que o Mar começava a ficar cada vez mais e mais espelhado, mais e mais calmo, por um ímpeto súbito, comecei a soltar a retranca, a velocidade foi diminuindo progressivamente até a embarcação praticamente parar. Arriei a vela mestra, soltei o leme e me coloquei a deriva. Foi depois de alguns minutos que eu finalmente consegui perceber como realmente o Mar estava, calmo, límpido, sereno, tranquilo e todos os outros adjetivos que eu poderia encontrar para tentar descrever algo que eu nunca tinha visto em minha vida. O Mar, alto Mar, mais se parecia com um lago do que propriamente com o oceano. O Mar se tornara um espelho gigante que refletia com toda perfeição o céu sobre nós. Eu podia ver cada estrela, cada constelação, olhar para cima ou para baixo era a mesma coisa. O Universo se transmutava em duas partes idênticas e eu e o Gaivota, nós dois entre esses dois mundos fantásticos. Sinceramente eu não sei e acredito que jamais saberia como descrever o que eu estava vendo. Infelizmente, não existem palavras, adjetivos, sinônimos capazes de explicar o que eu estava vendo e vivendo naquele mágico instante. O mais incrível de tudo isso, era que uma brisa suave ainda podia ser sentida em todo meu corpo, mas essa mesma brisa, não ondulava em nada o leito do Oceano, deixando-o completamente estático como um gigantesco espelho refletindo o próprio Universo. Fui para 1estebordo, depois voltei para 2bombordo, caminhei até a 3proa, voltando para 4popa e o mesmo cenário se repetida por toda minha volta.

            Desci imediatamente até a cabine, peguei minha câmera fotográfica e subi correndo novamente para o convés, eu tinha que registrar aquilo, mesmo sendo noite, pouca luz, eu tinha que dar um jeito de fotografar aquela cena, mesmo sem saber ainda direito como fazê-lo, pois, eu nunca fui muito bom com fotografias, mas ainda assim, eu precisava gravar aquela imagem em um outro local além do meu coração. Fiz várias fotos procurando usar alguns dos diversos recurso que o equipamento me proporcionava e    continuei maravilhado como o espetáculo que se fazia presente diante dos meus olhos.

 

1Estibordo ou boreste (EB): em termos náuticos, é o lado direito de quem se encontra numa embarcação, voltado para a sua proa.

2Bombordo (BB): é o bordo à esquerda do rumo da embarcação.

3Proa: parte da frente do barco ou da embarcação.

4Popa: parte de trás do barco ou da embarcação.

Mesmo sem consultar o GPS e as cartas marítimas, eu tinha certeza que estava ainda na direção do Rio de Janeiro. Pois, eu não havia navegado uma distância superior a isso. De certo que eu estava praticamente no meio do Oceano, entre o continente Americano e o Africano, mas traçando uma linha direta a minha esquerda, muito provável que eu estaria na direção do estado do Rio de Janeiro. O porquê de todos esses cálculos? Justamente devido às condições que eu encontrava no Mar. Novamente desci até a cabine, eu precisava calcular a latitude e a longitude. Eu precisava deixar isso registrado, pois como eu disse anteriormente, tratava-se de uma condição única. Eu nunca tinha visto, eu nunca havia lido, escutado ou assistido em TV ou coisa assim, um fenômeno como aquele, simplesmente “impressionante”.

            Depois de horas admirando e tentando entender o que poderia ter causado aquele estranho fenômeno em alto-Mar, percebi que a madrugada já havia avançado firme o seu curso noite adentro. Meu ímpeto de continuar subindo firme rumo ao Norte continuava, mesmo depois de todo espetáculo que eu presenciara e que me deixara maravilhado. Como eu ainda conseguia sentir a fresca brisa tocando o meu corpo, sabia que ela seria suficientemente capaz de deslocar as mais de 6 toneladas do Gaivota e com isso, continuar me levando ao meu destino, um destino que eu não sabia do que se tratava, mas sabia sim: estava nas mãos da Mãe Natureza.


 CAPÍTULO – 4

           

E assim o fiz. Levantei a vela mestra, fui puxando a retranca e aos poucos, aos poucos o Gaivota provocou um leve rangido de prazer e alegria, reposicionei o leme novamente no sentido exato do Norte e, e assim voltamos a navegar. O Gaivota continuava deslizando naquele espelho negro por entre as estrelas que cintilavam abaixo e acima de nós como se estivesse patinando em uma enorme arena de gelo. Que noite linda, diferente, fantástica. Esqueci que o corpo humano necessitava de repouso, de alimento e de outras necessidades básicas, esqueci de tão inebriado que estava com tudo o que eu estava vivendo. Mas, por volta das 03hs30min daquela madrugada, o cansaço finalmente mostrou a sua face. Eu sabia, aliás, eu estava esperando por isso.

            Como ainda dispúnhamos (eu o Gaivota) de tempo bom, decidi ceder aos encantos do sono, travando o leme e a retranca e colocando o dispositivo que tenho no painel de navegação para despertar 30 minutos depois. E assim, sem mesmo descer para a cabine, me aninhei na popa, ao lado da roda do leme, e fui cochilando e acordando no 5minutos acordado x 30minutos dormindo até aproximadamente às 09hs40min do novo dia, quando o Sol imperava soberano e o Mar voltava a sua normalidade, fazendo-nos subir e descer em suas maravilhosas ondulações.

            Fiz um rápido desjejum, me alimentando de frutas com aveia, iogurte e mel à frente da roda do leme, enquanto observava a bússola, o Mar, tentando prever o tempo e tudo que pudesse surgir a nossa frente. Mantendo o rádio constantemente ligado nas informações meteorológicas, poder-se-ia dizer que eu continuava seguro e tranquilo. Mais um dia nessa minha viagem, mais um dia subindo para o Norte. Dos dois lados, à frente e para trás, somente o Mar e acima, acima de nós um céu cada vez mais bonito, iluminado pelo Astro Rei despejando toda sua força e poder. Assim eu seguia.           

Intencionalmente, uma reflexão sobre a vida, sobre a morte, sobre o certo, sobre o errado, como que uma revisão de tudo feito até hoje, começava a ser projetada na tela da minha mente. Com a sensibilidade cada vez mais à flor da pele, por mais uma vez me questionei sobre o verdadeiro motivo, o verdadeiro sentido de estar ali, navegando sem saber para aonde e nem mesmo o porquê. Mergulhado cada vez mais para dentro de mim mesmo, continuei assistindo o filme da minha vida, décadas e mais décadas de acertos, de erros, de tentativas, de sucesso e de derrotas. Com a roda do leme nas mãos, o filme continuou por todo aquele dia. Céu e Mar e entre eles, eu e o Gaivota, um quase nada no meio de toda aquela imensidão.

Mais uma noite se enunciava lentamente. Como um cobertor um pouco mais frio, derramava progressivamente sobre a terra o doce ébano da vida, dando ao Sol um descanso, o seu merecido repouso. Depois de ascender às luzes sinalizadoras, desço um pouco procurando o conforto e, uma pequena dose do merecido descanso. Fiz uma rápida refeição sobre o eterno balanço do Mar. Acendi meu cachimbo, o meu velho companheiro de muitos momentos de alegria e de tristeza, mas principalmente de reflexão, de muita reflexão e que se mostrava mais do que nunca, com uma suavidade ainda não degustada. Esse detalhe, subitamente, me fez lembrar das muitas coincidências que eu já vinha observando desde que iniciei essa viagem. Sim! Por que não?  

De certo que – fazendo uma pequena retrospectiva – eu podia afirmar que já observara, durante a minha vida, períodos onde praticamente tudo dava certo, momentos onde as forças da natureza, pareciam estar conspirando a meu favor. Só que, dessa vez, a intensidade de todos os acontecimentos, muito me surpreendia. Era o momento ideal para relatar tudo que eu conseguisse desde que acordei alguns dias atrás, com esse desejo forte e totalmente inexplicável, e assim, quem sabe, iniciar um novo livro. Ainda havia um pouco de luz natural, os últimos resquícios daquele maravilhoso dia. Com a retranca e o leme travados, eu poderia sim escrever um pouco, mantendo-me atendo ao Gaivota que, por mais uma vez navegava sozinho, riscando o Mar numa linha reta para o Norte do nosso Planeta.

Embora eu tivesse que dividir a minha atenção com a navegabilidade, consegui sim escrever quase tudo que experimentei até aquele momento, como você pode ler até aqui. Tudo isso foi escrito sobre a mesa de navegação enquanto o Gaivota continuava nos conduzindo. Quando olhei para fora, pude perceber então que a terra já estava totalmente coberta com o negro manto da noite. Sobre minha cabeça, milhões, bilhões de luzes de neon piscavam, desapareciam e ressurgiam regidas por uma sinfonia onde a batuta, na mão do Criador, ditava o ritmo perfeito, mais do que perfeito para o nosso Universo. Porém, essa noite, essa noite eu tinha consciência de que não seria uma noite como, por exemplo, a anterior, calma e tranquila. Nós já havíamos subido consideravelmente entre os dois continentes. Agora, por exemplo, deveríamos estar na direção do estado da Bahia, ou quem sabe até já passando dele. Isso significava que entravamos na rota dos transatlânticos, e, ser atropelado por um navio desses, é sem dúvida a última coisa que um navegador deseja.

Esses navios, possuem um controle de navegação automática, ou “piloto-automático”. Embora sempre tenha alguém de olho na ponte de comando, confiantes na eficiência da tecnologia empregada nesse sistema de navegação, por muitas e muitas vezes eles literalmente relaxam na vigília, permitindo assim que a embarcação avance ao seu destino – praticamente sozinha. Além dos sonares e dos radares que essas embarcações possuem, detectar um veleiro infimamente pequeno, nem sempre é possível. Nós, navegantes de pequenas embarcações, acendemos uma luz sinalizadora no alto do mastro, com o explicito objetivo de sermos vistos e, consequentemente não ser atropelados. Mas, como eu disse ainda há pouco, nem sempre tem alguém atendo ao que possa surgir à frente, nem sempre os radares conseguem captar algo tão pequeno, assim, nem sempre estamos seguros quando cruzamos a rota dos transatlânticos.

O melhor mesmo que temos a fazer, é nós – pequeninas criaturas sopradas pelo vento – ficarmos atentos e, se acaso um monstro desse, de milhares e milhares de toneladas vier em nossa direção sairmos, imediatamente da sua frente. Essa rota dos grandes navios, é pré-determinada justamente para que possamos ter um mínimo de segurança, ela funciona mais ou menos como uma grande avenida, ou estrada, onde temos, antes de atravessá-la, parar, e olhar para os dois lados. E nós, estávamos chegando próximo a uma dessas grandes avenidas do Oceano Atlântico, assim, durante toda essa segunda noite de viagem, eu deveria sim permanecer acordado e atendo para uma travessia com segurança. Além disso, hoje dispomos de serviços como o Marine Traffic – AIS e outros tantos, que nos mostram em tempo real onde está cada embarcação oceânica, na tela de qualquer computador, pois, todos eles, antes de iniciarem suas viagens, devem entregar seus planos de navegação, além de serem monitorados por diversos satélites espalhados ao redor do Planeta.

É incrível! Mas quando sabemos conscientemente o que devemos fazer, o que é inevitável fazer, nossa consciência nos prepara psicologicamente para isso, preparando inclusive o próprio corpo que, nesse caso, sabendo que teria que ficar acordado por toda a noite, sem nenhum cochilo, acata a determinação e não reclama e parece nem se cansar com o trabalho exigido. E assim foi feito. Por toda aquela noite, eu permaneci sentado na popa, em frente a roda do leme, olhando continuamente 360° a procura de luzes de algum transatlântico. Foi uma noite longa. O Gaivota, firme no seu curso, mostrava estar adorando mais essa aventura. Não chorava, não resmungava como normalmente o faz no píer, quando está amarrado, preso, imobilizado. Sabemos que o ranger dos barcos ancorados, nada mais é do que o choro, o lamento por estarem nessas condições. Eles foram concebidos para viagens, para aventuras, para desafios, os barcos existem para navegar e não para mofar em qualquer ancoradouro, simplesmente como uma casa sem sair do lugar.

            Sem dúvida foi uma noite longa e cansativa. Pela segunda vez, desde que iniciei essa jornada, me entreguei a uma profunda reflexão sobre a minha vida e tudo o que de mais significativo havia feito até aquele instante. Impressionante como a visão do Mar e do Céu, somente do Mar e do Céu nos arremete ao Criador. Eu juro que por muitos instantes eu pude senti-lo ao meu lado, dentro de mim, vibrando com sua energia Divina, me fazendo consciente, muito consciente de tudo e de mim mesmo. Um estado que eu poderia classifica-lo de total neutralidade, pois, nesse estado, eu não estava triste, mas também não estava radiante; não estava preocupado, mas também não estava relapso; não estava ansioso, mas mantinha todos os meus desejos, resumindo: um verdadeiro estado de graça, de serenidade e de amor comigo mesmo e a todo o Universo que me cercava. Assim como eu estava entre dois continentes, eu também emocionalmente estava entre os estremos dos sentimentos.


CAPÍTULO – 5 

            Com o novo dia pintando de laranja ainda escuro do meu lado direito (Leste), decidi verificar exatamente qual era a minha localização. Afinal, eu já estava navegando ininterruptamente por dois dias e duas noites. Provavelmente, eu já teria que começar a mudar um pouco o curso, pois, se continuasse direto, navegando firme ao norte, eu estaria muito mais próximo do continente Africano do que do Americano, já que passando da direção da Paraíba e do Ceará, o continente Americano parece desaparecer, ficando mais a Oeste.

            O Gaivota continuava navegando sozinho, quando resolvi descer, olhar o GPS e as cartas e depois, com base nessas informações, decidir o que fazer. Constatada a minha exata posição, observei que ainda seria possível navegar por pelo menos mais 2 dias sem me desviar – exatamente – do Norte, como vinha fazendo desde que entrei em Mar aberto, ainda lá em São Paulo. Mas, vendo que eu já havia atravessado uma das muitas rotas dos grandes navios, percebi que eu poderia dormir um pouco, mesmo que no esquema de 5 x 30 minutos, mas já seria algum descanso e, confesso que eu estava precisando disso. Uma última checagem nos instrumentos, na meteorologia e com tudo perfeitamente em ordem, me aninhei mais uma vez no canto esquerdo da popa, apoiando a cabeça em uma almofada, liguei o alarme e parti para os meus primeiros 30 minutos de sono.

            Não sei precisar exatamente quantas vezes o alarme me acordou e depois voltei a dormir. Só sei que em um desses 30 minutos de sono, eu tive um sonho muito estranho, onde eu estava sendo acordado com o forte grasnar de gaivotas, como se elas estivessem me avisando sobre algum perigo mais à frente. Acordei assustado, antes do alarme tocar quando completasse os 30 minutos. Coloquei-me em pé imediatamente, olhando a toda minha volta, mas nada, absolutamente nada estava diante dos meus olhos exceto o Mar e o Céu, os dois em tons de azul diferentes, um mais lindo do que o outro. Mas, mesmo assim, fiquei com aquela imagem gravada em minha mente, talvez como um sinal do que poderia vir acontecer.

            Confesso que não consegui mais dormir depois desse sonho, mas também não tinha o que reclamar. Depois de muitos anos, eu acordava me sentindo maravilhosamente bem. Esse estado, mais uma vez, me fazia refletir atrás de respostas, lembrando mais uma vez, das muitas coincidências que estavam acontecendo positivamente. Pensando melhor agora, eu notei que todo o meu universo começou a mudar nesse sentido, a partir do momento em que eu decidi aceitar plenamente as vontades mais profundas do meu âmago. Mas também, por outro lado, eu não desejava, por nada nesse mundo, interferir naquele processo que se desenrolava tão bem até então. Eu temia poder atrapalhar tudo, com a minha falta de conhecimento, com os meus eternos “por quês”, com minha ansiedade ou até mesmo com a minha racionalidade que, ingênua, ainda acreditava que sabia tudo, ou pelo menos quase tudo.

Tomei um delicioso café da manhã, preparado cuidadosamente em conformidade com o que eu sentia, sem pressa, procurando aproveitar ao máximo cada segundo de tudo o que eu estava vivendo. A última coisa que eu desejava naquele instante era deixar, perder o meu “momento presente”, o meu “aqui” e o “agora”. Tudo que eu mais queria era mesmo continuar vivendo o que eu estava vivendo.   

Assim, obedecendo a mais uma vontade interior, mesmo sem entender suas razões, tirei meu relógio. Eu não desejava mais controlar o tempo. Eu poderia seguir assim, mais livre ainda, ao encontro do meu destino.

A mesma brisa fresca, ricamente umedecida e confortante, que me acompanhava desde que parti, continuava soprando minhas velas, meu corpo, continuava apagando aos poucos, as chamas que ainda ardiam em minha alma, intrigas, arrependimentos, egoísmo, ansiedade, imaturidade...

Agora sem supervisionar os ponteiros de um relógio, eu observava o Sol em seu incessante giro sobre minha cabeça, alternando o brilho do seu reflexo na água. A cada minuto, obedecendo a essa ordem maior, eu mergulhava cada vez mais para dentro de mim mesmo. Por vezes, a impressão que eu tinha, era de estar cada vez mais próximo da minha própria origem.

Foram dias maravilhosos. Mesmo em companhia da solidão, a natureza parecia compensar qualquer carência afetiva que eu pudesse sentir, me enchendo de paz, de luz, acalentando meu corpo, tornando aqueles dias, os mais felizes da minha vida. Saboreando todo esse devaneio, e mais, tudo dando certo, eu fui deixando, gradativamente, de consultar os instrumentos de navegação.

Sabemos que, no reino animal, todos os seres possuem um instinto natural que os permitem definir claramente os polos magnéticos do nosso planeta. Alguns homens principalmente os que vivem no Mar não deixaram essa herança animal se perder completamente com o tempo. Esses marujos são perfeitamente capazes de identificar o Norte, estejam eles onde estiverem. E eu, percebi, que já estava navegando há um bom tempo, só me orientando pelo meu instinto natural. Encontrava-me em tamanha integração com a natureza, que mais do que nunca, me sentia parte integrante dela.

Eu não sabia mais ao certo, por quantos dias estava navegando rumo ao norte, eu já não me preocupava mais com isso. Só podia afirmar, que todos aqueles dias, eu dispunha de muito Sol, de águas tranquilas, e de vento a favor, tudo o que qualquer navegador mais deseja em sua vida.

Depois de algum tempo, eu já acreditando estar no paraíso, percebi de maneira brusca, que à leste, a algumas milhas à minha direita, o céu se mostrava com uma enorme mancha cinza, muito escura, quase negra. Essas nuvens se estendiam por todo leste, até onde meus olhos podiam ver. Mesmo achando um tanto estranho, pela diferença dessas condições climáticas, continuei navegando, só que então, monitorando aquela provável tempestade que acontecia a estibordo. Acredito que continuei assim por todo aquele dia. Com a chegada da noite, eu podia observar ainda que à distância, alguns riscos azuis, descargas elétricas sendo arremessadas ao Mar, de forma impiedosa. Com certeza, se aquele mau tempo resolvesse vir ao meu encontro, eu estaria em apuros.

Mas, sem saber explicar direito, estranhamente, eu não me preocupava com isso. No fundo algo me dizia para continuar, manter o rumo à frente, ao Norte, como vinha fazendo desde que iniciei essa jornada. Procurei adormecer no esquema de 5 x 30 minutos. Aquela noite, apesar de continuar sobre o aconchego de águas tranquilas, uma ponta de inquietude parecia querer prejudicar o meu descanso. Mesmo assim, não tardou, para que eu fosse capturado pelo cansaço, pelo sono, mesmo porquê, eu sabia que em 30 minutos eu seria despertado novamente.

Acredito que foi na quarta ou quinta perna do 5 x 30 minutos que acordei sentindo e ouvindo um forte impacto à estibordo do Gaivota. Ainda estava escuro. Desperto novamente, por um instante eu não era capaz de definir se eu tinha sonhado ou se realmente eu tinha batido em algo ou algo havia batido em mim. Devido a pouca luz, olhando a embarcação da popa, de onde eu estava, eu não consegui ver nada. Mas, conforme olhei para o mar, mais precisamente para o meu lado direito, eu consegui ver um tambor boiando, com metade do seu volume para fora da água.

— Então eu não estava sonhando! – afirmei para mim mesmo.

Quando nos submetemos a privação do sono, ou mesmo quando adotamos um esquema onde não conseguimos um repouso que se pode dizer normal, temos sim, períodos de alguma confusão mental. Muitas vezes fazemos alguma atividade e depois de algum tempo, podemos ficar em dúvida se, realmente fizemos ou pensamos, imaginamos que fizemos. Por essa razão, há princípio, eu estava em dúvida se tinha ouvido e sentido o impacto ou se eu estava sonhando com aquilo.

Mas, uma vez que pude comprovar que realmente algo havia atingido o Gaivota, eu precisava saber se algum dano isso teria provocado. Devido à falta de luz natural, decidi deixar para fazê-lo assim que o dia começasse a nascer, uma vez que a embarcação continuava navegando – aparentemente – normal. E assim, depois desse susto, não consegui mais dormir, permanecendo ao timão até os primeiros sinais do novo dia. Depois de alongar todo o corpo, travei a retranca e o leme e desci para cabine para ir ao banheiro e fazer o meu desjejum.

 

CAPÍTULO – 6 

Assim que comecei a descer os quatro degraus que separam o convés do interior da cabine, parei imediatamente sem saber o que fazer, o que pensar. A estibordo (lado direito da embarcação) onde fica a mesa de navegação com as cartas marítimas, réguas, esquadros, compasso e outros instrumentos que nos ajudam a definir as rotas, um vazamento de água na lateral da embarcação já tinha molhado tudo. No piso da cabine, deveria ter pelo menos uns 15 cm de água acumulada.

Imediatamente voltei para o convés, arriei todas as velas e, quando o Gaivota definitivamente parou, me atirei na água para ter uma noção do estrago feito. Realmente, o impacto deve ter sido na borda do tambor, que é bem mais dura, quebrando a fibra externa, provocando uma abertura de mais ou menos 1centímero de largura, por uns 10 centímetros de comprimento. Embora o dano fosse pequeno, mas era o suficiente para entrar água todas as vezes que o Gaivota escalava uma onda, mesmo que pequena, e voltasse a tocar o mar, ou seja, todas as vezes que a água do Mar ultrapassava a marca da 1linha de água da embarcação.

Isso teria que ser reparado imediatamente. Caso eu me deparasse com mau-tempo, caso aquele mau-tempo resolvesse investir para o meu lado, com certeza esse pequeno dano, além de permitir um vazamento constante, poderia ainda ficar maior, se as ondas começassem a bater no local afetado. Embora o Mar estivesse calmo, ainda havia o seu característico balanço. Todas as vezes que o Gaivota subia e depois descia, o nível da água atingia o pequeno buraco, entrando um pouco, bem em cima da mesa de navegação.

 

1Linha de água: linha d'água ou linha de flutuação consiste em uma linha pintada na lateral do que separa a parte imersa do casco de um barco (que fica abaixo da água), com sua parte emersa que fica visível, acima da linha da água.

Por sorte, os dois rádios e o aparelho de GPS com o seu monitor, ficavam mais altos, cerca meio metro acima da mesinha.

Eu tinha a bordo um kit para pequenos reparos no casco, um daqueles para fibra de vidro com: 1 kg de resina poliéster para laminação; 1 m² de manta de fibra de vidro 450grs/m2; 30g de catalisador e 1 pincel 1/2” para aplicação da resina sobre a manta de fibra de vidro. Porém, eu precisaria ter a região atingida completamente seca para o reparo e, feito isso, permanecer assim por pelo menos 1 hora. Nem preciso falar que o ideal, seria tirar a embarcação da água e, sobre cavaletes ou em um porto seco, efetuar o reparo, retocar a pintura, polir e tudo mais. Eu estava no meio do oceano, entre dois continentes, o significaria que, caso eu decidisse navegar para Leste (minha direita) ou Oeste (minha esquerda) certamente eu levaria no mínimo – e olha que fazendo uma previsão otimista – uma semana para chegar a terra firme.

Não! Definitivamente eu teria que fazer o reparo dentro da água mesmo. Pensei um pouco e logo vi que, se caso eu conseguisse deixar o Gaivota inclinado para o lado esquerdo, não precisaria muito, eu calculei cerca de 20° e se, contasse que o Mar permaneceria calmo como estava, eu conseguiria sim fazer um remendo que poderia me possibilitar seguir minha viagem sem nenhum problema. Mas, por falar em problema, como eu poderia 1adernar uma embarcação de mais de 6 toneladas em 20° e mantê-la assim por cerca de 01hs30min no mínimo?

Lembrei que devido a essa desagradável surpresa, eu ainda não havia me alimentado. Como eu estava parado, completamente à deriva, tentando encontrar uma forma de adernar seguramente o Gaivota para poder fazer os reparos necessários, resolvi comer, e quem sabe uma ideia surgiria para isso. Não tive dúvidas! Seguindo o meu padrão de comportamento, em momentos de indecisão, em momentos delicados, eu costumo sempre é fazer um bom desjejum, assim o fiz!

 

 

1Adernar: Inclinar-se (o navio ou barco) submergindo mais de um lado do que do outro.

Enquanto comia, fiquei tentando imaginar como um navio, provavelmente um transatlântico, um cargueiro, poderia ter deixado cair ao Mar um tambor com pelo menos metade do seu conteúdo dentro. Acidentes acontecem. – pensei comigo mesmo.

Essa certeza eu tinha porque, pelo nível de flutuação, aquele tambor, não estava vazio e nem completamente cheio. Por isso atingiu o Gaivota bem na linha de água.

Mas, nada disso importava agora, mesmo porque, não me ajudaria a reparar o que já estava feito. A questão agora era como eu poderia ficar inclinado 20° por uma hora e meia? Isso é muito fácil quando estamos navegando. Aliás, os veleiros, sempre navegam com alguma inclinação, justamente devida a vela mestra, a que fica presa a retranca. Quanto maior a velocidade que empreendemos em um veleiro, maior é o seu grau de inclinação.

Mas eu não poderia fazer isso, e ainda ficar pendurado do outro lado enquanto estivesse fazendo o reparo, o risco, sem dúvida, seria demasiadamente alto.

            Terminei o meu café da manhã. Ainda de dentro da cabine, eu podia ouvir o ranger da retranca, balançando livre, de um lado para o outro, como se o Gaivota estivesse sofrendo com o que havia acontecido. E eu pensava e pensava. Às vezes até inclinava um pouco a cabeça, imaginando a inclinação que eu precisava, até que, como um estalo, aos poucos a ideia foi surgindo.

            Eu percebi que havia uma corrente considerável na água, de Leste para Oeste. Eu poderia usar uma ou as duas 1âncoras flutuantes que eu tinha, desde que eu conseguisse manter a embarcação com a proa para o Norte, às âncoras, poderiam sim inclinar o Gaivota no sentido Leste, o suficiente para que eu conseguisse fazer o reparo necessário. 

1Âncora flutuante ou drogue: é utilizada para reduzir a velocidade do barco em condições de mau tempo, ela é solta pela popa, por dois cabos presos um em cada bordo, e vai sendo arrastada atrás do barco para reduzir a velocidade e dar mais equilíbrio ao barco quando o Mar está extremamente agitado. 

Mas, para conseguir esse efeito, eu teria que amarrar as duas, ou no meio do mastro, ou na sua ponta mais alta. Só assim eu via a possibilidade de conseguir com essas âncoras, adernassem o barco o suficiente.

            Primeiro, usando a 1cadeira de mastro, eu amarrei uma corda, mais ou menos na metade do mastro. Desci, amarrei as duas pontas de corda das âncoras flutuantes, travei o leme perfeitamente perpendicular 90° da popa e lancei as duas âncoras ao Mar. Lentamente elas foram se afastando, lentamente esticando as cordas, até que finalmente notei que elas começaram a puxar o Gaivota para Oeste, o sentido das correntes marinhas. Como ele estava com a proa apontada para o Norte e o leme também, ele começou a inclinar, orçar como eu havia previsto, mas depois de um tempo, percebi que o ângulo ainda não era suficiente, com essa manobra, eu havia conseguido no máximo uma inclinação de uns 10° ou 12°, o que ainda não era o suficiente. Eu tinha que prender mesmo essa corda na ponta do mastro. Porém, com as âncoras flutuantes já na água, eu tinha duas opções: puxá-las, o que acabaria fazendo a embarcação seguir na direção delas, ou girar o leme, deixar a proa do barco rumo Oeste (na direção delas).

            Assim, enquanto o Gaivota estivesse sendo literalmente puxado pelas âncoras flutuantes, conforme a corrente marinha, eu poderia subir novamente no mastro e dessa vez amarrar a corda na sua ponta. Com isso, certamente o arrasto que as âncoras fariam, inclinariam bem mais a embarcação. Não preciso dizer que levei quase que o dia inteiro para conseguir, de forma segura, orçar a embarcação e, principalmente mantê-la assim, por mais de duas horas, que foi o tempo que levei para tapar aquele buraco e aguardar a sua secagem completa.

            Confesso que não ficou nada bonito. Para um veleiro como o Gaivota, aquele remendo se evidenciava mais do que a própria embarcação. 

1Cadeira de mastro: cadeira (geralmente de lona) que fica suspensa no mastro, operada por roldanas que possibilitam subir até a ponta do mastro sem necessitar da ajuda de outra pessoa.

Mas, certamente tudo isso seria refeito e com todo o merecido capricho, assim que eu tivesse condições de tirá-lo da água em alguma marina ou estaleiro. Uma vez recolhidas as âncoras flutuantes, decidi descansar um pouco – literalmente – dormir um pouco, antes de prosseguir navegando firme ao Norte. Só que esse meu “dormir um pouco”, acabou sendo a noite inteira.

Na manhã seguinte, com os olhos fechados, eu podia sentir, que o Mar, continuava com toda sua calma que até então me conduzira até aqui, quando me lembrei imediatamente do mau tempo à Leste. Levantei rapidamente, subi ao convés e fui procurando ver como o tempo estava para aquele lado. E, para minha surpresa, toda aquela faixa leste, continuava com seu tom ébano, aterrorizante.

Eu ainda não compreendia. Sobre minha cabeça, há dias o céu se mostrava cada vez mais belo e suave. E à minha direita, como uma linha contínua, surgia a divisão do bom e do mau tempo. Ainda em pé no convés, próximo ao timão, assim que virei lentamente para a esquerda, um tremor invadiu todo o meu corpo. Vejo que a Oeste, a mesma imagem se repetia. Uma outra linha, também divida o tempo. Agora, eu estava em um perfeito corredor de bom tempo. À minha direita e à minha esquerda, o Céu se mostrava negro, furioso. E quando eu olhava para o Sul, ou para o Norte, uma trilha, uma rota de tempo bom e Mar calmo, de Céu azul insistia em se mostrar presente.

 

CAPÍTULO – 7 

Sem dúvida em todos esses anos no Mar, eu nunca havia visto ou se quer ouvido falar de nada parecido com isso. Assustado, decido ligar o rádio. Há dias, eu estava navegando somente pelos meus instintos, mas agora, eu desejava ouvir os boletins meteorológicos que a NASA, de hora em hora, envia para o mundo inteiro. Com as velas ainda içadas, eu continuava rumando para o Norte. Devido às condições do tempo, não me restava se não duas alternativas; continuar navegando para o Norte ou voltar para trás, para Sul. No rádio, nenhuma informação, parecia coincidir com o que eu estava vivenciando. Havia tempestades anunciadas sim, mas do outro lado do planeta, sem nenhuma relação ao provável lugar onde eu me encontrava.

Desci a mesa de navegação. Desliguei e liguei novamente o GPS e com as cartas marítimas sobre a mesa, calculei por três vezes a minha posição e, definitivamente a previsão da NASA não batia com o que estava acontecendo naquele momento.

De pé, segurando o timão, olhando atentamente para frente, vez por outra, para os lados, me certificando das paredes do meu corredor, eu ficava tentando imaginar o que poderia ser aquilo. Eu tinha que admitir: desde que tomei a decisão de fazer aquela viagem, coisas estranhas vinham acontecendo. Mas tudo isso, acontecia até então a meu favor. Agora, no entanto, mesmo sem me prejudicar, eu podia sentir uma ameaça, uma forte ameaça dos meus dois lados. Não posso dizer que sentia medo. A convicção de seguir à frente, mais a certeza de que eu realmente avançava para algo maior, satisfazendo vontades incompreensíveis, não me permitiam ao medo, essa certeza ainda me dominava e com isso me fazia seguir à frente.

Automaticamente, pensamentos e mais pensamentos continuavam surgindo numa tentativa absurda de explicar o que realmente estava acontecendo. Acredito que passei todo aquele dia dividido entre a certeza de que eu estava fazendo a coisa certa, atendendo um chamado do meu próprio ser ou, quem sabe, até mesmo de Deus e, por outro lado, o risco que eu estava colocando a minha vida, seguindo para o desconhecido.

Com mais um dia daquela atividade totalmente incomum, em conjunto com as estranhas sensações e coincidências que vinham acontecendo, não foi difícil deduzir que eu poderia sim estar prestes a experimentar, quem sabe, um momento mágico, um daqueles momentos sublimes que às vezes ouvimos falar. Quando vivenciamos o desconhecido, experimentamos uma série de reações, que nos é, de certa forma, normal dentro dos padrões de comportamento do ser humano, expectativa, receio, impaciência, preocupação, curiosidade, ansiedade, medo... E eu, não fugia a essa regra. Minhas noites, já não eram mais tão repousantes quanto às do início daquela viagem. Eu podia sentir, que além das perguntas, que agora constantemente me incomodavam, existia ainda, alguma influência externa, uma espécie de energia no Ar, no Mar, no Céu, que de alguma forma, podia ser percebida, mesmo que eu não encontrasse um sentido para explicar o que era isso ou até mesmo o porquê dessa percepção.

E é exatamente em momentos assim, que mais nos lembramos de Deus, da família, dos amigos. Mesmo sem estar controlando o tempo, deduzi que havia se passado mais de 10 dias desde que havia saído de Ubatuba, navegando ininterruptamente até aquele lugar, despertando com isso, a necessidade de um contato com a família, alguns amigos. Imediatamente percebi como eu estava sendo displicente com todos eles que, mesmo habituados a essas minhas viagens, constantemente eu os mantinha informados sobre tudo. Fazendo uso da telefonia por satélite, rapidamente, eu estava falando com minha esposa, minhas filhas, dizendo que estava tudo bem, que eu estava navegando ao Norte do Planeta e que ainda não tinha uma previsão de quando estaria voltando. Pelo menos atrás de mim, tudo parecia estar dentro de sua normalidade, embora eu não pude deixar de perceber o alto grau de insatisfação da minha esposa, condenando veemente mais essa atitude da minha parte, que certamente era compactuada com a opinião das minhas filhas. Mesmo assim, mesmo sentindo esse desconforto de deixa-las tensas e preocupadas, ainda assim eu tinha que seguir, essa força maior me puxava, me empurrava, me arremetia exatamente ao que eu estava fazendo.

Mantendo-me cada vez mais alerta quando a situação e ainda procurando explicações para tantos fenômenos inexplicáveis, tive o ímpeto de checar novamente a minha atual localização. Com a retranca e o leme travados, desci para a cabine e com todo equipamento que dispunha para isso, comecei a fazer os cálculos, sentado à pequena mesa de navegação, percebi uma situação que conseguiu ser a mais surpreendente e aterrorizante de todas até agora: a pequena bússola de mão, que sempre carreguei comigo, presente da minha filha Milena, já não obedecia mais o Norte magnético. Com o coração acelerado, com a respiração ofegante, com os olhos estatelados eu gesticulava com a cabeça de forma negativa, não acreditando no que eu estava acontecendo.

A única vez que pude ver algo parecido fora em filmes de ficção científica. Subi imediatamente até o timão, onde a sua frente, outra bússola fixa, de nível, bem maior e mais confiável, estava instalada. Esta também, para meu espanto, não se mostrava mais confiável como sempre foi. Mas, mesmo que alguma interferência magnética pudesse estar desorientando às bússolas, eu ainda tinha o GPS, que fora da estratosfera, os satélites continuavam enviando informações sobre a minha localização e mais, para aonde eu estava indo. Eu conseguia, além do meu instinto natural quanto a orientação dos polos, ter com o GPS uma certa segurança. Mesmo assim, o fato de estar vivenciando coisas estranhas, aliás, cada vez mais estranhas, começava sim deixar o clima, o meu clima mais apreensivo em todos os sentidos.

Entregue a um esforço monumental para manter-me calmo, lúcido de tudo que estava acontecendo e de tudo que eu estava fazendo, lembrei-me imediatamente de uma das mais valiosas informações que recebemos quando fazemos cursos de navegação, cursos de sobrevivência e coisas assim: “em casos de perigo, morre mais fácil quem entra em desespero”. Essa lição se aplica perfeitamente para quem está na água ou coisa assim, o indivíduo, só morre afogado, por entrar em pânico, pois, nessa situação o ser humano consegue contrariar uma lei física, de que seu corpo boia na água.  Caso ele vire de barriga para cima e não faça absolutamente nada, ele não afunda em hipótese alguma. E eu, agora, estava procurando me acalmar, eu precisava disso, não entrar em pânico – de jeito nenhum.

Era uma tarde agradável. O vento continuava a favor. E mesmo ainda com a incomoda presença das nuvens negras a estibordo e a bombordo, acima de mim, mesmo com às bússolas girando descontroladamente, ainda assim, o azul imperava doce e majestoso sobre a minha cabeça, o que ainda conseguir me impelir à frente, não desistir, seguir com os meus instintos mais profundos.

 

CAPÍTULO – 8 

Não sei precisar por quanto tempo ainda consegui navegar assim, procurando ter de volta o meu equilíbrio e com ele o controle da situação, até que comecei a perceber o surgimento de estática no rádio. Lentamente eu estava perdendo-o e, com ele, os boletins meteorológicos. Travei a retranca e o leme novamente e desci a cabine. Certifiquei-me de suas conexões, antena, o cabo da bateria, mas estava tudo perfeitamente em ordem, realmente, era o sinal que estava falhando. Como eu havia instalado o rádio novo, liguei-o imediatamente: a mesma condição se repetia: estática, chiado, cada vez mais e por um tempo maior.

Pela primeira vez desde que tudo começou, sou obrigado a admitir: pensei na possibilidade de parar com tudo isso e voltar. Por mais determinação que eu carregava junto a mim, a situação, agora, gradativamente não contribuía em nada para o que eu estava fazendo. Vivendo momentos de muita dúvida, e com a noite bem próxima, preferi deixar essa decisão para o dia seguinte, que, dependendo das condições, principalmente dos instrumentos, eu poderia retornar ou não. Uma decisão difícil, uma vez que quando eu olhava para a minha esquerda, eu tinha a visão de um céu completamente negro, com raios e tempestades, quando eu olhava para a minha direita, a mesma visão se repetia, somente sobre a minha cabeça, havia uma linha de tempo bom e tranquilo, e se essas duas outras partes resolvessem se unir? Com certeza, as duas tempestades, a da direita e a da esquerda, destruiriam o Gaivota e eu.

Naquela noite, sentado na cabine, tentando fazer minha refeição, o estado de êxtase, aquele que até então eu vinha sentindo, já não mais se fazia presente. Agora voltando a manter o rádio ligado, somente o som chiado da estática era possível de ser ouvido. Vez por outra, o ruído aumentava, chamando a minha atenção ao aparelho que continuava inoperante. Sinceramente eu não sabia o que fazer. Voltei ao convés, segurando em alguns cabos, olhei novamente para os 360° a minha volta, e me sentindo por mais uma vez o centro do Universo, o centro construindo uma gigantesca circunferência até onde os meus olhos conseguiam chegar, ergui novamente a cabeça e a visão mais incrível do mundo continuava presente: tempo ruim, tempestade dos meus dois lados, e sobre mim, um corredor de céu limpo, completamente estrelado. Gesticulando negativamente com a cabeça, novamente eu não me conformava com tudo o que estava acontecendo.

— Isso não existe! – gritei alto, completamente inconformado com a falta de explicações e todo o mistério que eu estava vivendo.

Porém, nesse momento, no ápice do meu descontrole emocional, um flash de consciência surgiu como um feixe de luz dentro de quarto escuro, não apenas diminuindo o meu batimento cardíaco, como também e principalmente, trazendo acalanto e serenidade a todo meu ser. Sentei-me ao lado da roda do leme. À noite, cumprindo com seu ritual, por mais uma vez cobria a terra com o seu manto negro, acendendo sobre a minha cabeça seus bilhões de neons, criando com eles desenhos e desejos infindáveis a consciência humana. Respirei fundo algumas vezes. O ar, sem a presença do Astro Rei, mais fresco, invadiu o meu ser, oxigenando todo meu cérebro, entorpecendo-o de mais e mais consciência.

Em momentos como esse, sozinho e no meio do oceano, diante de uma situação que nem nos mais ricos compêndios da humanidade existem registros, somos sim, automaticamente arremetidos ao nosso Criador. Você pensa sim em Deus em momentos como esse. Você pede a sua ajuda, a sua proteção, você literalmente se agarra a sua mão. E foi o que eu fiz.

Sentado, naquele canto da popa, observando o Gaivota seguir o seu curso, senti, no fundo do meu coração que eu estava navegando rumo ao meu destino. O próprio Céu me dizia isso. De forma completamente inexplicável, o Céu me confirmava e mais, me assegurava desse fato. Embora essa colocação pudesse parecer absurda, como eu poderia então explicar o fato – inusitado – de ter tempo ruim dos dois lados e uma infindável faixa de tempo bom sobre a minha cabeça?

Não existia outra explicação a não ser de que Ele, de que Deus estava me mostrando o caminho que eu deveria seguir, um caminho que, apesar de todas as ameaças a minha volta, se mostrava tranquilo e seguro. Confesso que essa linha de raciocínio conseguiu me acalmar ainda mais. Lembrei-me da Bíblia, quando Moisés, conduzindo o povo de Israel, saindo do Egito, caminhando pelo deserto, o Senhor guiava-os ora, com nuvens, ora com fogo, mas sempre guinando com segurança o seu povo. Cada vez mais e mais, eu me convencia de que, realmente essa seria uma jornada mágica em minha vida. Talvez, depois de tudo que eu pude viver, estudar, escrever, talvez tivesse sim chegado o meu momento, um momento sublime onde eu me encontraria com o desconhecido, quem sabe com o próprio Divino.

Com a noite tomando completamente conta de mais esse dia em minha vida e, agora bem mais calmo em relação a tudo o que eu estava vivendo, tomei uma decisão que jamais, nenhum navegador deve tomar: deixar sua embarcação completamente à deriva e ir dormir. Sinceramente eu não sei como pude fazer uma coisa dessas, somente uma explicação poderia justificar uma atitude tão irresponsável: a total, a total confiança em Deus. Naquele momento, eu decidi, conscientemente, entregar a minha vida, o meu destino completamente nas mãos de Deus.     

Após arriar as velas, lancei as duas âncoras flutuantes para tentar não sair muito da rota que eu me encontrava. Tomadas essas providências, depois de mais de 10 noites, me deitei em minha confortável cama, na proa do Gaivota e, apesar de tudo, não demorei muito a ser levado pelo mundo dos sonhos, assim que me deitei, como que se puxado para um abismo profundo, fui literalmente tragado pelo sono.

            Surpreendentemente, eu tive uma das melhores noites de sono da minha vida. Logo que despertei na manhã seguinte, percebendo que o Gaivota balançava suavemente com o característico movimento do Mar, fiquei ainda mais tranquilo. Eu estava vivo, o Gaivota, aparentemente inteiro, e tudo continuava calmo. Alonguei o corpo me esticando por um bom tempo. Eu sentia que ele me agradecia por esse repouso completo e somente depois desse ritual matutino, deixei a cama.

            Antes mesmo de subir ao convés, liguei o rádio novamente. Não foi surpresa ver que, talvez por um aumento da estática, esse instrumento continuava totalmente inoperante. Liguei o outro rádio, o novo, o mesmo padrão se repetiu. Olhei para a minha bússola de mão que eu trazia a bordo comigo sobre a mesa de navegação, e esta, mantinha-se completamente instável, girando sem sentido. Subi ao convés, olhei a bússola junto a roda do leme, também inoperante e, mesmo assim, o tempo continuava bom, embora muito, muito nublado.

As nuvens negras, que me acompanharam durante os últimos dias, se mostravam com menos intensidade, mesmo porquê eu mal conseguia vê-las devido a visão reduzida. E eu, tinha uma decisão a tomar: seguir em frente, com todos esses estranhos fenômenos que aos poucos foram surgindo, ou retornar para a minha “zona de conforto” esquecer de tudo isso, pois, eu não poderia contar a ninguém o que eu tinha vivenciado, de tão incomum fora tudo isso até então.

Ainda sonolento, e com fome, recusei-me a qualquer esforço mental. Depois de um delicioso mergulho, depois de ter nadado um pouco, tomei mais um bom café da manhã. Mas, mesmo aparentemente com tudo transbordando em harmonia, uma decisão ainda precisava ser tomada. Preocupar-se com as condições, com a falta de equipamento e voltar, ou manter firme uma posição, que obedecia a uma vontade interna, que representavam objetivos maiores em todos os contextos?

Olhando mais uma vez para o rádio, notei que ele ainda não era capaz de transmitir nenhuma palavra se quer. O sistema de telefonia por satélite, também se mostrava totalmente inoperante. Rádios comuns, com frequências musicais, entoavam a mesma melodia do chiado, de um ruído fino e continuo. O GPS também mostrava interferências, deixando e muito de ser um instrumento confiável e, acima, acima da minha cabeça, uma neblina não me permitia ver o céu, que, pela luminosidade do dia, mostrava ter um forte Sol sobre a névoa. Mas, e então, o que fazer?

Como sempre fiz na vida, em momentos de muita tensão onde eu me via forçado a tomar uma decisão, a melhor atitude era andar, andar muito e, foi o que eu fiz. Eu caminhei pelo curto espaço do convés, da popa para proa, da proa para popa incontáveis vezes, com o Gaivota supostamente preso pelas ancoras flutuantes. O medo de tomar uma decisão errada, o medo de consequências negativas, o medo, o medo, o medo... Imediatamente lembrei-me de que o medo na verdade, nada mais é senão a falta de confiança em alguma coisa, quando eu me questionei se eu não estava mais acreditando em uma força que havia me conduzido até aquele lugar, uma força que encheu o meu coração de uma vontade sublime de fazer algo mesmo sem saber o que, uma força que havia me tirado do meu conforto e segurança, para viver uma experiência Maior, eu tinha sim plena certeza do que eu estava fazendo.

Sim! Se eu estava sentindo medo de alguma coisa, na verdade eu havia perdido a confiança e isso, isso seria lamentável depois de tudo que vivi até aqui. Ainda caminhando pelo convés, me segurando nos diversos cabos que compõe a embarcação, sem visão nenhuma atém de 10 metros devido à forte neblina, mesmo assim, respirei fundo e senti, eu senti por mais uma vez que o meu coração sim, desejava que eu continuasse, apesar de tudo, eu deveria continuar. Era isso que o meu coração falava naquele momento.

Mesmo sem os rádios, o equipamento de telefonia por satélite, mesmo sem o GPS e as bússolas, ainda assim, eu acreditava possuir o meu senso de direção que me permitia definir onde era o Norte. Talvez essa crença, me animava a continuar, mesmo com todas as evidências negativas. Quantas e quantas histórias reais temos de navegadores do passado que cruzavam os mares tendo somente os seus instintos, tendo somente uma forte integração com a Natureza e nada mais? Será que ficamos tão dependentes da tecnologia que não conseguimos fazer mais nada sem ela? De súbito, lembrei-me do pequeno sonar que eu tinha preso próximo a ponta da 1bolina. Poderia ele estar funcionando? Pelo menos ele?

No painel em frente a roda do leme, liguei o dispositivo e, pelo que indicava, ele estava funcionando sim.

Mas, para testá-lo definitivamente, eu precisava de algo à frente, simulando um obstáculo, somente assim eu conseguiria ver se o alarme estaria sendo disparado ou não. Mas, sinceramente, agora até mesmo esse detalhe já se mostrava sem importância, a minha vida, a minha segurança, já não dependia mais de instrumentos, de equipamentos ou coisa assim. Cada vez mais eu estava entre nos braços da Mãe Natureza.

1Bolina é em náutica um plano vertical submerso no sentido longitudinal que impede uma embarcação de derivar ou abater lateralmente. Em pequenos veleiros de fundo quase plano usa-se uma prancha de madeira ou fibra de vidro removível ou dobrável, que quando não necessária ou como com vento de popa se pode levanta ou retirar. Nas grandes embarcações o próprio formato do casco e da quilha podem exercer a função da bolina.


CAPÍTULO – 9 

E assim, assim por mais uma vez eu decidi continuar. Ainda que por vezes sentindo um forte receio, mas eu tinha que continuar, uma força terrivelmente maior do que tudo que eu pudesse pensar, sentir, raciocinar, agia sobre o meu ser, me impelindo a continuar, continuar e continuar. E assim o fiz. Todas as velas abertas, à frente.

Aquele dia prosseguia. A névoa por sua vez, contrariando tudo que eu conhecia sobre as condições do tempo, permanecia imperiosa, como nas primeiras horas da manhã. Mais uma situação inexplicável, por que todos sabemos que, conforme o Sol vai esquentando, toda a névoa, em qualquer lugar do mundo vai se dissipando. Mas, eu tinha que lembrar que eu estava vivendo algo – totalmente – fora do comum, em todos os sentidos. Agora, para aumentar ainda mais minha falta de compreensão, grandes sombras escuras, pareciam circundar às vezes, sobre a névoa, fazendo-me achar que o Sol por instantes desaparecia. Mais coisas estranhas. Essas sombras apareciam de repente, paravam por algum instante, e depois desapareciam rapidamente, numa velocidade surpreendentemente inexplicável. 

— Meu Deus! – disse em voz alta a mim mesmo.

— Quando é que eu vou conseguir entender o que está acontecendo.

Confesso que depois do surgimento dessas sobras enormes, eu tive que parar e tentar pensar de uma forma mais fria e racional possível sobre tudo o que estava vivenciando. Jogando os cabelos para trás com as duas mãos, fechando e abrindo os olhos de maneira forçada para – quem sabe – conseguir enxergar melhor, não pude deixar de começar a levantar hipóteses que em nada me agradavam:

— Será que tudo isso é um sonho? Um sonho diferente com uma dose de realidade maior do que todos que já experimentei até hoje em minha vida?

— Ou será que eu estou perdendo minhas faculdades mentais e vivendo alguma espécie de devaneio? Eu sei que a mente pode sim viver esse tipo de situação.

— Será que eu morri? Muitos, principalmente os espíritas defendem a teoria que, quando morremos, levamos algum tempo para nos apercebermos do fato. Seria essa a minha atual condição?

— Ou será que realmente eu estou vivenciando uma experiência única, algo que transcende a qualquer explicação humana, totalmente fora da realidade e do nosso senso de racionalidade?

Novamente com as duas mãos na cabeça, segurando agora os cabelos para trás, ora meneando negativamente, ora concordando sem saber o que, realmente eu percebi que às dúvidas que eu tinha em minha mente, se comparava ao oceano que me circundava. E assim eu naveguei por todo aquele dia, com visão máxima de 10 metros, por vezes eu não sabia se estava navegando no Mar ou sobre nuvens, acreditando somente que eu continuava rumo ao Norte, pois, estava sem nenhum equipamento que pudesse me comprovar isso, eu não podia ver o Sol para me ajudar a definir meu posicionamento, assim, contava somente com a minha sensibilidade e nada mais.

Por um instante, lembre-me novamente dos navegadores antigos, que na verdade, navegavam como eu estava navegando agora, completamente pelos seus instintos animais, autônomos, mas altamente eficazes. Eu nunca soube de um bando de aves que migrou para o lado errado no inverno, ou mesmo um cardume de baleias que foi para Norte, quando deveria ter ido para o Sul se reproduzir.

Porém, se eu tinha dúvidas, se eu estava presenciando fatos e situações nunca antes vistas, lidas ou se quer ouvidas, para minha surpresa, comecei a notar que aquele final de tarde, aquela tarde nublada, estava demorando muito para ceder lugar a noite. Enquanto isso, às sombras continuavam passando sobre a névoa, por vezes circundando, outras vezes parando sobre minha cabeça. A impressão que eu tinha, às vezes, era a de que se tratava de alguma espécie de nave gigantesca, parada sobre a neblina, aos poucos desceria até que eu pudesse vê-la por completo. Mas, antes mesmo que eu pudesse concluir esse raciocínio, a sombra desaparecia novamente.

Segundo os meus instintos, eu já estava navegando naquele dia, há mais de 16 horas com o dia completamente claro, de certo cheio de névoa, mas ainda assim claro. Eu começava a não entender o por que não escurecia. Novamente travando a retranca e o leme, comecei a caminhar de popa à proa, de proa a popa, me questionando mais do que nunca, até onde eu conseguiria levar a adiante a determinação em prosseguir com aquela viagem recheada de fatos estranhos, de fatos completamente inusitados?

Depois de mais algumas horas, percebendo que, definitivamente aquele dia não mais terminaria, desconfiei que talvez, eu pudesse estar navegando em círculos. Quem sabe, o meu senso de direção, assim como os rádios, a própria bússola, o GPS não estivesse mais tão confiável como eu presumia. Não demorou muito, para que eu, definitivamente tivesse a certeza de que estava mesmo circundando um bom pedaço de oceano, sem se quer ter a visão de poucos metros à minha frente. 

Devido a todo esse conflito que eu estava vivenciando, mais o terrível cansaço que agora parecia tomar conta de todo meu o meu ser, decidi arriar as velas, o leme, entregar-me novamente nas mãos de Deus e descansar. Mesmo com a noite insistindo em continuar dia, eu precisava dormir. Eu sentia, de forma clara não ter mais se quer, o próprio raciocínio, um sono completamente irresistível se apoderou do meu corpo, aquele sono que alguns chamam de “sono da morte”, um sono que se não fosse atendido, eu poderia cair em qualquer lugar, há qualquer momento. Desci para a cabine, e quase desfalecido, me deitei, me deitei não, despenquei na cama. E ainda notando mais uma vez a presença de uma outra grande sombra sobre o Gaivota, o meu cansaço era tanto, que acabei profundamente sucumbido, como quando somos anestesiados antes de uma intervenção cirúrgica.

Sonhos que conseguiam ser ainda mais confusos que a realidade que eu estava vivendo me acompanharam durante todo aquele período em que eu dormira. Não sei precisar por quantas horas ou dias, eu permaneci assim adormecido. Quando às vezes eu despertava, uma força, como um grande rodamoinho parecia me arrastar novamente para o inconsciente, não me permitindo se quer abrir os olhos, levando-me de novo para seus mundos estranhos.

 

CAPÍTULO – 10 

Pelas dores que eu sentia no corpo, quando definitivamente acordei, eu podia afirmar que estive entregue ao mundo dos sonhos por mais de 24 horas, ininterruptas. Ainda deitado, eu percebia que agora, o Gaivota já não balançava tanto. O Sol, finalmente vencia o nevoeiro, forçando sua entrada pelas escotilhas. Por alguns instantes, acreditei estar novamente seguro. Respirei fundo. As dores por todo o corpo se evidenciaram mais forte ainda. Realmente, devo ter dormido muito, mais muito mesmo.

Sentei-me na cama. Depois de tentar fazer um alongamento, percebo não existirem mais sombras, pelo menos por enquanto. Levantei-me. Assim que olhei pela escotilha, tive meus batimentos cardíacos disparados abruptamente. Abaixei a cabeça, esfreguei os olhos, coloquei os meus óculos, chacoalhei a cabeça, com a intenção de acordar mais um pouco os meus neurônios, fechei e abri os olhos novamente, eu não acreditava no que estava vendo. Voltei a me deitar, olhei para o teto da minha cabine, sobre a minha cama em formato de “V”, olhei para um lado, olhei para o outro. Levantei-me novamente, tirei os óculos, esfreguei os olhos de novo, coloquei por mais uma vez os óculos e realmente, o que eu estava vendo continuava presente e muito vivo.

Com o coração completamente disparado, assustado sem entender absolutamente nada, eu constatei que estava ancorado, próximo a uma praia. Ainda tentando colocar a minha bermuda, completamente entorpecido pelo que estava acontecendo, enrosquei o pé esquerdo e acabei caindo, batendo na lateral da cama e terminando no chão, subi ao convés correndo, ainda enfiando um braço pela manga da camiseta, até que, abrindo a pequena porta que dá para o convés, fui imediatamente diminuindo a velocidade, a velocidade do meu caminhar, do meu pensar, a velocidade da minha visão. Como se tudo estivesse em “câmera lenta”, muito devagar eu fui tomando consciência de aonde eu realmente estava.

Eu estava perfeitamente ancorado em uma praia, que até aquele dia, os meus olhos não tinham visto nada, absolutamente nada parecido. Tudo, simplesmente tudo naquele lugar possuía uma cor mais viva, tudo mostrava muito mais energia, às pedras, à vegetação, a própria água abaixo de Gaivota tinha uma cor, um magnetismo surpreendentemente maior do que tudo que eu já consegui ver. Lembrei-me de Fernando de Noronha e de Abrolhos, onde podemos notar de forma evidente a sua energia em tudo que vemos, mas aquele lugar, aquela praia onde eu estava ancorado, era capaz de superar tudo, tudo visto e até mesmo imaginado.

Mas, se eu estava “perfeitamente ancorado”, com duas ancoras, uma de cada lado do Gaivota, a uma profundidade segura para a bolina, como eu pude fazer isso se eu não me lembrava de nada, absolutamente nada?  

Respirei fundo. Eu precisava, por mais uma vez, desesperadamente entender o que estava acontecendo. Onde eu estava, e mais, como chegara até ali? E mais, como eu havia ancorado? Mas, a incrível sensação de bem-estar proporcionado por aquela atmosfera vibrante, começou a me acalmar, devolvendo meus batimentos a sua normalidade, acalmando aos poucos os meus receios, a minha curiosidade, a minha estagnação diante a um cenário nunca antes vivido. 

Andei até a proa, desejava ver melhor tudo que a paisagem me oferecia. E não demorou muito, para que eu visse a corda azul da âncora, esticada, se perdendo dentro da cristalina água sob o Gaivota. Isso significava, que eu, ou alguém, havia ancorado o Gaivota. O problema maior, é que eu não me lembrava, de forma alguma de ter feito isso.

Cocei a cabeça. Fechei os olhos. Balancei a cabeça em sinal negativo. Mesmo vibrando com toda aquela energia que emanava do lugar, questões e mais questões, não paravam de surgir em minha mente, como um martelo batendo forte em uma bigorna, com seu som estridente. Não demorei perceber que aquela praia, não era muito grande. Suas águas, com uma transparência incrível me permitiam ver a areia clara, envolvendo minhas âncoras. Pequenos e coloridos peixes, pareciam estranhar minha presença, naquele pedaço de paraíso. A temperatura, de forma impressionante, era perfeita, muito agradável. Gaivotas voavam em plena harmonia com o meio, mais parecendo com um cartão postal, um cartão postal vivo do próprio paraíso.

Eu estava em uma enseada, onde o Mar se mostrava numa tranquilidade absoluta, como se eu estivesse em uma piscina ou até mesmo um pequeno lago de água salgada. Os arrecifes atrás de nós, eu do Gaivota, formavam um poderoso muro que seguravam as ondas, permitindo assim toda serenidade que aquele local nos proporcionava. Mais à frente, um pequeno pedaço de areia muito branca separava o Mar da vegetação que começava modesta, mas que ganhava cada vez mais força ao subir junto com enormes pedras para o alto da ilha, pelo menos até aquele momento eu julgava estar em uma ilha, em uma maravilhosa ilha. À minha direita, uma faixa continua de areia seguia incólume até fazer uma pequena curva e se perder na visão das águas, quem sabe, contornando o pequeno pedaço de paraíso onde eu estava. Pássaros, borboletas, gaivotas e uma brisa fantástica, enchiam de vida aquele lugar, fazendo-me questionar incessantemente se eu estava ainda vivo, e, se eu estivesse, se estava sonhando ou delirando...  

Com o resquício de consciência que eu aos poucos recuperava depois de tanto vivenciar coisas inexplicáveis, desci até a mesa de navegação, liguei os rádios, o GPS, o aparelho de telefonia por satélite, e não foi minha surpresa ao perceber que nenhum deles estavam funcionando. Aliás, funcionando estavam sim, todos, porém, incapazes de captar qualquer coisa. Com relação aos rádios, o novo e o velho, tudo bem sofrerem interferências, para os aparelhos que utilizavam satélites, como o GPS e a telefonia, estes não poderiam – em hipótese alguma – sofrerem com estática ou coisas assim. Um aparelho por satélite, somente deixa de funcionar quando estamos sob muitas lajes de concreto ou de ferro, quando estamos dentro de ambientes extremamente fechados como uma grande caverna ou algo assim. Caso contrário, eles funcionam em qualquer lugar do planeta, diferentemente dos rádios. Essa era a maior de todas as minhas dúvidas.

Mesmo assim, resolvi descer até a praia, explorar melhor onde eu estava. Caminhei até a popa, onde o bote infalível ficava sempre amarrado. Assim que me sentei no pequeno barco, não resisti ao impulso de colocar a mão naquela água, de tanto que me chamava a atenção, sentir sua temperatura, seu gosto. Não foi minha surpresa, ao perceber que, assim como todo o clima, a temperatura da água parecia mais uma aconchegante banheira. Levei a mão à boca, notei que a salinidade era muito baixa, mesmo olhando todo o oceano à minha frente. Soltei as amarras, e comecei a remar.  Ainda com um certo receio, mais com muita curiosidade e emoção, perdido nesse misto de sensações, eu lentamente me aproximava da praia.

Aquelas águas tranquilas permitiram que eu desembarcasse sem nenhum esforço. Descalço, toquei a areia, um arrepio percorreu todo o meu corpo, como se eu estivesse descarregando ou me carregando com alguma energia. Aquela sensação estranha de ficar em pé, em terra firme, depois de muitos dias embarcado, me deu um certo conforto, pelo menos isso continuava normal, pelo menos alguma coisa ainda obedecia aos padrões conhecidos. Por mais uma vez, procurei olhar a minha volta, apesar de toda aquela beleza que a natureza me proporcionava, pelo menos, aparentemente não havia mais ninguém naquele lugar.

O Sol, piscando entre os coqueiros, me convidava a caminhar um pouco. É difícil acreditar nisso, mas quando se passa muitos dias dentro de um barco, principalmente em uma pequena embarcação, ter os pés em terra firme, sempre causa um certo desconforto. Precisamos sim de um certo tempo para nos readaptarmos sobre um piso sólido e estático. Somente quem passa dias, semanas ou até mesmo meses embarcado sabe bem o que é isso.

Caminhei dessa forma, por horas. Eu podia sentir os meus pés sendo massageados pela areia a cada passo dado. Enchendo o peito com aquele ar fresco, eu percebia minha mente desprender-se do corpo cada vez mais. Vez por outra, aqueles pensamentos preocupantes tentavam voltar. Eu sabia. Mesmo desfrutando de toda beleza e, essa incrível sensação de paz e harmonia, o meu lado racional procurava imperar em meu ser. Poderiam as bússolas voltarem a funcionar? E quando aos rádios? E o GPS?

            Dentro das hipóteses que levantei há alguns dias, o fato de eu não poder me comunicar com mais ninguém, poderia sim ser um forte indicativo de que eu estava morto. Isso pelo menos explicaria – contundentemente – a impossibilidade de qualquer contato com a família, como os amigos ou mesmo com qualquer outra pessoa.

Mas, mesmo assim, mesmo com pensamentos desse tipo, a energia que emanava daquele lugar, mais a sua exuberante beleza, aos poucos, gradativamente, aumentava o meu estado de relaxamento, chegando a um nível que nada mais possuía forças para me tirar daquele estado de pura graça e harmonia. Por um instante, quando olhei para trás, percebi que eu já havia caminhado tanto, tanto que não podia mais ver o Gaivota. Decidi começar a retornar. A maré mostrava ter subido muito, e nem mesmo esse fato, ainda me preocupava, eu sabia que o Gaivota estaria bem. Quando parei de caminhar, olhei fixamente para o Mar e repeti os meus últimos pensamentos: “A maré mostrava ter subido muito”. Notei que esse fato observado, embora completamente normal no mundo onde eu estava habituado, desde que iniciei essa viagem e as coisas estavam a cada novo dia mais e mais estranhas, me senti feliz por observar algo familiar, ou seja, algo funcionando como eu estava acostumado a ver.

Já de volta, em minha cabine, eu tentava por mais uma vez, um contato com alguém, pelos rádios e pelo telefone via satélite. Tudo de forma totalmente inútil. Aquela espécie de interferência magnética parecia continuar bloqueando as frequências dos aparelhos, até mesmo a captação e envio da telefonia. As bússolas, não conseguiam decidir mais onde era o Norte. E com isso, não pude deixar de mais uma vez pensar em possibilidades extremas e, até mesmo absurdas, como a de que eu realmente poderia estar morto, principalmente depois de tudo que eu pude vivenciar nesses últimos dias. Mas, de súbito, me veio a lembrança de que ainda me restava o velho e bom 1sextante, que, junto as nossas amigas estrelas, infalivelmente poderiam me ajudar a definir onde eu estava. Sim! O meu sextante. Por que eu não me lembrei dele antes? De certo que eu não tinha muita intimidade com aquele antigo instrumento, mas com certeza ele poderia muito me ajudar quanto a localização de onde eu estava.

            Assim, bastaria a noite nos agraciar com sua presença, se é que hoje ela viria, para que eu pudesse relembrar como se usava esse aparelho desenvolvido em 1757 por Campbell, um oficial da marinha inglesa, que alargando o arco do limbo do octante para 60º, acabou criando assim o sextante. A luz dentro da cabine diminuía rapidamente, o que significava que pelo menos nesse sentido as coisas estavam se mostrando normais. O balanço daquela praia, em nada me incomodava. Um leve ruído do Mar, chocando-se com os rochedos não muito distantes, contribuía com a sinfonia local, tornando o lugar deliciosamente agradável.  

Evitei ascender às luzes. Decidi poupar as baterias. Apesar dos painéis solares que captavam e transformação o dia inteiro a luz solar em energia, ainda assim não vi necessidade de acendê-las. O céu se mostrava tão limpo que certamente as estrelas e a lua poderiam iluminar todos os seres agraciados com seus encantos. Confesso que a ideia de utilizar o sextante me deixou apreensivo. Não pelo fato de propriamente usar o aparelho, mas sim, um certo receio de descobrir onde eu realmente estava. Eu não sabia explicar nem a mim mesmo, mas depois de tantas coisas estranhas que acabei presenciando, acredito mesmo que eu estava preparado para qualquer coisa, qualquer que fosse a verdade sobre tudo aquilo, talvez não teria mais forças para me impressionar, até mesmo, a possibilidade de eu não estar mais vivo. 

1Sextante: é um instrumento elaborado para medir a distância angular na vertical entre um astro e a linha do horizonte para fins de cálculo da posição e para corrigir os eventuais erros da navegação estimada.

Com o sextante nas mãos, e um pouco de coragem para seguir em frente, acendo meu cachimbo e, em companhia desse meu outro velho amigo, subo ao convés. Um ar de nostalgia surgiu ao perceber mais consciente o que eu estava fazendo. Utilizar um equipamento como esse, hoje em dia, é como fazer contas usando uma régua de cálculos, aquela desenvolvida pelo matemático William Oughtred, que se baseia na sobreposição de escalas logarítmicas.

 Ao sentir meus cabelos sendo jogados de um lado para o outro, sinto uma brisa agora mais fria, que começava a refrescar aquele pedaço do paraíso onde eu estava. Olhei para o Céu, as primeiras estrelas, finalmente começavam a surgir, doces, expendidas. Refletidas sobre um Céu azul muito escuro, trazendo consigo impressões únicas, como se eu ainda não tivesse visto um Céu estrelado.

Circundando os olhos ao redor, eu procurava pela lua.  Numa noite tão clara como aquela, acreditei ser impossível não deixar de ver o astro prateado da noite. Mas, para que eu continuasse caminhando dentro do mistério, ela não estava presente. Não surgia em nenhum canto do Céu, nem mesmo por de trás das montanhas à minha frente.

Depois de mais algumas horas contemplando aquele cenário único, à noite finalmente se fazia presente. Com alguns mapas, cartas Marítimas, e meu astrolábio, comecei a tentar me localizar. Não demorou muito, para que eu percebesse, que todos aqueles mapas que eu sempre carreguei comigo, e que, por muitas vezes me ajudaram, agora, eu não conseguia estabelecer uma relação se quer com que eu via no céu, com o que estava registrado naqueles papeis.  

As constelações, que praticamente todos estamos acostumados a ver no céu, simplesmente não estavam mais em seus lugares. Como que se um forte vento, tivesse sacudido o universo, desarrumando sua ordem natural. Mesmo concluindo, que praticamente a minha última esperança de tentar definir onde eu estava, havia se perdido, ainda assim, um leve sorriso se fazia presente em meus lábios. Eu me sentia como um personagem dentro de um gigantesco vídeo game, cercado por mistérios de todos os lados, onde alguém, do outro lado, tentava me vencer ou, mostrar-me alguma coisa a todo custo. Mesmo receando tudo isso, de forma inexplicável, eu continuava me sentia muito bem. E, até mesmo esse fato eu não era capaz de entender. Como eu poderia estar aceitando tudo aquilo com bom humor e não me preocupando com nada. Às vezes, é claro, eu me flagrava com temores sobre o que eu estava vivenciando, justamente por não ter explicações do que realmente estava acontecendo, mas na maioria das vezes, mesmo diante de coisas como essa que acabara de acontecer, ainda assim eu poderia dizer que estava bem.

Tentei mais algumas vezes, mas definitivamente, aquele não era o céu que estava em meus mapas, aquele não era o Universo que eu conhecia. Meneando negativamente com a cabeça, esbocei um leve sorriso, um irônico sorriso de “é brincadeira”.

Olhando para toda a costa que se seguia a minha frente, uma negritude, acompanhada dos sons característicos da mata, faziam a trilha sonora daquele filme. Em vão, eu procurava ao redor por alguma luz, algum sinal de vida humana. Mas nada, absolutamente ninguém, parecia estar comigo desfrutando de toda a aquela natureza. De certo que eu, ainda não sabendo onde estava, eu desconhecia se aquele lugar era alguma ilha no meio do oceano, ou algum pedaço de continente desabitado.  

Novamente sorrindo com toda a situação, jogo a cabeça para trás, tencionando a nuca, agora buscando não sei mais o que. De súbito, lembrei-me que a fome existia, e que, ainda naquele dia, eu perplexo com o lugar, e tentando me localizar, e tentando me comunicar com alguém, não havia feito nenhuma refeição. Mas, uma certa preguiça de descer, preparar algo, se equilibrava com a fome que eu sentia.

Eu sempre soube administrar muito bem a dor, a fome, e outras características que fazem parte da natureza humana. Como um adepto da ioga, durante muitos anos, pratiquei o exercício de jejuar, tendo à frente, praticamente tudo o que eu desejasse comer.  Dessa forma, passar um, dois ou mais dias sem colocar nada na boca, para mim nunca foi um martírio.

Ainda no convés, andando de um lado para outro, eu continuava tentando entender o fato de estar me sentindo tão bem e isso, em todos os sentidos. Fisicamente, eu sentia meu corpo como se tivesse 20 anos. Mentalmente, uma paz, uma serenidade, juntas não permitiam que nada, absolutamente nada pudesse me tirar desse estado de puro estaze. Até aí tudo bem, se sentir bem. O que mais me intrigava era o fato de ter vivenciado todos aqueles fatos estranhos, estar em um lugar que eu não fazia a menor ideia e mais, completamente sem comunicação com o restante do mundo. Eu estava convivendo bem, aliás, muito bem, com tudo isso, inclusive, com a forte possibilidade de eu estar morto e ainda não havia me apercebido disso. Isso sim me intrigava.

O fato de não saber aonde eu estava, e mais, sem nenhum equipamento que pudesse me guiar, simplesmente, tornava o meu retorno para casa, um desafio imensurável. Caso eu decidisse retornar agora, nas condições que eu me encontrava, eu teria que me lançar novamente ao Mar, ficar navegando indiscriminadamente até que conseguisse – pelo menos – saber aonde eu estava para assim poder definir para onde ir. Simplesmente isso! Ou seja, absurdamente isso!

Mas, nada disso importava. O que realmente eu queria era viver aquele momento, desfrutar daquele lugar que, chama-lo de lugar era sem dúvida uma ofensa, desfrutar daquele paraíso e continuar procurando assimilar tudo o que eu pudesse, pois, caso eu tivesse a minha vida normal de volta, certamente eu não teria outra chance de viver tudo isso novamente.

 

CAPÍTULO – 11 

De repente, olhando o Mar distante, acredito por um instante, ter visto uma pequena luz, a algumas milhas da costa. Devido ao eterno balanço do Mar, mesmo que realmente essa luz estivesse lá, ela apareceria piscando com o movimento da água. Fixei meus olhos no ponto onde eu acreditava ter visto aquela luz em total expectativa. Mas ela insistia em não aparecer novamente. Eu poderia jurar tê-la visto, amarelada, fraca, como que em uma pequena e rudimentar embarcação. Ainda procurei pela minha pequena luz, mas não mais a encontrei. Novamente pensamentos e incertezas pairavam em meu ser:

— Estaria eu vendo coisas agora? Estaria eu tendo alucinações?

Mesmo assim, de forma incrível, nem mais essa dúvida era capaz de me abalar. Ainda segurando um dos cabos de aço que sustentam o mastro, continuei despretensiosamente olhando naquela direção. Passaram-se mais alguns minutos, e, de repente, com o coração voltando a bater mais acelerado, acredito ter visto algum indicio de luz novamente, ou quem sabe uma chama, sim eu estava vendo fogo, só que desta vez na praia. Devido à escuridão, eu não era capaz de precisar a que distância estaria. Só que, desta vez, essa pequena e longínqua chama, ou luz, não desapareceu mais. Com o vento, ou mesmo pela distância, eu podia perceber que, vez por outra, diminuía ou se intensificava. Mas, era sim uma fogueira, a chama de uma fogueira.

Sem pensar em nada, consequências ou qualquer outra coisa, não tive dúvida e pulei no Mar. Esqueci até mesmo do bote inflável preso na popa do Gaivota, sai nadando em direção a areia e quando lá cheguei, comecei a caminhar ao encontro daquela luz.  Afinal de contas, há muitos dias eu não mantinha um contato com alguém, nem mesmo por rádio, ou telefone. Há muitos dias eu precisava de explicações. Há muitos dias eu não estava entendendo nada do que estava acontecendo. Há muitos dias eu precisava confirmar se eu estava vivo ou não. Mesmo com o receio de poder me deparar com pessoas hostis, como piratas que saqueiam embarcações para vender seus equipamentos, e que, todos sabemos que infelizmente ainda aterrorizam os Mares, mesmo assim eu estava decidido a me aproximar e ver quem estava comigo naquele pedaço do paraíso.

A cada passo que eu dava naquela direção, sentia que uma certa expectativa crescia conforme eu me aproximava. A areia se mostrava espessa, massageando novamente os meus pés, que afundavam um pouco dentro de sua textura. A brisa fria tocava o meu rosto, fazendo que minha face, às vezes ardesse.

A essa altura, eu já levantava hipóteses de quem, e como eu encontraria a pessoa responsável por aquela chama. Um pouco mais próximo, eu já podia ter essa certeza, tratava-se realmente de uma chama. Sim! Era mesmo uma pequena fogueira. Inconscientemente, não pude deixar de começar a me fazer perguntas, perguntas idiotas e sem sentido, mas que realmente eu as estava fazendo:

— Será que vou ser bem recebido?

— Será que aquela pessoa poderá me dizer onde eu estou?

— Qual língua ele deve falar?   

— Será que reside aqui, ou estaria só de passagem?

— Poderia muito bem, estar apenas repousando, para continuar sua viagem no dia seguinte?

Dúvidas e mais dúvidas. Mas agora uma expectativa de poder – quem sabe – começar a entender o que estava acontecendo se tornava cada vez mais e mais crescente.

Continuei me aproximando lentamente. Aos poucos, eu já podia vê-lo melhor. Tratava-se de um velho. Cabelos longos, brancos como as nuvens em um dia ensolarado, mas que por culpa das chamas, parecia-me amarelados. Ele permanecia de costas para mim. Mexia constantemente no fogo, e não demorou muito, pelo cheiro que eu sentia, percebesse que ele preparava um delicioso peixe. Aquilo me fez lembrar por mais uma vez, que ainda não havia me alimentado naquele dia. Continuei caminhando em sua direção. Eu poderia jurar, que até aquele momento, ele ainda não havia percebido a minha presença.  

Preocupado em não o assustar devido a escuridão e o deserto que nos encontrávamos, resolvi, mesmo que ainda meio distante, cumprimentá-lo:   

Hy my friend!

E, para me deixar ainda mais surpreso, mais atordoado e, conseguir aumentar o meu rico depósito de dúvidas, ele sem se virar, continuando no preparo de seu alimento, simplesmente responde:

Boa Noite Marco!

            Eu não acreditei! E eu, que ainda há pouco estava preocupado com a língua que aquele homem poderia falar e, no entanto, além de falar o nosso bom e velho português, ele ainda sabia, o meu nome, e mais, sem se virar para trás, para ver quem lhe falava.

            Definitivamente, eu estava vivendo mesmo um grande mistério. Quanto mais eu me esforçava para tentar entender alguma coisa, mais dúvidas surgiam e de forma crescente e inenarrável. Mistérios e mais mistérios. Eles agora faziam parte integrante da minha vida. Eu já estava mesmo quase que aceitando tudo isso e não mais questionar nada, nem comigo mesmo. Mas, naquele momento, eu não pude me conter. Circundando a pequena fogueira que assava um belo peixe, pude finalmente ver o rosto do homem que acabava de aumentar ainda mais às minhas dúvidas sobre tudo. 

Seus longos cabelos brancos, agora pareciam ainda mais amarelados e brilhantes com a luz das chamas. Uma barba também muito branca tornava sua fisionomia doce, sábia e serena. 

Mesmo procurando me aproximar, ainda não conseguia vê-lo perfeitamente. À noite, embora com o céu estrelado, me impedia de enxergar os seus olhos, os seus traços. Eu precisava satisfazer minha curiosidade, ou seria sufocado definitivamente por ela. De súbito, resolvi questioná-lo:

Me desculpe Senhor. Mas, como sabias o meu nome?

O velho esboça um pequeno sorriso, olha em minha direção, volta o seu olhar ao fogo e continua mexendo no peixe, enquanto responde:

— Eu vi em seu barco, quando o encontrei a deriva, antes de ancorá-lo nessa praia. Você dormia um sono tão repousante, que achei melhor não te acordar, eu sabia que você precisava desse descanso.

Finalmente! Finalmente agora eu tinha uma resposta. Uma, pelo menos uma resposta surgia para minhas perguntas. Agora, eu entendia como fui acordar naquele lugar, com meu veleiro perfeitamente ancorado onde estava. Sentindo-me mais animado, mais confiante na presença do velho e, principalmente com a sua resposta a minha pergunta, continuei não me contendo e disparando mais e mais perguntas:

Posso lhe perguntar aonde estamos?

 

CAPÍTULO – 12

 O velho levantou a cabeça, parou por alguns instantes de mexer no peixe, me olhou nos olhos, como que se estivesse dizendo alguma coisa com eles e voltou a abaixar a cabeça, mostrando-me de forma clara, evidente, não querer falar sobre o assunto. O fato de não querer perder meu novo amigo, não ser indelicado, chato ou qualquer outra coisa, fez com que eu me calasse por algum tempo, não insistindo mais. Eu parecia ter entendido o recado.    

            Enquanto isso, ele continuava concentrado no seu assado, que a cada instante parecia mais saboroso. Continuei observando-o. Por mais que eu procurasse não o perturbar não resisti a mais uma pergunta:                  

Importa-se que eu permaneça aqui?  

Claro que não! Eu estou preparando esse peixe para nós dois, ou você acha que eu vou comer tudo isso sozinho?

Com essa resposta, eu sentia meu coração se animar, novamente, principalmente com a possibilidade de ficar ao seu lado. Eu estava há muitos dias sem falar com ninguém. Além do mais, durante esse tempo todo, acumulei muitas perguntas sem respostas. E esse velho, mostrava através de sua fisionomia, saber muita coisa que ainda me enchia de dúvidas. O fato de poder estar ao seu lado, quem sabe ser um amigo, poderia esclarecer um pouco desses mistérios que vinham me acompanhando.     

Ele continuou calado, e eu também. Eu não podia deixar de ficar observando aquela enigmática figura. Suas roupas mostravam que ele era uma pessoa muito simples, quem sabe talvez um nativo, o que contrastava de forma radical, com sua desenvoltura, principalmente quando falava. Olhei para o Mar, percebi que algo balançava mais adiante. Uma pequena embarcação, muito simples e rudimentar, ancorada, provavelmente era a luz que eu havia visto no Mar, quando rumava para essa praia.

E, foi justamente observando-o que comecei a deduzir que ele agia de forma como se estivesse esperando por mim. Ele havia mencionado que estava preparando o peixe para nós e, realmente aquele era um peixe muito grande para uma só pessoa. Mas, eu não quis continuar com as minhas fantasias e decidi estar mais presente, mais atendo ao momento que eu agora estava vivendo ao lado daquela enigmática figura.

Algumas pedras compunham aquele cenário. O Velho retirou do fogo as tiras de bambu com o peixe entre elas, enfumaçando, com um cheiro que castigava gravemente um estômago faminto. Ele colocou-a sobre uma das pedras, sobre folhas de bananeira, e de forma gentil, começou a me servir. Engraçado, aquele era o jeito que eu mais gostava de preparar um bom peixe, no fogo, bem assado e quando não dispunha de grelhas especiais para isso, eu também fazia uso de tiras de bambu. Confesso que aquela sena me chamou e muito a atenção.

Confesso, que todo aquele meu controle, em relação à fome, a dor, esvaiu-se do meu corpo, fugindo como um animal assustado. Agora, eu era um irracional faminto, guiado pelo instinto da sobrevivência. Comecei a comer aquele peixe, e tinha que admitir: não era apenas por causa da fome que eu sentia, mas aquele peixe foi o mais delicioso que já coloquei em minha boca. Eu o comia com tanto prazer, que me preocupava até mesmo em não parecer um selvagem, enquanto olhava para o meu novo amigo.

O bom senhor, sentado de cócoras na areia, fazia sua refeição de forma calma e serena. Agora, eu não desejava falar, fazer perguntas. Eu só queria comer, satisfazer as necessidades básicas do meu corpo. Vez por outra, eu olhava para o velho, e ele, às vezes se portava, como se eu nem estivesse ali. Ele continuava comendo, com os olhos voltados ao escuro horizonte do Mar, passando a mim, a impressão de estar muito longe daquele lugar, daquele momento.

Por mais que eu já conhecesse pessoas nesses quase 60 anos de vida, ainda assim, eu nunca me deparara com alguém tão estranho, misterioso e enigmático. Aquele homem, de roupas simples, aparentando uns 80 anos ou mais, de poucas palavras, encontrou minha embarcação à deriva, entrou em minha cabine, me encontrou dormindo. Para minha sorte, conduziu o Gaivota até uma praia tranquila, ancorou de forma segura meu veleiro, e sem tocar em nada, desapareceu. Eu, em meu desespero, só, e sem entender nada do que me acontecia nesses últimos dias, tive que achá-lo. Agora, com um caminhão de perguntas na ponta da língua, eu procurava me conter, para não ser desagradável e extrapolar todo meu ímpeto com às minhas dúvidas.

À noite prosseguia. Eu podia sentir, aquela fresca brisa, agora se transformado em um vento mais gelado, convidando-me a um abrigo. No corpo, eu sentia que minhas roupas começavam a secar e com o conforto de um estomago cheio eu começava a ser convidado para o merecido repouso daquele dia.

O velho terminou de comer. Levantou-se. Com a mesma tranquilidade com que comia, caminhou até o Mar. Abaixando-se, lavou as mãos, depois o rosto. Com o corpo totalmente ereto, voltado para a imensidão escura do Mar, contemplou por mais alguns instantes tudo aquilo, jogou a cabeça para trás, olhando as estrelas, olhou para o Universo. Com as duas mãos, ajeitou os cabelos para trás, como eu costumava sempre fazer, e voltou, voltou caminhado em minha direção. Depois de horas que estávamos juntos, pela primeira vez, ele me dirigiu a palavra:

E então, gostou do jantar?

            Eu animado por sua iniciativa, mais do que depressa afirmo com a cabeça, dizendo nunca ter provado um peixe tão delicioso. Ele sorriu. Um sorriso triste, que mais parecia querer me agradar.

Com essa retomada de diálogo, me animo em perguntar-lhe novamente, se ele sabia onde estávamos. Ele, olhando firme em meus olhos, devolvendo a pergunta diz:

Onde você acha que está?

Pronto! Aquela resposta sintetizou tudo o que eu não desejava ouvir. Agora, depois dessa resposta, eu começava sim a perceber que eu não estava em mais uma linda praia, em mais um lindo passeio como vinha fazendo nesses últimos 5 anos da minha vida. Alguma coisa muito mais sublime, muito maior estava acontecendo. Mesmo assim, decidi entrar no clima e me descontrair. Agora era eu quem abria um leve sorriso descontraído, respondendo:

Senhor! Eu estou no Mar, navegando rumo ao norte, acredito eu por mais de um mês. Durante esse percurso, mais precisamente nesta última semana, perdi a comunicação dos rádios, do telefone por satélite e do GPS. Minhas bússolas, não conseguem mais apontar para o norte de forma confiável. E o meu instinto de navegador, se perdeu como se eu estivesse completamente embriagado. Eu tentei usar o sextante, mas por alguma razão, alguém desarrumou as estrelas lá em cima e, nem assim eu consegui sequer uma pista de aonde eu poderia estar.

O velho encheu os pulmões de ar enquanto me ouvia, soltando-os rapidamente, como que em desagrado com que acabara de ouvir.   

Você enrolou, enrolou, mas não respondeu a minha pergunta. Onde você acredita estar agora?

Mesmo não apreciando muito a forma com que ele fez essa colocação, eu me sentia obrigado a admitir que ele estava certo. Contornei, contornei e acabei não respondendo a sua pergunta. Quantas vezes fazemos exatamente isso em nossas vidas? Principalmente quando não desejamos responder, quando não desejamos assumir uma posição, ou quando desejamos mesmo é fugir da nossa realidade?

O senhor tem razão! Na verdade, eu não faço a menor ideia de onde estou. Para lhe ser sincero, às vezes eu acredito estar no Triângulo das Bermudas, e ter sido transportado para uma outra dimensão. Outras vezes, devido as enormes manchas escuras que circundaram sobre o meu barco durante dias de forte nevoeiro, creio ter sido abduzido enquanto dormia por seres extraterrestres. E por fim, quando experimento o sabor de toda essa beleza, encho o meu peito com esse ar puro, e me sinto tão bem, como nunca me senti antes, aí então, eu acredito que, graças a uma vida idônea, agora fui presenteado com um passaporte para o paraíso, não fazendo mais parte do mundo dos mortais. Aliás, essa é sem dúvida a alternativa que mais me convence depois de tudo que experimentei nesses últimos dias e, continuo experimentando.

Antes mesmo de terminar, percebi que o velho começava a rir, balançando com a cabeça de forma ironicamente negativa.  Acabei entrando no clima e rindo de minhas hipóteses, ainda em uma grande dúvida, sobre a quantidade de besteiras que eu devo ter dito. E foi exatamente isso que me forçou a dizer:

Pela sua expressão Senhor, pela sua reação, acredito ter errado em todas as alternativas!     

            Lentamente, ele vai devolvendo a seriedade em sua velha face. Olhando para o chão, olhando para o seu lado esquerdo, depois o direito, como que ensaiando o que iria dizer, finalmente responde:

— Talvez você tenha errado, ou quem sabe tenha acertado todas. Na verdade, o que isso importa?

            Agora quem fecha o semblante sou eu, me cansando do jogo onde cada vez eu conseguia mergulhar mais fundo em minhas dúvidas, não resisti e devolvendo a pergunta de uma forma mais incisiva:

Não importa saber aonde estou?

Mostrando não ter apreciado o tom que usei, rapidamente ele argumentou elevando consideravelmente o nível da nossa conversa.  

— E, por acaso, você sabe pelo menos quem você é?  Quer saber tanto onde está, você sabe pelo menos de onde você veio? E mais...

— Espere um pouco! – acabei de forma mal-educada interrompendo-o – já sei o que o senhor vai falar, “Eu não sei para onde vou” também.

Essas perguntas não valem! Eu desconheço algum ser vivo, que possa ter essas respostas. Eu posso não saber onde estou agora. Mas, misturar isso com alta filosofia, é ir longe demais.

Ele me olhou fixamente nos olhos, ao contrário do que eu estava esperando, ele demonstrava estar gostando do nosso joguinho e, mostrava ainda estar disposto a continuar para ver até onde eu poderia chegar, voltando a dar as cartas:       

Por que você deseja tanto saber onde está? Você mesmo acabou de afirmar que aqui, nesse pedaço de paraíso, você se sente tão bem como nunca se sentiu antes. Isso não basta?

Confesso que essa me pegou de surpresa. Ele tinha ração. Acredito que o maior objetivo da vida de uma pessoa esteja centralizado na sua felicidade. Tudo que fazemos, tudo que compramos, tudo que conquistamos, até mesmo os presentes que damos para aqueles que amamos, só fazemos isso com um único e simples propósito: nos sentirmos felizes. Esse é um posicionamento que muito admiro do nosso Mestre Dalai Lama, quando ele diz que, o objetivo mais sublime que um ser humano pode ter é a felicidade, e isso, sem colocar condições entre ele e a felicidade. Mas, agora era minha vez de dar cartas:  

Tens razão! Sinto-me tão bem aqui, como nunca me senti antes. Reconheço plenamente essa condição, mas tenho minha família, meus amigos...  sinto que eu tenho que voltar, estar com eles.

Um silêncio se fez em nossa contenda, como se ambas as partes estivessem preparando o próximo passo, quando ele me fez outra pergunta:

E por que você precisa voltar? Por acaso, as tuas filhas já não são capazes de cuidar de suas próprias vidas?  Teus amigos, não guardam boas recordações de você? Ainda assim, você tem certeza que precisa voltar? Para que você precisa voltar?

Minhas filhas? – pensei comigo mesmo – Como ele poderia saber que eu tenho “filhas”?

            Por mais uma vez eu percebi que as respostas dele, estavam caminhando para uma única possibilidade: eu estaria realmente morto e ainda não havia me apercebido disso. Mesmo assim, mesmo carregando essa possibilidade que se tornava cada vez mais evidente, continuei com o nosso jogo:

Olha, sinceramente já não sei de mais nada. Quando te encontrei, achei que poderia obter respostas às minhas dúvidas, pelo menos saber aonde eu estava, mas dessa forma, eu me sinto mais confuso ainda.

Ele sentado agora à minha frente, em uma pequena pedra, com os cotovelos nos joelhos, passando a mão na barba, lançava novamente seu olhar distante. Com toda certeza ele não estava procurando o que dizer. Acredito mesmo, que mesmo antes de me encontrar, de me conhecer, ele já sabia de tudo isso, quanto mais do que deveria dizer:

            Não se preocupe! Você não é o único. Quase todos costumam entregar suas vidas a caminhadas, escolas filosóficas, religiões, seitas, ou para quem sabe, encontrarem alguém que possa lhes responder a todas suas dúvidas. Mas, poucos, apenas uma pequena minoria, tem a consciência de que as respostas que tanto procuram, só podem ser verdadeiramente encontradas, quando se voltam para o seu próprio ser. Durante toda essa jornada, os homens acabam se entregando a crenças tão absurdas, que mais se parece com um verdadeiro retrocesso à mitologia de milhares de anos, ao passo que tudo que precisam saber está exatamente dentro deles mesmos. Talvez, infelizmente, o último lugar a ser procurado.

            Depois dessa erupção de conhecimento e de pura sabedoria, por mais uma vez tive que reconhecer a minha humilde condição de ser pensante. Um ser que por dispor dessa faculdade, acredita saber tudo. Mas, que infelizmente, quanto mais fizer deduções utilizando a sua racionalidade, menos sabe sobre o saber. É! Eu tinha que admitir tudo isso. Aliás, o melhor que eu poderia fazer depois de tudo isso, seria me sentar sozinho em meu canto e ponderar tudo o que eu havia ouvido.

Bom! – disse ele – já está ficando tarde. Pense em tudo que falamos.            

            Eu desejava conhecer melhor o meu misterioso amigo, continuar com nossas conversas. Quando resolvi questiona-lo se seria possível nos encontrarmos no dia seguinte e, para minha surpresa, sua resposta foi simples e direta:

Tenho que sair ao Mar ainda bem cedo amanhã, pois preciso pescar.              

Diante dessa resposta, eu temia não poder vê-lo novamente, quando fui tranquilizado com sua confirmação de que à noite, eu poderia estar de volta.

Levantei-me. Batendo com as duas mãos na bermuda, enquanto tirava os resquícios de areia, enquanto ensaiava uma despedida, enquanto pensava em uma forma de agradecimento pelo delicioso jantar, quando ele, como que lendo meus pensamentos se manifestou:

— Não! Não! Não!

Assustado eu rapidamente o questionei:

— Não o que?

Esboçando o velho sorriso escondido entre a barba e o bigode ele responde:

— Não precisa agradecer nada. Tudo bem?

Meneei afirmativamente, mas depois de tudo isso, quando já estava me retirando, tive o ímpeto e a ousadia de perguntar se eu não poderia acompanhá-lo em sua pescaria. O velho olhou fixamente para mim, como quem procurava razões para fazer o que eu fazia:

Você sabe que eu não posso te oferecer nem de longe, o conforto e a comodidade que você tem em sua embarcação não sabe? Caso desejas, conhecer a rispidez do trabalho de um pescador de verdade, e está disposto a acordar as 04 horas da manhã, tudo bem. Mas, tenha consciência desde já: uma vez no Mar, só voltaremos a terra firme, no final do dia, aconteça o que acontecer. Mesmo assim ainda queres ir?

Ele agora estava me desafiando. Eu tinha certeza absoluta que sabia quem eu era, o que eu fazia, e mais, quais eram os meus limites físicos e mentais. Ele sabia muito bem que eu também era um homem do Mar e, não era porque eu tinha um belo e confortável veleiro que eu não aguentaria navegar em uma simples embarcação rudimentar. Mas, mesmo assim, eu tinha que responder à altura:

Eu sou um homem do Mar, e tudo nele, faz parte da minha vida.

O velho deu com os ombros, como que desejando falar: “se não tem jeito, então vamos!?”.

Eu senti que ele sabia que eu sempre tive um carinho muito especial por pescadores. Durante a minha vida, por inumares vezes, saí ao Mar com eles, saboreando os perigos, o castigo do Sol sobre o corpo, as mãos não acostumadas, completamente queimadas pelas cordas de náilon, mas desfrutando o incrível prazer de estar sobre o Mar, tirando o meu sustendo do útero gigante que concebeu a minha própria vida. Não, nada disso me assustava. Mesmo aparentando ser uma pessoa acostumada às regalias de um confortável veleiro, estar em uma pequena e rudimentar embarcação, sem dúvida, me dava muito prazer.  

Antes de me despedir finalmente, questionei-o se ele não desejava vir comigo para o Gaivota. Com várias camas disponíveis, ele poderia ter uma noite confortável. Mas, educadamente ele recusou, dizendo que tinha onde pernoitar. Diante do exposto, eu não quis insistir, para não ser inconveniente, concordei e mesmo assim me coloquei a sua disposição.

Acabei me despedindo por mais uma vez. E carregado de uma certa alegria, caminhava pela noite escurara, afundando os pés na areia, de volta ao Gaivota. Os poucos traços que à noite me permitiu ver do velho pescador, agora se faziam presentes em minha mente, junto com mais e mais perguntas, sobre quem poderia ser essa tão enigmática figura? O que tudo isso, esse contato, poderia significar para mim? E mais outras tantas perguntas que certamente dormiriam comigo.


CAPÍTULO – 13 

Assim que cheguei, conferi as amarras. Pelo volume com que a maré havia subido, era quase certo que amanhã, quando a água voltasse para o seio do oceano, o Gaivota, poderia ficar com sua bolina na areia, o que poderia causar sérios danos ao casco. Diante dessa possibilidade, simplesmente aumentei o tamanho das cordas das âncoras, com o propósito de que ele desceria junto com a vazante e com isso, a uma profundidade segura para a bolina não tocar o solo da praia.

Ainda deitado, eu não conseguia adormecer. Mesmo tendo encontrado alguém que aparentemente conhecia bem aquele lugar, eu ainda continuava sem respostas às várias questões obscuras. Eu sentia que no dia seguinte, passando todo o dia ao lado do velho, eu poderia começar a esclarecer essas perguntas. Mas, mesmo assim, de uma forma inexplicável, eu não estava conseguindo me desvencilhar da exaustiva necessidade de saber coisas, como: aonde eu estava? O que realmente estava acontecendo ou teria acontecido comigo? Teria eu morrido mesmo? Mas, mais uma dúvida: morto dorme? Porque eu estou tentando dormir. No dia anterior, eu acredito ter dormido muito, muito mesmo que nem percebi o velho ancorando o Gaivota...   

O Gaivota balançava pouco. Mesmo não existindo uma lua naquele lugar, agora eu podia perceber um pouco de luz que entrava com certa dificuldade pelas escotilhas de acrílico. Virava-me de um lado para o outro, tudo parecia me incomodar. Eu estava inquieto. Pensava na minha família, sem notícias a mais de uma semana. Pensava nos meus amigos, a imagem do velho, o pouco que pude ver dele, vinha e desaparecia de minha mente constantemente. Com certeza, eu não conseguiria adormecer naquela noite, caso não me entregasse aos teclados do meu pequeno computador e nele, registrasse pelo menos, mais algumas linhas de tudo que eu havia vivido naquele dia.

Uma questão latejava em minha mente de forma única. Quanto respondi à pergunta que ele havia feito, nas várias possibilidades que se passavam sobre minha mente, agora eu podia ver o ridículo na qual me expus. Realmente ele estava certo. Se repararmos bem, o ser humano, mesmo depois de 21 séculos de história registrada, precisa viver criando deuses, como se ainda vivesse em completa obscuridade científica e espiritual. Ele tinha razão em fazer uma analogia direta com a mitologia. Nesse período, tentando explicar os diversos fenômenos da natureza, o homem atribuía a responsabilidade aos deuses, como o deus Thor, que batia o seu martelo nos céus, provocando os raios e os trovões. Ao deus Netuno, que controlava as marés e assim sucessivamente.

De certo, muito ainda deveríamos descobrir, para se justificar tantos fenômenos que ainda não se tem explicação, mas se entregar ao mesmo tipo de devaneio, como a civilização dos deuses, semideuses e heróis da antiguidade greco-romana, realmente se mostrava estranho, para não dizer “hilário”. Mas, depois de algumas horas, depois de muitas linhas, o sono foi surgindo como do nada, se apoderando dos meus sentidos.  

            Por volta das 04hs30min, acordei assustado, preocupado com o meu encontro com o pescador. Levantei-me sem titubear. Fazia frio. O frio característico das madrugadas à beira-mar. Vesti uma roupa, e mais do que depressa, me coloquei no caminho onde estive com ele na noite anterior.

            Ainda não havia nenhum sinal do nascer do novo dia. Por mais uma vez, os pensamentos me acompanhavam, fazendo surgir com eles, à esperança quanto às minhas dúvidas. Como eu estava caminhando rápido, depois de alguns minutos, comecei a me sentir ofegante, com o coração mais acelerado e, começando a suar. Imediatamente, lembrei-me que todos esses sintomas são pertinentes a um ser vivo, em uma atividade física maior do que a habitual, ou seja, um morto não ficaria, cansado, um morto, não teria seus batimentos cardíacos acelerados por isso, um morto não transpiraria devido ao esforço físico. Dúvidas. Ora eu tinha tudo para acreditar que estava vivendo um processo de transição, entre a vida e a morte, ora eu tinha provas contundentes de que eu estava vivo, mais vivo do que nunca. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas.

À medida que eu me aproximava, já podia mesmo no escuro ver o velho homem do Mar, preparando sua embarcação. Não sei explicar direito, mas ao vê-lo, uma alegria invadiu todo o meu ser. Talvez por ser o único ser humano que eu estivesse vendo em mais de um mês, ou talvez por sentir que ele poderia me ajudar quanto às minhas dúvidas, ou ainda, por ele realmente ser uma boa companhia, sinceramente eu não sabia o que pensar, só me sentia bem ao seu lado e isso, isso sim era o que importava. Agora, o que eu não poderia em hipótese alguma, era negligenciar esse fato, agir mecanicamente (no piloto automático) e não estar presente “mentalmente” quando estiver ao seu lado. Pode parecer absurdo, mas infelizmente eu tenho esse defeito e há anos eu vinha me policiando e muito nesse sentido.

Ao me aproximar, cumprimentei-o com um bom dia. Ele olhando para mim, responde apenas com um sinal de cabeça. Não me decepcionei. Eu não esperava mais do que isso mesmo, pelo que eu começava a conhecê-lo. Eu também tenho problemas de humor logo cedo, precisando de um tempo para que as coisas – aos poucos – vá esquentando e entrando no ritmo certo. Essa foi a primeira vez, desde que nos conhecemos, que eu notei fortes coincidências nosso comportamento, na nossa aparência. Eu, com mais 20 anos, poderia muito bem ter a sua aparência, magro, alto, cabelos brancos e compridos, o jeito de falar, o gosto pelo Mar e agora, agora até mesmo o humor matinal era muito parecido.

Carregando uma pequena bolsa, com uma bússola, um boné, meu cachimbo, água e algum alimento desidratado, perguntei em que eu poderia ajudá-lo, ele já estava terminando de embarcar o material necessário, me chamando, através de um sinal, para subir a bordo.

            Como a prainha onde estávamos tinha águas absurdamente tranquilas, não exigiu nenhum esforço da nossa parte com os remos para chegarmos num local, saindo daquela enseada, onde o vento já possuía uma intensidade considerável, para encher sua pequena vela. Os primeiros sinais do novo dia finalmente surgiam. Longe, no horizonte, aquele tom azul um pouco mais claro, me dizia isso. Já com a vela hasteada, com o pequeno barco batendo de proa nas ondas, finalmente rumávamos para Mar aberto. Eu tinha nas mãos, a corda da vela mestra, ou melhor, da única vela que tínhamos, enquanto meu velho amigo, olhando fixamente à frente, segurava a pequena 1cana do leme.

Respirei fundo! O ar gelado entrou pelas minhas narinas, provocando um certo desconforto. Olhando a ponta do mastro, vi o que poderia ser, a última estrela brilhando no Céu, um Céu que voltava a se tornar azul em passo lento, ficando cada vez mais e mais claro. Sem dúvida, hoje teríamos mais um maravilhoso dia. Meu amigo continuava rumando Mar adentro, e o dia, mais uma vez, nos agraciando com toda sua beleza e esplendor.

Resolvi quebrar o silêncio, procurando ser agradável, mencionei sobre a performance da pequena embarcação, em vencer as correntes e as ondas da enseada onde estávamos. Ele sorriu, sem nada dizer. Confesso que eu estava sendo sincero. Na noite anterior, como estava muito escuro e distante, eu acreditei que sua embarcação não passava de um bote esculpido do tronco de uma arvore. Mas agora, com dia claro, dentro dele, percebi ser um raro e excelente veleiro, do tipo inglês dos anos 20 ou 30 não estou bem certo. De certo que merecendo uma boa restauração, mas mesmo assim, não deixava de ser uma obra de arte feita toda em madeira nobre.

            Com a luz do dia, eu conseguia agora vê-lo melhor. Realmente, aquele rosto me era muito familiar. Suas rugas, entranhadas na carne, agora iluminadas pelo Sol, me diziam a experiência, a vivência escondida por trás daquela frágil criatura. Seus olhos castanhos, tristes, sombrios, pareciam guardar toda ternura e proteção, que um indefeso tanto necessita. Seus cabelos brancos, refletindo ao Sol, pareciam fios de ouro, coroando toda a sapiência adquirida, a dureza de uma jornada ríspida e toda uma vida vivida. Sim, que ser humano interessante, fantástico. 

 

1Cana do leme: é a madeira ou bastão que permite manobrar o leme de um barco.

            De forma inexplicável, eu conseguia me sentir tão bem, que chegava mesmo a duvidar se tudo aquilo era ou não real. Pego o meu cachimbo, percebo que ele me olha de maneira estranha. Questiono-o se eu podia fumar, ele balança a cabeça em sinal afirmativo. Já estávamos navegando há pelo menos duas horas, e só agora me dava por conta, que ele não havia dito nenhuma palavra até então. De forma involuntária, pergunto o seu nome. Ele me olha novamente, volta o seu olhar para o horizonte, e sentado, ali na popa da embarcação, com a mão direita segurando o leme, responde:

               — Eu já tive muitos nomes. Pessoas de diferentes lugares me chamam como querem. Eu não me importo. Qual é o nome que você acha que devo ter?  

— Desculpe-me, mas eu não entendo! Todos temos um nome, o qual zelamos por ele. No entanto o senhor não faz conta nem de qual nome posso chamá-lo?

            O velho sorriu com mais expressão, continuando:

            — Eu te fiz uma pergunta! E você mais uma vez, enrolou e não me respondeu: Qual o nome que você acha melhor para mim?

Tenho que confessar que senti que ele acabara de quebrar minhas pernas novamente. Tentando entrar no seu jogo, naquele instante nenhum nome passava pela minha cabeça. Além do mais, eu estava tentando raciocinar sobre a sua colocação, sobre os seus valores que até então sempre carreguei, e aquele velho parecia destruí-los tão facilmente. Mas, eu não podia como ele acabara de dizer enrolar mais uma vez. Eu tinha que lhe dar um nome. Não sei de onde eu tirei isso, mas meu ímpeto foi dizer:

Mestre! Sim! Mestre! É assim que eu te vejo. É assim que desejo lhe chamar!                        

Percebo que ele balança a cabeça em sinal de negação, enquanto sorri diante das minhas palavras. Eu também acabo me descontraindo com o clima formado, com o que eu acabei de dizer. Ele passa a mão no cabelo, enquanto que a outra continuava segurando a cana do leme, olha para cima, quem sabe procurando pelo Céu:

Isso não quer dizer que a partir de agora, eu terei que responder todas as suas perguntas? Eu terei que te ensinar tudo aquilo que você tanto quer aprender, não é?


 CAPÍTULO – 14 

Não foi difícil para ele perceber que, se eu o via como um mestre, era porque eu sabia que ele tinha todas as respostas que eu desejava. Aquele homem, definitivamente não era alguém que normalmente encontramos em nosso cotidiano, sentamos para beber alguma coisa e ficamos jogando conversa fora. A sua desenvoltura e poder e raciocínio, transcendia qualquer coisa que eu já tivera oportunidade de conviver. Com aquele homem, caso eu não fosse – extremamente – sincero, certamente eu me daria mal. A sua percepção da vida, das pessoas e do meio, era de um nível absurdo até de se imaginar.

Mais algumas milhas à frente, ele pede que eu desça a vela, deixando o barco quase que a deriva. O Mestre – assim passei a chama-lo até em meus pensamentos – ainda segurava o leme, circundando de um lado para outro, olhando para a água, para o Céu. Acreditei que ele procurava por algum ponto, um lugar especial, um lugar que já deveria ser do seu conhecimento. Com a pequena embarcação agora totalmente à deriva, eu podia senti-la subindo e descendo, cerca de 1 metro, mais ou menos, obedecendo o movimento do Mar. Ele olhou para mim, como que esperando por algum mal súbito de minha parte, mas com um sorriso de extrema felicidade, digo-lhe que estou bem, maravilhosamente bem.

Ele se levantou, esticando aquele velho corpo, que ainda se mantinha firme, forte, sustentando toda sua sabedoria. Com alguma dificuldade, procurando se equilibrar, ele caminha até a proa, pega uma velha âncora, amarrada a uma corda de náilon azul, e a joga ao Mar. Pela quantidade de corda usada, calculei que a profundidade do local, não ultrapassava os 50 metros. Pouco, por estarmos totalmente fora da costa.

O Mestre entra na pequena cabine, eu o escutava revirando coisas, quando volta com algumas linhas nas mãos. Oferece-me o material que desejasse usar. Ascendendo o meu cachimbo novamente, disse-lhe que preferia observar primeiro, aprender um pouco, para depois tentar.

Era obvio que eu sabia pescar. Passei boa parte da minha vida fazendo isso. Mas, diante de um homem como aquele, os conceitos do que era fazer bem uma determinada coisa, poderiam facilmente ser mudados. Além do mais, observar, me parecia a melhor coisa que eu poderia fazer naquele momento. Eu não desejava ter “as pernas quebradas mais uma vez”.

Na noite anterior, tentando deduzir onde eu estava, pensei novamente na possibilidade de estar morto. Eu já havia lido, eu já ouvira por diversas vezes, certos posicionamentos religiosos, que acreditam que quando morremos, passamos por um período de desinformação, e que por muitas vezes, precisávamos que alguém, algum “Espírito” um pouco mais evoluído, nos posicionasse dessa nova condição. E esse velho, poderia ser uma dessas pessoas, cuja missão era me receber aqui nesse paraíso, e me conduzir aos ensinamentos que ainda me faltavam. Pelas condições que eu me encontrava, não só essa possibilidade passava pela minha cabeça, mas muitas outras, também faziam sentido. Por isso, deduzi que o melhor mesmo seria observar, e observar muito, e na medida do possível questioná-lo a respeito dessas dúvidas.

O velho preparou alguns anzóis, e antes de arremessá-los ao Mar, voltou para a cabine, saindo de lá com um cachimbo aceso na boca. Olhou-me nos olhos e sorriu. Eu, levantando as sobrancelhas, me senti feliz por ter percebido mais uma coincidência. Felizmente, tínhamos mais algumas afinidades. Ele se senta próximo à proa, e joga três linhas na água; uma na frente, outra a estibordo e a última a bombordo. Prende as linhas em pequenos pinhões encravados nas laterais do pequeno veleiro e, segurando seu cachimbo, arremete o olhar ao infinito. Percebi que naquele instante, ele não estava mais ali. Procurei não o tirar de onde quer que ele pudesse estar. Também com o meu cachimbo na boca, sentei-me na popa, procurando aproveitar ao máximo, esses momentos sublimes.

Mesmo sem fazer a mínima ideia de onde estávamos, ou melhor, de onde eu estava, mesmo assim eu continuava me sentindo extremamente bem. Diante de tantas dúvidas, de tanto mistério, uma coisa era fato: o lugar, aquela praia, aquele Mar onde estávamos pescando agora, jamais eu teria e terei condições de descrevê-los. De certo que eu tinha uma companhia esquisita, mas eu me sentia, muito, muito bem ao seu lado. Por vezes eu tinha uma forte impressão de ele, aquele velho que estava agora à minha frente, nada mais era do que se não eu mesmo, eu mesmo com uns 20 anos a mais. Essa impressão não se limitava apenas pela aparência física, ambos éramos magros, tínhamos praticamente a mesma estatura, 1,82 metros, nós dois usávamos cabelos compridos, mas o jeito, a forma de falar, de ser reservado, sinceramente parecíamos a mesma pessoa e, para completar, tudo indicava que vivíamos o mesmo sonho, o Mar e todos os seus encantos. Muitas eram sim as coincidências. Muitas eram sim as semelhanças entres nós dois.

Mesmo diante de toda sua recusa em falar, em responder às minhas perguntas, no fundo eu sabia muito bem que ele tinha todas as respostas que eu procurava e mais alguma coisa que eu, se quer, podia imaginar. Eu sabia que aquele velho, que dentro daquela cabeça branca, havia muito conhecimento, muita sabedoria.

Depois de algum tempo, ele se levanta. Desde que jogou as linhas na água, não mais tocou nelas. Caminhou de popa a proa por algumas vezes, e me questiona se tenho fome. Engraçado, só agora percebia, que embora eu não tivesse comido nada, eu não sentia nenhuma fome. Aliás, naquele lugar, parecia que eu era desprovido de tal necessidade. Ontem à noite, quando comemos aquele delicioso peixe, o fiz mais pelo prazer de comer, do que propriamente pela necessidade física. E, com ele ainda em pé, à minha frente, aguardando por uma resposta, gesticulou com a mão direita, como que desejando dizer: “E aí”?  

Voltei minha atenção a ele, respondendo que não, agradecendo, arriscando-me a uma colocação:

Senhor, por que, aqui nesse lugar, eu não sinto fome? Se às vezes eu como alguma coisa, o faço pelo simples prazer de comer. Acho muito estranho isso.

Ele sorriu. Como quem sabia realmente do que eu estava falando, mas ainda por algum motivo preferindo não responder diretamente, se manifestou:

Você ainda possui, muito dos hábitos, dos conceitos que o meio, a maioria coletiva impregnou em sua vida. Até mesmo quem você é, suas necessidades físicas e espirituais, ainda são ditadas por essas imposições do meio em que você viveu até agora. Não se preocupe com isso. Aliás, um dia, em algum determinado momento, você irá descobrir que, se preocupar com alguma coisa, seja ela qual for é, senão a maior, uma das maiores besteiras que ser humano pode cometer na vida. Infelizmente a maioria só percebe essa verdade um pouco darde de mais, depois de passar a vida inteira sofrendo com a preocupação.

Por vezes, enquanto ele falava, eu tinha a impressão, de que eu já o conhecia há muito tempo. Realmente, reparando melhor, cada vez mais eu me convencia de que aquele homem tinha exatamente a minha estatura. Seu corpo, esguio, muito se parecia com o meu, e a sua postura, calado, reflexivo e quase sempre divagando longe, contribuía para que eu pudesse jurar que eu não só o conhecia, mas sim, o conhecia muito bem. Ele continuou falando por mais algum tempo. Vez por outra, parava, arremetia seu olhar ao infinito, puxava a fumaça uma, duas, três vezes do seu cachimbo, e aos poucos, meio sem jeito, envolto a fumaça, tentava voltar onde estávamos. Sua serenidade acabava me contagiando, tirando de mim toda preocupação, toda aquela tensão em saber onde eu estava ou coisa parecida.

Depois de alguns minutos, ele começou a puxar uma das linhas. Percebi que algo havia na outra ponta. De forma calma, e sabendo muito bem o que fazia, ele aos poucos vinha trazendo a sua presa. Levantei-me de onde estava sentado, dirigindo-me até perto dele. Com a fisionomia séria, ele continuava com a linha nas mãos, procurando sentir o que trazia.

Percebi, conforme sua presa se aproximava, ele empenhava mais força. Uma luta de estratégia e paciência começava de forma encantadora, ser exibida diante dos meus olhos. Por vezes, ele parava, voltava a apenas segurar a linha. Em outras vezes, soltava-a, como que liberando um pouco seu oponente. Não sei porquê, mas senti que aquilo poderia levar horas.

Ele se sentou ao meu lado. Olhando em meus olhos, senti que desejava dizer: “é preciso paciência”. E eu, balançando a cabeça em sinal afirmativo, concordava com sua suposta afirmação. Sim! Em tão pouco tempo, eu já sentia que nos entendíamos muito bem, até mesmo com um simples olhar.  

Ele voltou seu olhar para água. Pede que eu pegue a outra linha, aquela que estava do lado oposto da embarcação. Assim que o faço, percebo que algo se mexe de forma brusca do outro lado. Sim, agora, eu também tinha um desafio. Uma certa adrenalina acelerou o meu coração. Ele franze as sobrancelhas, passando-me coragem e firmeza com um leve movimento de cabeça em sinal afirmativo. Eu já havia pescado antes, e acreditava saber o que fazia. Mas, àquela linha, puxava com uma força que até então eu nunca havia experimentado.

O meu amigo pescador, segurando a sua linha, mais prestava a atenção em mim do que no que ele mesmo estava fazendo. Vendo meu esforço em não perder o meu peixe, ele sugeriu que eu enrolasse algo na mão: um pano, uma camiseta, qualquer coisa que pudesse protegê-la da ação da linha de náilon.  Prendi a linha em uma ponta de pinhão, e rapidamente tirei minha camiseta enrolando-a na mão direita. Voltei a segurar aquele fio que me ligava a minha primeira grande lição junto a um exímio pescador. Eu estava muito habituado a pescar com varas, carretilhas, molinetes, que faziam boa parte do trabalho, que agora, eu tinha que fazer apenas com as mãos e muita, muita sensibilidade.


CAPÍTULO – 15

 ...O Céu se mostrava com um tom de azul como nunca eu havia visto até então. Mesmo com toda minha concentração voltada para aquela linha, eu não podia deixar de perceber toda a vibração que a natureza irradiava sobre nós. O Sol, com um brilho todo especial, aquecia o meu corpo, sem misteriosamente queima-lo, mesmo com minhas costas entregues a seu prazer. Algumas nuvens desenhavam entre si, figuras conhecidas, que se transformavam com minha doce imaginação. A brisa surgia cada vez que eu sentia o calor me incomodando. Mágico! Tudo muito mágico e extremamente envolvente. Nessas horas, eu era capaz de jurar a mim mesmo, que jamais deixaria aquele lugar...

...A minha companhia, dentro de toda sua introspecção, tornava-se um retrato vivo de tudo que sonhei na vida. Novamente eu era capaz de afirmar que eu tinha diante dos meus olhos a minha própria imagem refletida há algumas décadas à frente...   

Mas, um forte puxão na linha me trouxe de volta àquele momento. Minha presa, do outro lado, dava mais uma vez sinal de vida. E que vida!     

Sentado, eu procurava um lugar para apoiar meu pé esquerdo, me preparando para fazer mais força, caso fosse necessário. Enquanto isso, o mestre, mantinha toda sua atenção voltada a sua linha, continuando com sua luta particular. Por instantes, eu tinha a impressão de que ele se esquecera de mim. Sua concentração era total. Um homem com um único e sublime objetivo: tirar seu alimento dos braços da mãe natureza. Eu o observava calmamente, e a cada instante, o admirava mais e mais.

Às horas continuavam passando. Como uma lição do senhor de todos os tempos, eu tinha que dominar minha paciência junto à determinação. Determinação! Uma das palavras de mais difícil definição. O que é a determinação? Ali, segurando aquela linha, com minha camiseta enrolada na mão direita, com às duas mãos doendo de estar fazendo um esforço por muito tempo, eu tentava encontrar a melhor definição para a palavra “determinação”.

Enquanto, nitidamente eu sentia o meu amigo do outro lado da linha, acabei formulando o que eu realmente entendia sobre “determinação”.

Determinação é um paralelo direto e muito estreito com a teimosia. O que separa uma da outra, é uma fina e tênue linha que deriva do conceito de cada um. A “determinação” é linda, aplaudida, o que significa força. Já a “teimosia” é criticada, vaiada, o que determina burrice.

Assim, naquele momento, sinceramente eu não sabia dizer se eu estava sendo determinado em continuar segurando aquela linha e castigando o meu corpo com isso, ou seu estava sendo teimoso, burro por persistir em algo que no final, em algo que lá na frente, eu estaria vendo que não valeria a pena.

Senti, de forma clara e evidente, que eu ainda poderia extrair muito ensinamento daquela simples ação de pescar. A minha vida inteira passava diante dos meus olhos, fazendo uma crescente analogia com o que eu estava fazendo. Percebi que o Sol já começava a se deitar atrás de nós. Pelos meus cálculos, teríamos ainda mais algumas horas para voltarmos. Seria tempo suficiente para conseguir tirar o meu peixe do Mar?

Dúvidas. A eterna incerteza que se fazia sempre presente. Aliás, pensando melhor, eu percebia de forma cada vez mais convincente, que nossas vidas não passam se não de eternas dúvidas que juntas, pareciam reger essa grande orquestra da qual fazemos parte. Sempre que os meus pensamentos divagavam um pouco mais longe, meu amigo, o meu oponente do outro lado da linha, me dava alguns puxões, me trazendo de volta à outra questão: a minha própria realidade.

O Mestre, ainda concentrado, aos poucos vinha trazendo o seu peixe. Talvez ele, já tivesse aprendido a grande lição, de que toda a nossa história, só pode ser construída, calcada em pequenos e sublimes momentos. E pela expressão daquele velho pescador, naquele instante, toda sua vida se resumia em tirar o seu peixe dos braços do oceano. Eu podia jurar, que naquele instante, no mundo, não existia mais nada para ele se não o que ele estava vivendo. E eu sabia muito bem da importância desse estado: estar presente exatamente onde se está! Uma das ações mais difíceis para que vive divagando pelo espaço e principalmente pelo tempo, assim como eu.

Aquilo que há princípio pode parecer redundante, na verdade, se observarmos bem, é o que mais acontece em nossas vidas. Estamos comendo, mas em vez de nos concentrarmos no que estamos fazendo, ficamos mexendo no celular, ou de olho na TV, vendo uma revista ou livro, se estamos em eu restaurante, ficamos observando os demais a nossa volta, praticamos uma infindável série de ações e de pensamentos, e, quanto ao ato de comer, a esse acaba sendo alguma coisa mecânica, alguma coisa ligada ao “piloto automático”. Se estamos caminhando na rua, em um parque ou na praia, com os fones no ouvido, dividimos nossa atenção com o que estamos ouvindo, o que sobra dessa “atenção”, entregamos geralmente aos nossos pensamentos que, ou está no passado, trazendo recordações tristes ou alegres, ou está na expectativa do futuro, com o que pode ou não nos acontecer. Tudo, tudo isso menos prestar atenção no que estamos realmente fazendo, caminhando, no ambiente a nossa volta, na natureza que estamos interagindo. E uma série infindável de exemplos que mostram – contundentemente – que dificilmente estamos onde estamos, prestamos atenção no que fazemos e coisa assim.

E eu, eu tinha que exercitar esse poder de concentração, eu tinha que aprender essa lição, afinal, uma vida inteira agindo de forma errada, tinha que – definitivamente – chegar ao seu fim, se ainda quisesse poder viver mais um pouco.

Tentei dedicar toda a minha atenção naquele momento, e percebi que eu também poderia começar a trazer a minha presa. Ela, no entanto, quando se sentia ameaçada, retrucava de pronto, tentando desvencilhar-se do anzol. Eu dava-lhe alguns metros de linha, e continuava puxando em seguida. Imediatamente, me vejo arremetido mais uma vez à minha própria história. Quantos objetivos eu desejei em minha vida, e eu, certamente me cansei primeiro do que eles?

Sim, um paralelo perfeito se fazia presente. Na vida, por vezes pude sentir que do outro lado da linha, estava exatamente o que eu desejava. Sei que também briguei muito, tentei durante meses, anos, trazer essa minha presa, mas agora eu tinha que admitir: por vezes, eu me cansei primeiro. E aqueles objetivos, terminaram me vencendo. Eu estava certo, quando logo no inicio daquela simples pescaria, eu poderia estar diante de muito ensinamento, de muito conhecimento que poderia ser absorvido.

Mas, dessa vez não! Minha determinação crescia de forma assustadora. Eu estava plenamente convicto que traria aquele peixe. Ele, a essa altura, significava para mim, mais do que a minha própria necessidade de viver. Um desafio. Um ensinamento que trazia consigo um sentido único: vencer, ou ser derrotado mais uma vez.

À minha esquerda, o mestre já mostrava estar quase vencendo o seu desafio. Seu peixe, já começava a pular para fora do Mar, mostrando sua prateada forma, brilhando com o pouco Sol que ainda enchia de luz aquela pintura. Eu podia sentir sua expressão de alegria. Eu tinha certeza de que, não poderia existir momento de maior felicidade para um homem, do que saborear a sua própria vitória. Por vezes, o seu peixe, já pranchava sobre a água, dando-nos a impressão de exaustão, de derrota. O Mestre continuava puxando firme, mas com uma delicadeza cirúrgica. Aqueles que pesam, que esses homens são brutos, ríspidos, estão completamente enganados. Não demorou mais do que alguns minutos, para ele trazer, de forma definitiva, aquela belíssima espécie até junto ao barco. E como ele era grande. Sem dúvida, colocá-lo dentro do pequeno barco, seria um outro desafio. Mas ele, dotado de toda sua experiência, continuava mostrando saber muito bem o que estava fazendo.

Procurei voltar toda minha atenção ao que eu estava fazendo. Devido ao fato de sentir que a minha linha ainda se esticava muito, não era difícil deduzir, que o meu outro amigo o peixe, deveria estar ainda a muitos metros de distância. Tudo isso me dizia que, a minha luta, estava apenas começando. De súbito, percebo a embarcação adernar a estibordo de forma violenta. Quando me virei, pude ver ao meu lado, o enorme peixe já embarcado, se debatendo. Sim! Aquele velho marujo sabia muito bem o que estava fazendo.

Ele olhou para mim. Um sorriso tomava conta de todo seu semblante. Eu estava diante da realização de um homem. Um simples mortal, que se dedicou, que lutou quase o dia inteiro, para vencer e sentir com isso, o sabor que desfrutava agora. Mesmo sem ele dizer uma só palavra, estava estampado em sua face, que na linha do tempo, ele acabara de escrever mais uma vez, o registro que justificava sua existência. Conhecer, aprender, usar toda sua determinação e finalmente vencer.

Foi quando comecei a me questionar se conseguiria trazer o meu peixe antes que a noite definitivamente caísse. Noto que o velho, radiante, entra na pequena cabine, voltando de lá com seu cachimbo aceso entre os lábios. Sentou-se ao meu lado, como que indagando: “E agora, agora é a sua vez”.

A minha linha continuava esticada. Vez por outra, uma puxada mais forte, me fazia soltá-la um pouco, temendo arrebentar.  A cada instante, a luz diminui mais e mais. Contando o tempo que levamos para chegar até aquele local, eu já acreditava que voltaríamos em companhia da noite. Meu amigo pescador, sentado ao meu lado, tirando o cachimbo da boca, tentou me confortar, dizendo não haver pressa, eu poderia dispor de todo o tempo necessário para vencer o meu desafio. 

Troquei a linha de mão. Aliás, eu já vinha fazendo isso nas últimas horas. É evidente, que o cansaço lentamente começava a tomar conta de todo o meu corpo. Por mais que eu conhecesse sobre pescaria, não podia supor quanto tempo ainda levaria. Mais uma vez, aquela impressão de que eu estava recebendo, com tudo isso, muito ensinamento continuava, e agora de forma mais latente ainda.

A paciência, a determinação, a percepção, a concentração e toda a sensibilidade se integrando ao momento, se tornavam comportamentos e atitudes imprescindíveis para a minha vitória.  

Enquanto isso, eu me preocupava com o velho, com o momento, com o meu aprendizado, deixando assim, uma parcela bem pequena de toda a minha atenção para o peixe.

Errado! Tudo errado! Para o meu sucesso, eu tinha que dedicar toda atenção à pescaria. Eu pude ver ainda há horas a trás, o velho fazendo o mesmo, e com muita propriedade. Sim! Eu percebi que teria de varrer dos meus pensamentos para fora da minha mente, tudo aquilo que não pertencesse aquele momento. E assim, como em um exercício de ioga, fui jogando em um poço sem fim, todos os pensamentos e imagens que surgiam, um a um. Um a um foram desaparecendo dentro do ébano que se formava dentro desse poço. Comecei a puxar mais a linha. Agora, com a sensibilidade à flor da pele, eu podia sentir mais, quando eu deveria soltá-la ou não.

Eu continuava recolhendo a linha. Tomado por um susto, percebo que meu amigo peixe salta para fora d'água à poucos metros do barco. Sim, estava próximo muito próximo. Foi somente nesse instante, que percebi o dia amanhecendo. Eu havia me dedicado tanto, aguçado a concentração a ponto de não perceber que a noite passara diante dos meus olhos. O velho, já não estava mais ao meu lado. Quem sabe, descansava dentro da pequena cabine, enquanto aguardava pelo desfecho da minha história. Lembrei-me que agora, mais do que nunca, eu não poderia perder a concentração no que estava fazendo. Eu sabia que, de toda a pescaria, esse era o momento mais crítico. Aquele peixe usaria toda força que ainda lhe restava, para tentar escapar no último instante.

Mais um salto. Por mais uma vez, tive que soltar a linha. Quando o peixe se colocava para fora d'água, ele dava um puxão que sem dúvida, se a linha estivesse esticada, com certeza arrebentaria. Quando estamos pescando com molinetes ou mesmo carretilhas, o próprio equipamento se encarrega em fazer esse trabalho, de forma a não romper a linha. Mas, apenas com as mãos, a concentração deveria ser bem maior.

            O Sol começava a ofuscar minha visão. Percebo que os meus óculos, devido à maresia, encontravam-se completamente embaçados. Tirei-os. Sim por alguns instantes, senti perder um pouco a visão. Mas, logo em seguida comecei a recuperá-la. De forma impressionante, percebi que eu estava enxergando cada vez melhor. Cosei a cabeça, enquanto que a outra mão permanecia ocupada com a linha. Por que eu estava enxergando melhor agora sem os meus óculos? Durante toda a minha vida, eu precisei olhar o mundo através de suas lentes, e agora, no entanto, a olhos nus, eu podia ver melhor do que antes. Por mais uma vez, eu percebia que não podia permitir que a concentração se esvaísse. Agora mais do que nunca, todo o esforço de quase 24 horas, era sem dúvida colocado à prova.

Lembrei-me que na vida também era assim. Por vezes cheguei muito perto dos meus objetivos, sentindo-me até mesmo com as mãos neles. E, de repente, por um excesso de confiança, ou quem sabe por falta de um último esforço, deixara escapar e assim, terminava literalmente “morrendo na praia”. Agora, eu estava decido a não mais ver esse filme rodar na tela da minha própria vida.

Mais alguns instantes, eu já podia ver o meu peixe começar a pranchar em direção ao barco. Sim! Eu venci! Ou melhor, eu estava vencendo!

Mas, em vez de embarcá-lo, resolvi tentar tirar o anzol de sua boca, com ele ainda dentro d’água. Aquele belo espécime, também mostrava uma exaustão, talvez tão grande quanto a minha, que o fazia permanecer imóvel ao lado da embarcação. É, eu pretendia soltá-lo. Eu já havia concebido todos os ensinamentos que aquela pescaria poderia ter me dado. Nós tínhamos um enorme peixe para satisfazer nossas necessidades, e afinal de contas, aquele guerreiro, ainda preso a minha linha, merecia voltar às profundezas de seu lar.

Percebo a presença do velho atrás de mim. E, prevendo seus pensamentos, ele estaria aprovando a minha atitude. Finalmente, com a ajuda de um alicate, consegui soltá-lo e confesso: eu nunca havia visto uma criatura marinha tão magnífica. Lentamente, tentando se recompor, ele começa a partir, de forma desordenada, cansada, como que agradecendo pelo meu ato de misericórdia. Sinto um leve tapa em minhas costas, como o prêmio de quem fez o que deveria. O velho começa a levantar a vela principal, me pedindo para puxar a âncora, o pequeno veleiro começou a girar na direção onde ela estava, até que consegui embarca-la e assim, assim finalmente voltávamos para a costa, depois de quase 24 horas no Mar, estávamos voltando.


CAPÍTULO – 16   

O Mestre já trabalhava, limpando o seu enorme peixe, enquanto o fogo saltitante crescia. Mantínhamo-nos em silêncio. Mas também, para que falar, eu já o entendia tão bem, tínhamos tanto em comum, que não era difícil eu saber os seus pensamentos. Mesmo com sono, cansado, com os braços completamente doloridos, mesmo assim ainda peguei algumas tiras de bambu, e comecei a trança-las com algumas postas do peixe, que iam sendo cortadas por ele. Notei que o velho me observava com o canto dos olhos, e eu sabia o porquê. Eu estava preparando aquele assado, exatamente como ele o faria. As nossas evidências ficavam cada vez mais e mais expressivas diante de tudo o que fazíamos.

A tarde avançava calma e tranquila. Algumas nuvens mais a leste, e o aumento considerável da umidade do ar indicavam que, se o vento continuasse na mesma direção, talvez antes do anoitecer, teríamos chuva. O cheiro delicioso do peixe surgia aos poucos no ar, como um atentado ao pecado da gula. Por mais uma vez, lembrei-me que não comíamos a mais de 24 horas, e o que continuava me impressionando, era o fato de não ter fome.

Aquela refeição, por mais uma vez, teria a pura conotação do prazer. Um detalhe estranho, insistente, que por sua vez, continuava me enchendo de dúvidas e mais dúvidas. Assim que o Mestre terminou com o que ainda sobrara da limpeza de sua belíssima pescaria, agachou-se, recolheu seus restos, e caminhou até a praia, onde eu já sabia: devolveria ao Mar, para que nada, absolutamente nada fosse desperdiçado. Muitas vidas marinhas, com certeza, se alimentariam do que havia sobrado. Eu tinha tanta certeza, porque seria exatamente o que eu faria, ou seja, aquilo que eu sempre fiz.  

Eu o observava a distância. Ele se lavava, com um profundo respeito ao Mar, a natureza. Depois de contemplar o horizonte, volta caminhando tranquilo, com a mesma fisionomia triste e serena de sempre. Naquele momento, eu podia jurar mais do que nunca – por todas nossas semelhanças – que éramos a mesma pessoa. Talvez por uma questão de fuso do tempo, algum plano dimensional diferente ou mesmo algo ainda maior que a minha própria concepção não permitisse o entendimento.

Eu continuava no preparo do assado, procurando disfarçar a atenção voltada àquela enigmática figura, quando ele se aproximou, olhou para o fogo, de forma contemplativa, e com mais um pequeno tapa em minhas costas, se manifesta:

É, o cheiro está bom! Parece que você também sabe preparar um bom peixe!   

Esbocei um leve sorriso, convicto que isso era evidente. Pelo menos naquele instante, eu acreditava fielmente que éramos a mesma pessoa. Tomei alguns goles de água-de-coco, enquanto continuava virando a grade de bambu com os deliciosos pedaços do peixe.

Sentamos e comemos prazerosamente em completo silêncio. Acredito fielmente que essa deve ter sido a primeira vez que eu comi algo, pensando exatamente no que eu estava fazendo. Vez por outra, uma rajada de vento mais forte, fazia-me lembrar, que a chuva não tardaria em nos agraciar com toda sua beleza e magia. Como estávamos relativamente próximos ao Gaivota, nada melhor e confortante, que contemplarmos mais essa benção dos céus em seu interior. E assim que acabamos, convidei-o subir a bordo. Ele parou por alguns instantes, observou os quatro cantos do mundo, e, certificando-se do que estava por acontecer, aceitou meu convite. Mal pisamos no convés, e os primeiros pingos cintilantes, começavam a cair de forma majestosa.            

Descemos até a cabine. Minha embarcação, muito confortável, certamente nos proporcionaria uma noite tranquila. Verifiquei as baterias, e de forma inexplicável, mantinham-se com a carga máxima. Afinal de contas, há dias, eu não ligava o pequeno gerador, somente o painel de células fotoelétricas, estava sendo suficientes para manter às baterias. Mas, como eu já estava me acostumando com as várias situações inexplicáveis, não dei importância a mais esse fato.  

Tomei um delicioso banho de água doce, e sentados na pequena sala. Entre a mesa de instrumentos e a mesinha no centro, começamos a conversar.

O Mestre me pareceu muito à vontade, muito mais do que o normal. Ainda intrigado com nossa incrível semelhança, decidi por impulso fazer um último teste. Eu tinha em meu computador uma ampla coleção de músicas, logicamente as minhas favoritas. Afinal de contas, aquela era a minha casa. Perguntei a ele o que gostaria de ouvir junto com a sinfonia que a chuva, a essa altura nos proporcionava. Imediatamente, ele me olhou nos olhos, como que desconfiando de alguma coisa, levantou-se, caminhando na direção do computador, questionou-me se eu poderia lhe mostrar o que eu tinha. No micro, eu tinha tudo organizado. Primeiro uma pasta intitulada “músicas”, quando cliquei nela, abriram várias subpastas com os gêneros que eu mais gostava: clássico, óperas, rock, medieval, celta, e o bom e velho blues.

Assim que abri esse arquivo, deixei o computador ao seu comando, voltando a me sentar no sofá. Eu desejava ver qual estilo e qual a música ele escolheria para aquele momento. Ele olhou e, sem pensar muito, clicou uma vez, e clicou uma segunda vez.

O notebook tinha o seu áudio ligado a 4 caixas de som espalhadas no interior do Gaivota. O som era puro e de boa qualidade. Assim que os primeiros acordes surgiram no ar, um arrepio tomou conta de todo o meu corpo. Aquele violoncelo fazendo a abertura, mostrando toda a excelência de Bach - Cello suíte n° 1 1 in G Major BWV1007 – Mov. 1-3/6, seria exatamente o que eu escolheria para ouvir naquele instante. Ainda impressionado, sem perceber, completamente estagnado pela surpresa, comecei a balançar a cabeça em sinal de negação, quando ele se senta à minha frente, e sorrindo, gesticula de forma positiva, talvez confirmando todas as minhas suspeitas. Joguei a cabeça para trás, passando as mãos no cabelo, mostrando toda – por mais uma vez – toda minha incerteza quanto a tudo.

Aquele som do violoncelo solitário, fazia o solo do restante da orquestra (a chuva) onde juntos inebriavam nossas mentes e corações em um acorde perfeito, me transportando para dimensões de puro êxtase.

Depois de mais alguns instantes, calado, ele se levanta, e começa a observar tudo que nos cercava dentro do ambiente onde estávamos. Meus livros, os poucos objetos de decoração, os meus cachimbos, enfileirados no suporte, e tudo mais. Ao se aproximar da pequena maleta de pintura, que quando aberta transforma-se num providencial cavalete, ele colocou sua enrugada mão sobre ela, e com os olhos fechados, suspirou profundamente, como que tomado por uma recordação gostosa e envolvente.

Sempre gostei muito de pintura a óleo. Ainda quando mais novo, cheguei, por um bom período, ganhar o meu sustento e da minha família vendendo quadros, principalmente retratos de pessoas que os fazia em tela à óleo. Observando-o assim, eu não tinha mais dúvidas. Ele já usufruíra inexplicavelmente de tudo isso. Mas como poderia?  Como aceitar o fato de um homem estar diante dele mesmo em tempos, em épocas diferentes?

Por mais que eu sempre me permitisse à devaneios, por mais que eu soltasse a imaginação em cima das mais variáveis possibilidades que o universo me poderia dar, ainda assim, tudo isso mostrava-se muito obscuro à minha compreensão.

A chuva continuava caindo do lado de fora, produzindo uma harmonia perfeita com a música, com todo aquele momento. Pelas escotilhas de acrílico, eu podia ver pequenas gotas d’água, descerem majestosas, procurando se unir a sua fonte original, o berço de toda vida. Por sua vez, o Oceano, calmo e tranquilo, nos embalava docemente em seus braços. Por vezes eu já havia me questionado quanto a momentos em nossas vidas, que podemos considerá-los sublimes, e com certeza, esse era mais um deles.

Entre um gole e outro de rum e, tragadas de meu bom fumo Borkum Riff, a noite prosseguia em sua interminável tarefa de fazer o mundo descansar, meditar sobre si mesmo e, simplesmente contemplar sobretudo a beleza da vida. O sono, lentamente, saiu de seu abismo silencioso, alçando-nos com suas garras irresistíveis, tentando nos carregar junto a ele. De forma sábia, cedemos. E, embalados pelo momento, viajamos mais uma vez, por seus caminhos encantados. Foi uma noite tranquila, como os dias que se seguiam desde que aceitei obedecer às vontades do meu coração.


CAPÍTULO – 17 

Logo pela manhã, aos primeiros sinais do novo dia, a melodia das gaivotas com seu inconfundível grasnar, tendo ao fundo o bramir de ondas quebrando nos arrecifes que protegiam naquela bacia, anunciavam ao mundo que era hora de despertar, continuarmos com as nossas caminhadas em mais esse pedaço do tempo onde eu literalmente escrevia a minha história.

Ainda deitado, em meu quarto, olhei para fora. Para minha surpresa, o Mestre já não se encontrava mais em sua cama. Subi rapidamente até convés. Ainda com os olhos ofuscados pela luz do novo dia que começava a se levantar, pude vê-lo caminhando pela areia, contemplando tudo que a natureza podia lhe oferecer. Eu sabia o quanto esse momento era importante para um homem, principalmente para ele. Eu mesmo, tinha o hábito de fazer o mesmo. Sentei-me no convés, e ainda observando àquela figura, deixei-me levar por mais esse instante. A vibração que toda aquela natureza produzia, era simplesmente algo indescritível. O Sol levantando-se à minha frente, parecia ser o estopim de toda manifestação que se via. Pássaros, os animais marinhos, as árvores e até mesmo o Mar, se agitando num ritmo alucinante, mágico e muito, muito envolvente.

Depois de quase uma semana desfrutando de todo aquele paraíso, pela primeira vez, senti a vontade de partir. Não que desejasse retornar, muito pelo contrário, queria seguir em frente. Àquela voz interna, tentava me dizer novamente que eu deveria seguir, seguir o meu caminho. Mas, agora, para onde? Essa era a grande questão.

Decidi descer, caminhar um pouco também. Quem sabe a areia sob meus pés, pudesse me ajudar a definir melhor as minhas decisões. Caminhando, imagens começavam a surgir como do nada, trazendo aos poucos, lembranças da vida, dos parentes, dos amigos deixados em um outro pedaço do tempo. Como eu não vinha mais fazendo os registros de tudo, dei-me por conta, de que já não era mais capaz de definir com exatidão, quanto tempo eu havia deixado o ancoradouro do Saco da Ribeira, e me colocado nessa viagem. Mas, para o meu próprio espanto, esses detalhes pareciam não me incomodar mais. Eu sabia muito bem, que as pessoas mais próximas, poderiam estar preocupadas, mas por outro lado, uma certeza se fazia presente, de que, além delas estarem bem, o fato de não terem notícias minha, não deveria estar causando sofrimento a eles.

Decidi não procurar o Velho Mestre durante aquele dia. Talvez, na verdade, eu desejava mesmo, era refletir um pouco sobre tudo que conversamos, sobre a pescaria e seus ensinamentos e também, sobre as coincidências e semelhanças que aquela figura possuía, comigo mesmo.

À esquerda, à uns cem metros de onde o Gaivota estava ancorado, grandes pedras ornamentavam a paisagem, onde as ondas se chocavam com maior intensidade, provocando os sons que eu podia ouvir bem durante toda a noite. Caminhei até elas, escalando-as até o ponto mais alto. Lá de cima, o cenário ainda era mais belo. Eu podia ver toda enseada, e os arrecifes que, observados daquela altura, formavam realmente uma estreita passagem, quase que um portão para aquele pequeno pedaço de paraíso. O Sol ainda se levantando à minha esquerda, refletia brilhante sobre as gotas d’água e a pequena névoa que se formava com choque das ondas naquela barreira natural.

Quando menos esperava, pude avistar o Mestre, em sua pequena embarcação, seguindo em direção ao “portão”. Eu não sabia o que pensar naquele momento. Recordo-me apenas que, imediatamente as perguntas surgiam novamente, uma sobrepondo-se a outras em relação ao Velho, que partia diante dos meus olhos.

...Será que eu o verei novamente?

...Ou será que ele só estava saindo novamente para pescar, e à noite, retornará?

...Teria ele me passado os ensinamentos necessários, e agora sua presença não se fazia mais necessária?

            Eu não sabia o que pensar. Mas no fundo do meu peito, uma longínqua voz parecia me dizer que eu não o veria nunca mais. A sensação de estar só novamente, não me assustava, mas confesso: muito me entristecia.

            Acredito mesmo que eu começava a perceber que minha jornada deveria continuar e, caso ele já tivesse me passado todos os ensinamentos necessários para aquele momento, nada mais eu poderia fazer se não, seguir o meu caminho, seguir o meu destino.

            Passei o resto do dia ali sentado, observando, contemplando o Mar e todas as suas magníficas manifestações. Uma outra sensação estranha, era de que, aquele cenário, aquela praia, parecia ter sido construída com base na minha imaginação. Eu sentia que aquele era o lugar que eu sempre sonhei encontrar, um lugar construído nos meus mais profundos sonhos.

Confesso que, vez por outra, o que eu desejava mesmo era ver aquela pequena embarcação entrando novamente na enseada, e ter meu amigo de volta, um amigo onde eu podia enxergar eu mesmo, mais velho, mais sábio, muito mais consciente sobre mim mesmo, sobre a vida e sobre a morte.

            A noite começava a dar os seus primeiros sinais. Eu tinha que descer enquanto havia luz. Aquelas pedras, constantemente castigadas pelas ondas, mantinham-se sempre úmidas, escorregadias. O Gaivota lá embaixo, balançando seu mastro de um lado para outro, me convidava para o seu interior, tentar novamente quem sabe, algum contato através do rádio ou mesmo a telefonia por satélite. E foi exatamente o que fiz e, sem sucesso. As interferências continuavam como antes, como eu já imaginava.

            Na manhã seguinte, caminhei pela praia, na direção onde encontrará o velho pescador, e nenhum sinal dele se fazia presente. Meio que desorientado, andei de um lado para outro, olhando para o Mar, com uma última esperança de vê-lo se aproximando, mas no fundo, a certeza que ele havia partido, fazia-se cada vez mais forte. Quanto a mim, aquela mesma certeza me dizia cada vez mais: eu também deveria partir, mas para onde?

            Para o Norte! Mesmo sem a bússola, eu teria que voltar a confiar nos meus instintos. Uma verdade, mesmo que ainda muito longe, começava a dar seus primeiros indícios. Se eu já não fizesse mais parte do mundo dos mortais, teria que descobrir qual então seria o meu caminho agora. E, ancorado ali, parado, só esperando, talvez eu nunca chegaria a resposta nenhuma.

            Talvez esse fosse o maior de todos os erros que um homem possa cometer em sua existência: ficar parado, esperando que alguma coisa aconteça de bom em sua vida. A vida sempre me pareceu uma eterna caminhada. Mesmo quando não sabemos ao certo o que buscamos, a melhor alternativa é colocar-se na estrada, prosseguindo, sempre. De uma forma ou de outra, encontraremos a certeza mais à frente. Um passo abre a possibilidade de outro, e mais outro e assim sucessivamente.

            Sem dúvida, ficar naquele verdadeiro paraíso seria uma excelente ideia. Seria acima de tudo, extremamente confortável. Eu tinha onde dormir, como me alimentar, toda a segurança que o local certamente me proporcionaria, mas dessa vez não! Dessa vez eu tinha um lugar para chegar, um mistério a desvendar, um destino a ser cumprido. É, realmente eu sentia que precisava continuar. Voltei para o Gaivota, revisei as velas, as amarras, enfim, todos os itens necessários para segurança, enquanto a luz me permitia, decidindo que na manhã seguinte, durante a 1vazante, eu estaria novamente no Mar.

Depois de um dia cansativo de trabalho conferindo tudo que me foi possível no Gaivota, tomei um delicioso banho, me alimentei e acabei despencando na cama, acordando no dia seguinte com o barulho da chuva. Quando abri os olhos, vi pela escotilha, as gotas escorrendo serenas e tranquilas. Apesar da chuva, não fazia frio. Confesso: sentia o coração triste. Triste como há muito tempo não sentia. 

1Maré vazante: é a fase de descida lenta do nível marinho e de outros corpos de água ligados ao oceano (estuários, lagunas, etc.) correspondente à transição de maré cheia para maré vazia. Nesta fase estabelecem-se correntes de maré dirigidas do continente para o oceano.

Desde que resolvi fazer aquela viagem, tudo deu tão certo, mais tão certo que nem eu às vezes acreditava. Experiências novas e aquela incrível sensação de bem-estar, pareciam ter varrido a tristeza para muito longe. Mas, lá estava ela de volta. Certamente, o meu coração me segredava coisas que a consciência ainda não conseguia entender

            Eu podia novamente me sentir vivo. Sim, vivo. Preparei meu dejejum, comi como um bom mortal, ainda observando a chuva que caia do lado de fora, mas sem deixar de ter atenção ao que eu estava fazendo. Peguei minha capa amarela, debaixo do sofá que fica na pequena sala, e subi ao convés. Com as velas já desamarradas, lentamente subi as âncoras, e com a vela mestra içada, comecei a girar antes que as fracas ondas, me arremetessem novamente de barriga para a areia. Não tardou para que eu começasse a ganhar distância da praia. O leme agora obedecendo mais, me levava em direção ao portão da enseada. A água da chuva continuava caindo sobre meu rosto, era a despedida daquele meu pedaço de paraíso. Não olhei para trás. Mais uma vez, eu afirmava a mim mesmo que não se deve fazer isso quando se parte. Com certeza, um pedaço do meu coração ficaria encravado naquele lugar para sempre e, a última coisa que eu desejava no momento era aumentar a minha tristeza, disso eu tinha certeza absoluta.

   Já fora dos arrecifes, tomei à estibordo e segui contornando as pequenas montanhas que à minha direita acompanhavam até o final da pequena ilha. Depois, depois era só o Mar, só o Mar, o Céu e eu no meio deles dois e, mais nada, absolutamente mais nada.


 CAPÍTULO – 18

     Apesar da tristeza da partida, lá estava eu novamente fazendo o que mais amava na vida: navegar! Navegando, me sentindo novamente nos braços de Deus, no berço de onde toda a vida se originou e, para onde eu deveria um dia voltar. Sendo soprado pelo vento, o vento da própria existência, o sopro Divino. Respirei fundo, senti o ar mais frio invadindo minhas narinas, enchendo o meu corpo de energia e de um profundo amor por tudo aquilo que eu estava vivendo.

            Já à tarde, a chuva ficara para trás. O céu cinza, indicava todo meu estado de espírito. E eu sabia que agora, poderia olhar para trás. O meu paraíso não mais seria visto. Pela primeira vez, desde que parti naquela manhã, ainda não tinha olhado à 360º. Sentado na popa, com a na mão direita na roda do leme, percebi que a bússola, dava indícios que desejava voltar a funcionar. E, caso ela estivesse realmente correta, eu, até então guiado apenas pelo meu instinto, continuava no rumo certo. O Norte, estava exatamente a proa do Gaivota.

   Imediatamente travei o leme. Desci até a mesa de navegação, onde estão os rádios e tentei sintonizar alguma frequência. Para minha surpresa, eu podia ouvir novamente os boletins meteorológicos, num sotaque americano, bem conhecido. Imediatamente tentei fazer contato com a família, mas sem sucesso. Lembrei dos amigos que também tinham rádios, talvez fosse mais fácil com eles e, finalmente consegui falar com o Paulo, um amigo que ouvindo o meu chamado, respondeu em alto e bom som. Pedi a ele rapidamente – pois temia perder o contato – que avisasse a minha família que eu estava bem, e que estava navegando em um lugar onde haviam muitas interferências eletromagnéticas, mas que estava tudo bem.

    O fato de ter comunicado a todos sobre como eu estava, imediatamente me deixou mais tranquilo, com a consciência mais leve. Em hipótese alguma eu desejava fazê-los sofrer por negligência da minha parte. Assim, finalmente eu conseguia sentir que eu não havia morrido, pelo menos tudo começava a indicar isso. Mesmo estando sem meus óculos, que me acompanharam durante toda minha vida e, agora enxergando perfeitamente bem sem eles, mesmo não sentindo a necessidade de me alimentar como o de costume, mesmo convivendo com situações inexplicáveis, o rádio, a bússola, pelo menos naquele instante, a situação, me tentava dizer que eu ainda fazia parte desse mundo, mas por quanto tempo?

  Naveguei dessa forma por mais 6 dias. Os dias, se mostravam calmos, assim como o vento também. Com o Mar sereno, eu podia desfrutar de todo tempo possível para continuar refletindo sobre os dias em que passei com o Velho pescador. Eu podia concluir agora, que realmente ele era a mais pura expressão do homem que sempre desejei ser. Durante toda minha vida, através de cursos, estudos e até mesmo das religiões, busquei àquela paz, aquela serenidade, recheada de pura consciência. E eu era obrigado a confessar: pelo menos até aquele momento, eu não havia conseguido realizar esse meu objetivo. Por mais que eu tentasse ampliar o meu nível de consciência, ainda assim, as interferências do meio, da própria sociedade, sempre acabavam se sobrepondo, de forma contundente, me conduzindo em seus laços.

  Mas agora era diferente. Eu percebia nitidamente, a importância do pensamento solitário, a importância do silêncio interior, principalmente relacionado com a minha própria vida. Eu tinha um objetivo: navegar para o Norte, o Norte da minha vida. Mesmo sem ter um motivo aparente, eu poderia facilmente desistir de tudo, voltar ao conforto de uma marina tranquila, segura, com meus amigos e familiares, mas isso, com certeza, não responderia às minhas perguntas, eu não encontraria o sentido que tanto procurava.

  Assim, eu prosseguia. Cada vez que a proa do Gaivota batia na água, deixando um rastro sobre o leito do oceano, minha história ficava cada vez mais para trás. Eu sentia que fazes da minha vida eram vencidas, uma a uma, e o meu destino, à frente, como que de braços abertos, me aguardava serenamente. 

 No 8º dia, desde que deixei a ilha, depois de um forte nevoeiro, acompanhado por muita calmaria, atravessei por dias onde se uma pena fosse solta no ar, ela cairia perfeitamente reta nos meus pés. Eu tinha o Gaivota completamente parado no meio do Oceano, perdido entre a neblina que não me permitia ver nada, absolutamente nada. Foi assim que no 3º dia de total calmaria, eu consegui avistar algo que, ao longe e com a pouca visão que eu ainda tinha, me parecia uma pequena ilha. Os rádios, assim como as bússolas, voltavam a ficar inoperantes. Finalmente, uma leve brisa começou a surgir com do nada, uma brisa que mal era capaz de encher a vela mestra, totalmente aberta com a retranca formando um ângulo de quase 90º em relação a embarcação.

   Mesmo assim, comecei a navegar nessa direção. Mesmo que ainda muito lento, mesmo assim eu me aproximava cada vez mais e mais. O pequeno vulto aos poucos, se transformava em uma imagem real. Suas cores ganhavam vida. Eu já podia observar a vegetação, as montanhas, seus picos, sempre envoltos em névoa, como uma cerração desproporcional a tudo já observado. Com o leme travado, caminhei até a proa. Com a mão esquerda sobre a testa, eu tentava diminuir a claridade do Sol, que ofuscavam meus olhos, na tentativa de enxergar um pouco mais para onde eu estava indo.

   Pela primeira vez desde que parti, sinto não estar muito bem fisicamente. Uma espécie de fraqueza estranha, tomava – lentamente – poder sobre meu corpo. Eu não conseguia entender. Há poucos minutos atrás, antes de avistar aquele lugar, eu me sentia completamente normal, bem, aliás, muito bem desde que sai de Ubatuba, e agora, de um segundo para outro, eu percebia minhas forças esvaindo-se do corpo, como que sugadas por uma estranha energia.

 O mal-estar continuava crescente. Voltei para o leme. Uma praia tranquila crescia à minha frente. Talvez, pelo meu estado físico, eu não conseguiria chegar consciente até ela. Como o vento estava muito fraco, decidi aproar em sua direção, travar novamente o leme, e quando o sonar preso a bolina indicasse que eu estava prestes a raspar na areia, eu lançaria a ancora e arrearia a vela, deixando assim, pelo menos, o Gaivota em segurança, até que eu pudesse me recuperar desse mal súbito que, inexplicavelmente me tomava de assalto. Comecei a suar de forma abundante, minha visão começou a ficar escura, eu me sentia com tontura e o coração disparado como se eu tivesse enfartando, ou qualquer outra coisa que estivesse dominando o meu corpo e a minha razão. E assim o fiz, antes de cair desmaiado no próprio convés. Sem os sentidos, viajei pelo mundo das alucinações...

             ...Um vento um pouco mais forte, ameaçava me tirar da popa onde eu estava deitado...

            ...Senti meu corpo começando a flutuar, emanado pelo vento que me carregava não sei para aonde...   

...Eu comecei a voar. O medo de cair, de me chocar com alguma coisa a frente, se fazia presente...       

...Eu não sentia mais meu corpo, que parecia estar livre do peso não só da gravidade, mas principalmente de toda responsabilidade que acumulei durante toda minha vida...

            ...Lembranças dos familiares surgiam e desapareciam com a mesma magia que me transportava de um lado para outro, vagando sem um rumo definido...

            ...A história da minha vida começava a ser repassada diante dos meus olhos novamente. Os erros, os acertos. Momentos marcantes como o nascimento das minhas filhas, podiam agora ser novamente vivenciados com toda sua realidade...

            ...Até que tudo foi desaparecendo, desaparecendo completamente como havia surgido, por encanto...  


CAPÍTULO – 19

Acordei! Sentia-me tão fraco, que eu não era capaz de mover nenhum músculo, sequer abrir os olhos. Eu estava sentindo uma sonolência e todos os sintomas característicos de que havia dormido muito ou atravessado um longo período em estado de coma. Vez por outra, eu experimentava o estado de consciência e rapidamente eu retornava ao mundo dos sonhos. Lembro-me muito bem de ter experimentado essa sensação por várias e várias vezes. Eu sentia, no entanto, que estava confortavelmente deitado em uma cama que não balançava nada, o que significava que eu não estava dentro de uma embarcação. Era capaz de ouvir – vez por outra – pessoas falando ao meu redor. Mas eu ainda não conseguia abrir os olhos. Tentava a todo custo, aguçar os poucos sentidos que ainda me restavam, na tentativa de saber onde eu estava, e quem poderiam ser aquelas pessoas, até que aquele sono descomunal, me carregava novamente em seus braços por mais um longo período.

 Não sei por quanto tempo permaneci adormecido, naquele estado, naquele lugar. Mas posso afirmar, que ali, sobre aquela cama, pude me livrar de todo o cansaço acumulado durante mais de meio século de vida. Eu dormi muito, mais muito mesmo. Quando eu finalmente despertei, a minha sensação era a de eu estava ressuscitando. Sei que eu nunca passei por esse processo antes, mas a impressão que eu tinha, era exatamente essa, eu não estava simplesmente acordando, eu estava voltando a vida.

Eu senti meu corpo como nunca havia sentido antes. Livre, solto, absorto de qualquer peso. Uma sensação única, experimentada pela primeira vez. E, dessa vez, com os olhos abertos, pude ver onde finalmente eu estava: um recinto enorme, rústico, construído por grossos troncos de árvore, empilhado de forma artesanal. Algumas velas brancas acesas, em uma espécie de santuário, deixavam o ambiente com um ar místico, envolvente, até onde meus olhos chegavam, eu não via nenhuma janela, mas olhando o teto, todo de sapê, me confirmava que eu realmente estava em um lugar muito simples e agradável.

Tentando explicar onde eu poderia estar, minhas últimas lembranças, antes de ficar inconsciente eram de que eu me aproximava de uma ilha e desejava ancorar o meu barco antes que ele pudesse tocar sua bolina na areia. Depois disso, eu não me lembrava de mais nada.

  Meus olhos continuavam percorrendo todo aquele ambiente, enquanto a minha mente tentava deduzir o que poderia ter acontecido. Quem havia me colocado naquela cama? Onde eu poderia estar agora? Permaneci assim totalmente imóvel, apenas com os olhos e os sentidos procurando por explicações, durante horas. O meu corpo, leve como estava, não reclamava dores, muito menos nenhum mal-estar, mas eu ainda me sentia fraco, muito fraco, até que com um rangido forte e contínuo a porta lentamente se abriu.

Um senhor, de pele escura – não chegando a ser negro – de cabelos lisos, compridos, avermelhados, talvez pelo Sol, com traços delicados, se aproxima, trazendo consigo um leve e doce sorriso nos lábios, um sorriso entranhado nas espessas rugas de sua face, adentra com passos calmos e tranquilos. Ele vestia roupas soltas sobre o corpo, brancas, brancas com as nuvens de um céu ensolarado, contrastando de forma radical a cor da sua pele.

Como você está se sentindo? – perguntou ele.

Bem! Acredito eu.

Não se esforce. Você ainda está muito fraco. – disse ele calmamente, tentando me tranquilizar.

Eu não me esforçava. Na verdade, pelo menos naquele instante, eu não possuía forças para nada, nem mesmo para saber onde eu estava. Sentia-me tão bem, que não desejava que nada, absolutamente nada pudesse prejudicar aquele momento, nem mesmo o idioma que falávamos me importava.

O homem sentou-se ao meu lado, como quem se dispondo a conversar mais. Falou que eles haviam me encontrado na praia, desmaiado, com meu barco devidamente ancorado, como antes de desfalecer eu havia previsto. E que, devido a maré descer muito durante a noite, decidiram colocar minha embarcação sob alguns cavaletes, fora d’água para não danificar o casco.

Cavaletes, fora da água? – indaguei assustado. – Vocês possuem guindastes aqui?

Eu não via outra possibilidade de tirar uma embarcação de mais de 6 toneladas da água se não com o uso de guindaste, aliás, como eu já tinha feito para reparos e manutenção no casco.

— Calma – respondeu ele – depois você terá muito tempo para tudo isso. Nesse momento, apenas fique tranquilo que eu barco está muito bem cuidado e seguro.

Imediatamente eu tentei agradecer, agradecer pelo Gaivota, agradecer por estarem cuidando de mim, mas fui prontamente interrompido, com ele dizendo que isso não se fazia necessário, pelo menos agora não. Agora, continuou ele dizendo, eu deveria descansar, me recuperar para depois conversarmos muito.

Eu sentia a boca seca, procurando salivar a todo instante. Sem que eu nada dissesse, ele se levantou, retirando-se do quarto, voltando segundos depois, com um jarro de barro e um copo, oferecendo-me água. Com um pouco de esforço, ergui o corpo, encostando-me na cabeceira de bambu, enquanto ele enchia o copo.

Havia uma janela à minha direita, só depois que consegui erguer o corpo que eu pude vê-la. Alguns raios de Sol entravam no quarto, eu pude percebê-los nitidamente, ao refletirem no fio de água que escorria para dentro do copo. Depois de tomar 2 copos cheios, sentia que minhas forças começavam a retornar. Agradeci pela água, quando ameacei esboçar mais agradecimentos por tudo que estavam fazendo comigo, fui subitamente interrompido novamente, sob a singela alegação de que eu era bem-vindo e que, eu era um convidado especial.

Convidado especial? Sinceramente eu não entendi nada. Mas, como eu não tinha mais pressa de nada, apenas permiti que as coisas continuassem por si mesmas.

Sinceramente me sentia bem, inclusive com meus anfitriões. Permaneci encostado na cabeceira de bambu, enquanto tentava despertar definitivamente desse sono de muitos, muitos dias, quando decidi, pela primeira vez questionar onde estávamos. O senhor me olhou profundamente nos olhos, mantendo um silêncio assustador.

Não! Novamente não! – pensei comigo mesmo. – Mais um que vai me enrolar e enrolar de não dizer objetivamente o que eu quero saber.

Durante toda essa viagem, mil hipóteses já haviam surgido sobre tudo que acontecera, mas a mais forte e que, se mostrava mais evidente para mim, sem dúvida estava relacionada a morte. Não sei se por ter lido vários artigos, livros espíritas, mesmo sem nunca ter me dedicado a essa religião, tudo que eu estava vivenciando, podia ser comparado, diretamente com todos as histórias lidas. E o ensurdecedor silêncio daquele homem, aliado a toda sua angelical hospitalidade, tentavam, mais uma vez, confirmar minhas hipóteses, até que finalmente ele se manifesta, respondendo à minha questão.

Estamos em uma ilha, no meio do oceano, onde vez por outra, temos a visita de náufragos, pessoas perdidas e,

Visitantes doentes. – completei sua resposta, interrompendo-o indelicadamente.

Ele sorriu graciosamente, concordando com minha afirmação.

Teremos uma festa hoje à noite. Será que você estará recuperado até lá? – perguntava ele.

Eu acreditava que sim, pois, tirando o leve mal-estar provocado pela inércia de muitos dias adormecidos, eu podia continuar afirmando que me sentia muito, muito bem, não só física, com espiritualmente bem. Aceitei seu convite, me retorcendo pela cama, como quem desejando me levantar. Ele, prontamente estende a sua mão direita. Assim que a toquei, uma sensação estranha toca também todo meu corpo. Aquela mão, oferecida a mim, trazia consigo mais que um simples apoio para o meu corpo ainda debilitado, me passava uma segurança poucas vezes sentida em minha vida. Olhei em seus olhos, olhos de uma negritude tão intensa, que chegavam a cintilar de tanto brilho.

Em pé, respirei fundo por alguns instantes, procurando me readaptar a uma condição tão simples, e que as vezes, se torna tão difícil. Eu tinha em minha consciência que há vários dias eu não me alimentava, e que, caso ainda estivesse vivo, toda minha fraqueza e tontura, poderiam ser resultado desse jejum forçado. Mas, agora, pelo menos naquele instante, eu não desejava pensar nesse assunto, que tanto vinha me atormentando nesses últimos meses. Eu desejava mesmo, sair daquele quarto, tomar um pouco de ar, ver com os meus olhos onde eu estava, ver se o Gaivota estava mesmo seguro...

O velho abriu a porta, deixando a luz invadir definitivamente o quarto. Não sei se por culpa dos dias em que estive em plena escuridão ou não, mas aquela luz possuía uma intensidade maior do que eu podia suportar. Durante toda minha vida, tive problemas, além de miopia, o de foto-sensibilidade, necessitando, não só das lentes corretivas, como também das lentes escuras. Consegui chegar somente até a porta, precisando virar o rosto para dentro do quarto, não conseguindo olhar para fora.

Preocupado o senhor, me questiona sobre o que estava se passando. Depois de explicar-lhe o fato, peço a ele que fizesse a gentileza de pegar em minha cabine, sobre a mesa de navegação, os meus óculos, os mesmos que eu já não vinha mais usando ultimamente. Ao sair do quarto, posso ouvi-lo pedindo a alguém, que entrasse em meu veleiro, e trouxesse os óculos. E assim foi feito. Minutos depois, ele retorna com meu par de lentes escuras. Agora com os olhos protegidos e um pouco mais adaptados a luz, talvez eu conseguisse sair. Novamente ele abre a porta e dessa vez, consigo suportar melhor a intensa claridade que fazia lá fora. Assim que me coloquei à porta, percebi que uma fina areia, de uma brancura muito expressiva, refletia e muito o Sol, provocando todo o desconforto que eu sentia. Mas, depois de adaptado, notei que realmente, a luz, naquele lugar, não era normal. A sua intensidade era muito maior do que em outros locais, mais ainda do que na cidade do Peru, onde possui uma das maiores incidências de luz de todo mundo.

O lugar era uma espécie de vilarejo, uma vila de pescadores, ou uma pequena aldeia de caiçaras como conhecemos aqui no Brasil. Crianças corriam pela areia, brincando com seus cachorros, pulando, enquanto outras em torno do Gaivota, observavam, talvez espantadas, o tamanho da embarcação. Um veleiro, quando visto dentro d’água, possui um tamanho muitas vezes menor do que quando fora d’água, devido a todo o seu lastro e bolina.

Espantado, olhei em volta, procurando por um guindaste, ou mesmo algum pequeno trator, para justificar como, eles haviam tirado minha embarcação da água, mas nada, nada disso parecia existir por ali. Talvez muitos homens puxando, com a ajuda da maré alta... – pensava eu tentando explicar a mim mesmo.

Suas construções, espalhadas por todos os lados que se podia olhar, eram todas feitas de madeira, grossos troncos de árvores, artesanalmente empilhados com os telhados de sapê. Barcos de pequeno porte, muitos para uso da pesca, estavam espalhados ao longo da praia, onde seus proprietários ou simplesmente, os pescadores que faziam uso deles, estavam mexendo, limpando, descarregando, outros preparando para quem sabe voltarem ao Mar.

Todos os nativos, mostravam a mesma característica: pele escura, cabelos avermelhados e uma força muscular não muito comum de se ver. Toda aquela estrutura mostrava, pelo menos à primeira vista, uma sociedade simples e muito bem organizada. Mas, também era possível ver pessoas circulando que – nitidamente – não pertenciam ao lugar. Geralmente, estes mostravam, assim como eu, um ar de recuperação, com uns caminhado com dificuldade, outros sendo amparados pelos nativos enquanto outros, até mesmo sentados à porta de seus quiosques, mostrando que, talvez, ainda não pudessem andar.

Começamos a caminhar lentamente pelo vilarejo. Meu anfitrião, fazia questão de me mostrar tudo que lá havia. Conforme eu conhecia mais e mais aquele lugar, começa a perceber que o número de pessoas estrangeiras ao local era realmente surpreendente. Eu poderia jurar que acabara de ver alguns japoneses, antes de alguns europeus. Não pude deixar de questionar sobre esse detalhe, uma vez que meu novo amigo se mostrava demasiadamente gentil em responder às minhas perguntas.

Senhor, percebi que aqui temos pessoas de todas as partes do mundo, é isso mesmo?

Ele sorriu novamente, dizendo que muitos dos visitantes, se adaptam tão bem, que acabam ficando por um tempo maior. Que este fato, era muito comum por aqui, acrescentando:

Temos médicos, engenheiros, advogados, empresários... pessoas de todas as qualificações e de todas as partes do mundo.

Percebi que, enquanto caminhávamos, olhares atentos nos seguiam, talvez pela presença do novo visitante, eu, e quem sabe, principalmente pela forma como aqui cheguei, desmaiado, tudo isso deveria ter causado mais curiosidade ainda.

Não demorou muito, para chegarmos aos limites do povoado. Mais à frente, só areia e pedras compunham o cenário. De frente para o Mar, podíamos contemplar o pôr do Sol, de uma beleza infinita. Começamos a voltar. Eu desejava tomar um bom banho. Agora com o Gaivota sobre cavaletes, ficava um pouco mais difícil, fazê-lo em minha embarcação, mas com certeza, haveria algum lugar por ali, onde eu poderia saciar minhas necessidades físicas.

Ao chegarmos próximo ao quarto onde estive, pude perceber um ruído de água caindo, como o de uma cascata. Comentei ao velho, minha vontade de banhar-me, e que se haveria algum problema se isso fosse feito na pequena cachoeira. Com a sua aprovação, me dirigi ao Gaivota, subindo até ele ainda com alguma dificuldade, peguei algumas roupas limpas. Afinal de contas, eu havia sido convidado para uma festa, mais à noite, eu não havia me esquecido disso.

Eu começava a dar os meus primeiros passos, sozinho naquele lugar. As pessoas, não deixavam de me olhar, como que, talvez, esperando que eu me ambientasse um pouco mais, antes de se aproximarem. Depois do banho, voltei para o quarto e quando dele saí, a noite já se fazia presente. Achei um pouco estranho. Eu não tinha permanecido lá por um tempo tão grande, onde a noite pudesse chegar completamente como chegou. Mas, afinal de contas, coisas assim já estavam certamente fazendo parte de minha vida desde que deixei o Brasil.

Para minha surpresa, várias tochas estavam acesas por toda pequena praia. Aguardei por alguns instantes, na expectativa de que o velho viesse me buscar. Afinal, eu não sabia onde seria a tal festa, muito menos de que festa se tratava. Eu estava vestido todo de branco, como assim a maioria dos que ali habitavam. Dessa forma, acreditei estar mais em conformidade com o meio. Depois de quase meia hora esperando, decidi caminhar, e tentar achar, por mim mesmo onde seria a festa. Com certeza, lá, eu teria a oportunidade de me relacionar com outras pessoas, conversar, conhecer melhor o lugar onde estávamos.

Não demorou muito, para que eu percebesse, que as tochas acesas se enfileiravam, formando uma espécie de corredor, por onde se podia caminhar dentro dele. Aos poucos, pude começar a ouvir sons, ruídos de pessoas conversando, uma espécie de música desconhecida, ou seja, sinal de que eu me dirigia para o lugar certo.

Mais e mais tochas apareciam, provocando uma luminosidade considerável para o lugar e, conforme eu me aproximava, as pessoas lentamente calavam-se, olhando em minha direção. Confesso que comecei a ficar constrangido. Em toda minha vida, nunca fui alvo de tanta atenção, mesmo assim, eu não conseguia parar de caminhar ao centro daquela festividade. Num lugar um pouco mais elevado, uma espécie de palco, o velho, o senhor que me recepcionara, assim que me viu, pediu a atenção de todos. Lentamente, todos foram parando de conversar, a comida e a bebida, pararam de serem servidas, aos poucos, um silêncio absurdo foi se instaurando, de uma forma tal, que pude ver o tremendo respeito que todos ali alimentavam por aquele anfitrião que na verdade, eu ainda não sabia ao certo o que realmente ele fazia ali.

Assim que ele começou a falar, eu pude perceber: aquela festa, estava sendo dedicada ao novo hóspede da ilha. Eu!


CAPÍTULO – 20

Não acreditei no que acontecia. Um desconhecido, que chegara desmaiado, sem nada a oferecer aquela simpática gente, estava sendo homenageado. O que teria levado aquele povoado a fazer isso? Será que faziam com todos que ali chegavam? E, por que o faziam? Qual motivo tinham para um cerimonial como aquele? Tomado de muita surpresa, eu não consegui pensar em nada que pudesse fazer algum sentido. E assim, por mais uma vez, coisas estranhas continuavam acontecendo...

Não me restou senão, agradecer toda a gentileza e hospitalidade. Eu não falava em público desde que deixei meu trabalho, onde constantemente realizava muitas palestras e apresentações. Mas, confesso que não me sai nada mal.

A festa continuou. Agora, um pouco mais refeito da surpresa, às pessoas se aproximavam para me dar pessoalmente as boas-vindas. O mais curioso, é que todas falavam uma mistura de dialetos. Inglês, francês, alemão, castelhano, às vezes com um pouco de italiano, línguas bem conhecidas, e que não impediam, de forma alguma, que conseguíssemos nos comunicar perfeitamente. Eu começava a me sentir mais feliz. Conforme conhecia mais e mais pessoas, percebia a grandeza do universo naquela pequena ilha. Quanta sabedoria, quanto conhecimento poderia haver contido em um pedaço tão pequeno de terra no meio do oceano?

Não demorou muito para eu começar a saber, que as pessoas que ali estavam e que não eram nativas, possuíam coisas em comum, como por exemplo, nenhuma delas havia planejado chegar naquele lugar. De uma forma ou de outra, uma espécie de acidente acabou trazendo-as. E que, ficavam lá, por um determinado tempo e depois, partiam ou não. Percebi que mesmo estando muito à vontade, o velho sempre me tinha diante dos seus olhos, me observando, como que policiando minhas atitudes. Não me importei com o fato. Afinal, o estranho ali, era exatamente eu.

Comi, bebi, pude saborear as delícias de tudo que o Mar sempre nos proporcionou, feito com realeza e magia de quem vive desses frutos da natureza. Percebi também, uma certa curiosidade daqueles que se dirigiam a mim, sobre minha vida, de onde eu vinha, o que eu fazia. Não sei se por cisma minha, todos se mantinham reservados, como que se não pudessem dizer tudo que sabiam. Tenho que confessar que isso me intrigava. Talvez eles não pudessem fazê-lo mesmo, ou temiam que eu ainda não estivesse preparado para aceitar certos fatos. Sinceramente eu não sabia se estava ou não ficando meio neurótico com essa ideia de que aqueles que eu encontrava se recusavam a me dizer a verdade. Talvez eles também não sabiam de muita coisa, assim como eu. Depois de horas conhecendo mais e mais pessoas, a noite avançava firme em seu tradicional curso, quando finalmente nos recolhemos.

Assim que voltei ao meu quarto, fiquei me questionando o porquê eu não havia feito mais perguntas. Afinal, embora tudo – aparentemente – estivesse bem, muito bem obrigado, eu ainda não sabia onde exatamente eu estava, quais os segredos e mistérios que compunham aquele lugar? Por que todas que chegavam naquela ilha nunca tinham planejado isso? Por que, de alguma forma, pelo menos até aonde eu sabia, todos que chegavam, chegavam doentes, ou com ferimentos de algum acidente? E ainda, como, praticamente todos conseguiam se recuperar tão rápido. Afinal, eu era um exemplo vivo de tudo isso. Cheguei desmaiado e agora, agora tinha acabado de participar de uma festa. E esse negócio de festa para quem chegava? Ninguém conseguiu me explicar o porquê disso.

Um outro detalhe que eu estava começando a perceber, estava relacionado com o “tempo”. Naquele lugar, o fator tempo parecia não existir. De certo que o Sol nascia e se punha, mas ninguém se prendia a esse fato. O sono, ou o descanso de uma noite bem dormida, definiam seus comportamentos.

            Ainda me virando de um lado para outro na confortável cama que foi gentilmente cedida, confesso que me sentia incomodado com tantas perguntas. Bom! Até aí nenhuma novidade. Pouquíssimas foram as noites em minha vida, em que eu fui para cama sem a companhia delas, às dúvidas. Quantas e quantas noites de sono foram perdidas tentando responde-las? Uma procura insana que nunca me levou a nada. Aliás, esse parece ser mesmo o principal objetivo da pré-ocupação. Nos tirar de nossas bases racionais e nos lançar ao mundo do que “pode ser que aconteça isso” ou pode acontecer aquilo”. No final das contas, nada, ou quase nada acontece e assim descobrimos que sofremos e muito inutilmente. Meu Deus! Quando vou definitivamente aprender essa lição?

            E, exatamente reconhecendo esse gravíssimo defeito que sempre me acompanhou, o cansaço de um dia cheio de novidades e surpresas, acabou prevalecendo, me nocauteando e com isso me entregando ao sono.

 

Amanheceu! O barulho forte do Mar, à poucos metros do quarto onde eu estava, confundia-se com o grasnar das gaivotas e a pequena queda d’água à minha esquerda. Um concerto de câmera maravilhoso. Mesmo ainda deitado, mesmo com os olhos ainda fechados, eu dizia a mim mesmo que eu não desejava nunca deixar de acordar ouvindo aquela sinfonia da natureza.

De súbito, uma pressa descabível toma conta do meu ser. Eu desejava me levantar, caminhar pela praia, tomar um bom banho, fazer um bom desjejum, e continuar explorando aquele lugar, conhecendo mais e mais pessoas interessantes, saber como eu também poderia ser útil a eles, uma necessidade intrínseca de retribuir tudo que haviam feito para mim até então e, encontrar – quem sabe – algumas respostas às minhas perguntas.

Assim que sai, descalço, sentindo toda energia viva do local, comecei a caminhar pela praia. O nevoeiro que eu havia visto, ainda antes de desembarcar ali, se fazia presente com mais intensidade. Parecia que as ondas, assim que chegavam e entravam em contato com a areia, desencadeavam uma espécie de fumaça. Uma maravilhosa imagem, iluminada com os primeiros raios do Sol, que, embora ainda modesto, enchiam tudo com um brilho prateado, encantador.

Eu já havia estudado, anteriormente, sobre a energia renovadora da manhã. Como que se todo o universo, diante de um novo dia, descarregasse um potencial energético para isso, de uma forma incalculável. E eu agora, naquele lugar, podia sentir essa força renovadora. Eu fazia parte dela, uma parte intrínseca, viva e participante.

A aldeia toda parecia ainda adormecida. Talvez, toda essa magia que tanto me fascinava, já se tornara comum a eles, quando percebi mais à frente, o vulto de alguém caminhando, vindo na minha direção. Curioso em saber quem era, perdi o elo energético que me prendia àquele momento. Não demorou muito, para que eu percebesse que se tratava do velho Ancião, que sorrindo, me deseja um imponente bom dia.

Caminhamos juntos de volta a aldeia. Falamos sobre a grandeza do lugar, principalmente do quanto eu estava impressionado com tudo. Sem saber explicar, mas agindo por um impulso maior, evitei fazer perguntas. No fundo eu sabia, que quando chegasse a hora, eu teria respostas a todas as minhas dúvidas. Embora às vezes fosse difícil conter a minha curiosidade, eu sabia muito bem que seria apenas e tão somente uma questão de aguardar o momento certo, aliás, como tudo em nossas vidas.

Finalmente, depois de ter vivido mais de meio século, parece que eu estava aprendendo a esperar, a ter paciência, confiar mais na Mãe Natureza de tudo e de todos. Quanto que essa inaptidão já havia me prejudicado em toda minha vida? Por mais que eu ouvira falar, por mais que eu tivesse lido, concluído, ainda assim, até aquele momento, eu não havia, definitivamente concebido, que em nossas vidas existe realmente, um tempo certo para tudo. E que, quando impacientes, quando forçamos uma determinada situação, os prejuízos são extremamente sérios, em todos os sentidos e o velho conhecido resultado aparece: sofrimento e dor.

Não! Dessa vez não! Eu não desejava mais atropelar a ordem natural das coisas. Afinal, eu fazia parte de uma Natureza, cuja sua principal lei, é e sempre foi, a de agir de forma natural. Quando chegasse o meu momento, o devido momento, eu saberia tudo que precisasse saber, nem mais nem menos, tudo o que o meu grau de desenvolvimento permitisse me seria revelado e, caso alguma informação ou algum conhecimento a mais do que isso acontecesse, simplesmente eu não assimilaria nada. É assim que a Natureza se protege e eu sabia muito bem disso.

Quando retornamos ao centro do vilarejo próximo de onde eu estava instalado, um delicioso café da manhã nos aguardava, servido numa espécie de galpão maior, comunitário. Mesmo construído também com materiais rudimentares, não deixava de expressar sua engenharia e beleza arquitetônica. Muitas frutas, sucos e uma espécie de pão fresco, compunham a mesa. Sentamo-nos. Aproveitei o momento de silêncio que se fez e expressei ao velho Ancião a minha necessidade de contribuir de alguma forma a todos, à comunidade que me recebera tão bem e mais, que havia cuidado não só de mim, mas também do meu veleiro. Quando ele sorrindo me disse – misteriosamente – que isso, isso não tardaria acontecer, como se soubesse ou estivesse prevendo alguma coisa mais à frente nesse sentido.

Falei-lhe um pouco sobre minha vida, e que eu havia adquirido conhecimentos com trabalhos manuais, como: marcenaria, hidráulica, desenho, pintura, escultura. Eu poderia ainda construir barcos, casas, represar e canalizar água... eu sentia realmente que poderia ajudá-los, não só quanto a conservação de tudo já existente, mas como também na construção do que fosse necessário para trazer a todos mais conforto e, quem sabe até mais segurança.

Mais uma vez ele me pedia calma. E, arremetendo seus negros olhos para o horizonte, sugeria que primeiro desfrutasse de toda aquela beleza, que eu caminhasse muito, conhecesse mais pessoas, participasse da vida deles e que, o trabalho surgiria assim, naturalmente. Achei engraçada a sua colocação, pois, eu vinha exatamente refletindo sobre isso “permitir que as coisas acontecessem naturalmente” e, coincidentemente ou não, ele estava agora tocando – exatamente – no mesmo ponto.

Ele tinha razão. Meu ímpeto, poderia me prejudicar mais uma vez. O melhor mesmo seria caminhar, conhecer mais e mais pessoas e, acima de tudo, continuar aprendendo.

Confesso que as vezes, a cena do Gaivota, sobre os cavaletes na entrada da aldeia, destoava do restante das outras embarcações. Eu desejava tirá-lo de lá. Por outro lado, não sabia onde poderia colocar uma embarcação de quase 40 pés, pesando mais de 6 toneladas. Além do mais, eu o estava achando triste, deprimido por estar fora do Mar, preso em terra firme. Mais tarde, certamente eu saberia o que fazer.

Enquanto admirava minha própria embarcação, um francês, amante da náutica, se aproxima, elogiando meu barco. Tratava-se de um senhor, aparentando uns 60 anos ou mais, de estatura mediana, olhos claros, pouco cabelo, com a pele muito bronzeada. Ele me contou que estava naquela ilha há aproximadamente 4 anos. Já havia pensado em partir, mas ainda sentia não ser o momento certo. Ele era um médico, cardiologista, mas que ali, se via obrigado a praticar uma espécie de clínica geral. Embora os habitantes dificilmente adoecessem havia acidentes, ou pessoas chegavam feridas necessitando de socorro e depois um acompanhamento médico. Perguntei se ele havia me examinado, quando cheguei desmaiado a ilha. Sorrindo ele disse que sim, mas que meu caso se tratava simplesmente de um profundo cansaço, talvez acumulado por uma vida inteira e uma adaptação a esse novo lugar.

Quando fui colocado naquele quarto, ele me examinara, atestando que eu estava bem e que, precisava apenas de muito repouso. Eu não sabia disso. Confesso que fiquei surpreso com a informação. Mas, fiquei incomodado quando ele mencionou “uma adaptação a esse novo lugar”. Não resistindo, questionei-o sobre isso.

— Sabe, – disse ele – aqui, como você dever ter percebido, existe uma energia diferente. Algo difícil de explicar para um recém-chegado como você, Com certeza, caso você fique conosco por algum tempo, automaticamente você entenderá do que estou falando.

Silenciosamente, minha mente voltava a trabalhar na possibilidade de eu estar mesmo morto. Mas, como eu não desejava contrariar tudo aquilo que eu mesmo havia proposto para mim, permiti que ele continuasse sem minha interferência, apenas fazendo uma observação:

— Por acaso é essa “energia diferente” que você mencionou que impede que os rádios, os telefones e até mesmo o nosso GPS funcionem aqui?

Ele esboçou um leve sorriso, quase que desejando me chamar de ingênuo, bobinho ou coisa assim. Não sei porquê, mas foi exatamente isso que eu senti e, mesmo assim, não desejei levar adiante minhas impressões, quando ele respondeu:

— Sim! Ou melhor, mais ou menos isso!

Dizendo a mim mesmo deixar esse assunto para depois (no seu tempo), lembrei-me imediatamente, que todos ali, possuíam uma função específica, mesmo que, aparentemente, para quem acabasse de chegar, parecesse que estavam desfrutando de merecidas férias. Nossa conversa estava agradável, até que uma espécie de gongo, com um som estridente começou a soar deliberadamente, por toda a aldeia.


CAPÍTULO – 21

Pudemos observar, que homens corriam para seus botes, na beira da praia, lançando-os ao Mar. Curioso, meio que preocupado, eu desejava saber o que estava havendo. O médico francês tentando me acalmar, disse ser uma espécie de sinal, que pessoas no Mar poderiam estar precisando de ajuda. Geralmente, um novo visitante. Rapidamente fiz uma analogia com a minha própria chegada. Sim, fazia sentido. Aqueles que aqui chegavam, de uma forma ou de outra, estariam sempre precisando de ajuda, uma ajuda física ou na maioria, uma ajuda espiritual. Seriam possíveis esses meus pensamentos?

Não sei o que deu em mim. Sai correndo em direção aos botes. Percebi que dois nativos, desempenhavam muita força para lançar ao Mar um desses botes, aqueles cavados em troncos e muito pesados. Imediatamente comecei a ajudá-los e assim que avançamos até a primeira onda, dei um salto e de posse de um remo, comecei ajuda-los a remar seguir em direção a outros dois barcos, que já estavam à nossa frente.

Agindo puramente por instinto, não pensei – pelo menos naquele momento – no que estava fazendo. Eu e os outros dois nativos, remávamos em uma sincronia tão perfeita, que não demorou muito, para alcançarmos os outros dois botes. Eu ainda não conseguia ver nada à nossa frente, quando pensei em como eles poderiam saber em qual direção seguir? Eu não havia visto nenhum tipo de antena, rádio, ou coisa parecida na aldeia, capaz de captar sinais de socorro ou coisa assim. De que forma poderiam eles, receberem esses pedidos de ajuda?

Bem, naquela hora esses detalhes não importavam. Eu acreditava realmente que poderiam haver pessoas precisando de ajuda, e continuava remando, remando cada vez mais rápido. Não demorou mais do que 15 minutos, para avistarmos uma pequena aeronave, ainda sobre as águas. Assim que chegamos, a parte dianteira, onde estavam o motor e a hélice, começava a afundar lentamente. Talvez devido ao choque com Mar, os vidros dianteiros estavam quebrados, e pela forma com que aquele avião se encontrava, com o bico afundando, a água começava a invadir o seu interior. Lá dentro, um casal desfalecido, mostrava nítidos sinais de ferimentos. Cortes no rosto, e sabe-se lá o que mais.

Atirei-me ao Mar. Nadei até aquela pequena cabine, tentando abrir a porta. Eu não conseguia abri-la sozinho, quando um jovem nativo, de músculos avantajados, começa a me ajudar e juntos, quase que arrancamos a fina portinhola. A essa altura, o casal já estava com a água no peito. Desatei os cintos, puxando-os para fora. Com os outros barcos ao nosso lado, outros nativos nos ajudaram a embarcar, primeiro a mulher, depois o homem, que aparentava estar mais ferido ainda, com um profundo corte no pescoço, sangrando muito, mais muito mesmo, mudando temporariamente a cor do Mar onde estávamos.

Rapidamente subimos em nossos botes, e remamos de volta para a aldeia. O casal estava no bote a nossa esquerda. Eu os fitava atentamente, na esperança de ver alguma manifestação de vida, mas eles não se mexiam. Permaneciam largados, na mesma posição em que foram colocados. Eu estava tenso. O avião, que ficara para trás, já não estava mais lá. Com certeza já havia afundado e os dois, não se mexiam em hipótese alguma.

Conforme nos aproximávamos da praia, uma verdadeira operação de resgate já havia se formado. Eles deveriam estar acostumados, preparados para essas emergências. Homens, mulheres, com macas, ataduras, nos aguardavam também ansiosos. Assim que chegamos, os feridos foram imediatamente transferidos para as macas, e carregados até o meu quarto. Sim, aquele era o quarto reservado para os feridos, para aqueles que ali chegavam necessitando de socorro, de ajuda.

O doutor francês, com sua malinha preta na mão, entrou logo em seguida. Eu me aproximei, desejava também entrar. Um nativo, que permanecera do lado de fora, impediu-me, gesticulando com a cabeça em sinal negativo. Mais uma vez eu pude compreender sem maiores explicações. Aos poucos tudo ali começava a fazer sentido. Lentamente o entendimento surgia espontaneamente, esclarecendo algumas das minhas dúvidas. Mais um detalhe mostrava-se muito claro e objetivo. Eu adquiria a compreensão, eu obtinha as respostas, mas, no seu tempo certo, não quando eu simplesmente às desejasse.

Afastei-me ainda pensativo. Eu me encontrava exausto. Há um certo tempo eu não desempenhava um esforço físico tão grande e sobre uma tensão como a que acabei de me submeter. Mesmo assim, eu não conseguia deixar de pensar em tudo que acontecera.


CAPÍTULO – 22

Durante toda minha existência, sempre acreditei que a vida não passava se não, de uma grande ilusão, de um grande sonho. Lembro-me muito bem, que quando adolescente, tentando expressar minhas ideias nesse sentido, fui ridicularizado muitas e muitas vezes. Mas nem assim, desisti de minhas primeiras teorias.

Com o passar dos anos, estudando, pesquisando mais, entrei em contato com pessoas, livros que também compartilhavam de minhas ideias. Tive a oportunidade de ler Ilusões de Richard Bach, uma verdadeira obra prima, e muitos outros trabalhos, teses e livros sobre o conceptualismo, doutrina segundo a qual os universais não existem em si mesmos, sendo construções do espírito, de um realismo conceitual. Segundo essa doutrina, as ideias são formas, ou são mesmo, operações próprias do pensamento e não meros sinais que se aplicam igualmente a indivíduos diversos.

Carreguei comigo essa teoria por toda minha vida até aqui, sem que ninguém, ninguém conseguisse provar o contrário ou que eu realmente estava certo. Mas, aonde eu desejava chegar com essa súbita lembrança em um momento como aquele? Tudo isso então, poderia ser uma espécie de continuação, de toda essa ilusão, de todo o sonho que vivi até hoje. E aquela ilha, como fazendo parte de um gigantesco quebra-cabeça universal, se encaixava perfeitamente também dentro de todo esse contexto. Eu poderia sim ter construído mentalmente toda essa realidade que eu estava vivendo. Essa também não deixava de ser uma possibilidade, aliás, uma forte possibilidade.

 

Sentei-me embaixo do Gaivota. Ainda ofegante, molhado, mas satisfeito comigo mesmo pelo o que eu tinha feito. A minha preocupação em servir de algum modo aquela comunidade, acabou acontecendo bem antes do que eu esperava. Mesmo sem que eu desejasse isso, minha mente de repente, voltava a trabalhar de forma alucinada, como um faminto diante a um prato de comida. Mas durante esses últimos tempos, mais precisamente desde que iniciei essa viagem, muitas lições eu já havia absorvido. Eu não poderia, simplesmente, por mais uma vez, enterrá-las no fundo de um poço, como muito já havia feito no passado. Eu precisava escrever, anotar todas essas experiências, registrar minhas conclusões. Sim! Eu temia perder alguma coisa caso não fizesse anotações e coisa assim.

Por um instante, me esqueci completamente do casal ferido. Na porta do quarto principal, um número razoável de pessoas permanecia como que fazendo uma forte corrente de vibração positiva, enquanto que outras, entravam e saiam, carregando coisas como bacias, ataduras, ervas, panos, lençóis...

            Eu continuava confuso. Os pensamentos passeavam pela minha mente, como o vento quando sopra em todas as direções. Eu precisava escrever. Sim, escrever sempre foi para mim um ótimo calmante, um organizador das minhas ideias e que, de uma forma ou de outra, me trazia novamente a serenidade. Lembrei-me imediatamente do meu notebook, que há tempos eu não lhe procurava. Subi no Gaivota e, dentro de sua cabine, mesmo que fora d’água, tomei um delicioso banho, troquei de roupa e me coloquei a narrar tudo, tudo que eu havia vivido nessas últimas semanas desde que havia deixado a outra ilha com o velho Mestre.

A noite caiu e eu nem percebi. Somente quanto a cabine ficou escura, eu acabei lotando isso. Agora, como eu meu quarto estava sendo usado por outro recém-chegado, nada melhor do que voltar ao Gaivota, mesmo que fora da água. Por um momento, depois de muito escrever, me dei conta de onde estava, o que tinha feito e o que estava fazendo. Como ainda havia água doce nos reservatórios, tomei mais um delicioso banho, coloquei a mesma roupa, fiz um lanche e continuei com minhas anotações.

O dia amanheceu. Mesmo com a bateria do pequeno computador ter se esgotado, eu ainda tinha as baterias do Gaivota, o que me permitiu continuar escrevendo, escrevendo, páginas e mais páginas dessas últimas experiências vividas.

O cansaço eminente, me fez perceber, junto com os primeiros raios de Sol, que eu deveria descansar um pouco. Afinal, já há alguns dias eu não dormia em minha cama, no conforto que me era conhecido. De certo, eu não seria embalado pelo Mar, mas mesmo assim, o estresse era tanto, que não tive nenhuma dificuldade em adormecer.


CAPÍTULO – 23

 Com o barulho característico das pessoas passando perto do Gaivota, falando alto, de crianças correndo, brincando, cachorro latindo, durante o dia, despertei meio que assustado. A tarde avançava em sua jornada em direção à noite e eu, ainda entorpecido pelo sono, me levantei. Ao sair da minha embarcação, notei que não havia mais pessoas à porta daquele quarto de recuperação – se é assim que eu poderia chamá-lo. A rotina parecia ter tomado conta novamente daquela aldeia. Mas, eu mantinha-me curioso, quanto ao estado de saúde dos nossos novos visitantes. Eu poderia jurar, que pelo menos o homem, devido à gravidade de seus ferimentos, pelo menos ele não sobreviveria.

            Fui buscar informações. Notei que o médico francês, estava em um quiosque, tomando alguma coisa. Dirigi-me até ele, indagando-o prontamente quanto ao estado de saúde do casal. Ele se recostou na cadeira, relaxando todo o corpo e, jogando seu olhar ao infinito, me dizia que ficariam bem. Precisavam descansar por alguns dias, mas que, ficariam bem.

   Imediatamente lembrei-me quando ali cheguei. Meu estado de saúde também não era bom. Também fiquei adormecido por alguns dias sob exatamente essa mesma alegação:

    — Precisam descansar por alguns dias que ficarão bem!

...Será que isso fazia parte de uma rotina de tratamento naquele lugar? Descansar?

...Será que, para que as pessoas pudessem começar a se adaptar a uma nova realidade em suas vidas, aquele período de inércia era necessário? Mas, por quê?

   Senti de forma explícita, que meu amigo médico, não desejava mais falar sobre o caso, assim que ele desviou o assunto questionando propositalmente se eu estava com saudades da vida no Mar. Ele deve ter notado que passei a noite, e boa parte da manhã, dentro do meu barco. Respondi que sim. Afinal, por mais bem tratado que eu estava sendo, o Mar parecia a todo instante, insistir para que eu retornasse a seus braços. Por mais vaga que deva ter sido minha resposta, eu sentia que ele à compreendia perfeitamente.

   Não demorou muito, para que o Velho anfitrião, surgisse como que do nada à nossa frente. Com seu doce sorriso nos lábios, comentou sobre minha desenvoltura, quanto ao resgate do casal. Senti-me feliz. Pois, eu havia sido útil, talvez da mesma forma como fizeram comigo. O velho conceito de que precisamos, servir uns aos outros, se fazia presente novamente, sem a necessidade de maiores comentários. Assim era a vida. Assim deveria ser em qualquer plano de vida.

  Enquanto isso, eu continuava jogando com as mais diversas possibilidades, para justificar o que acontecia. Um jogo – confesso – macabro, meio que de adivinhações, suposições que constantemente beiravam o absurdo. Um jogo onde eu tentava descobrir e provar a mim mesmo, se eu ainda estava vivo ou não. Mas assim era, assim parecia continuar. Eu dedicava um enorme esforço, para não me deixar ser levado pela precipitação, pelas conclusões puramente racionais. Eu não desejava mais inserir nos mesmos erros do passado intervindo no fluxo natural das coisas.

   Assim como o nascer do Sol trazia consigo uma demanda de energia imensurável, o seu partir, daquele dia, não deixava por menos. Ele se deitava à nossa frente, cintilando em todas as direções, despedindo-se como quem estava feliz, por cumprir com o seu dever em mais um dia. Nós, os três, sem perceber, paramos para contemplar mais aquele derradeiro milagre da Natureza. E, sou obrigado a admitir: “que belo espetáculo”.

 O dia seguinte amanhece chovendo. Ainda deitado em minha cama no Gaivota, eu pensava exatamente há quanto tempo, eu não contemplava uma boa chuva. Sempre, durante toda minha vida gostei e gosto muito de uma chuva. E naquele dia, em mais algum pedaço do paraíso, ela descia dos céus, como que abençoando toda a criação, enchendo de vida, de cor, de mais magia ainda à nossa existência. Eu podia contemplar as gotas que escorriam pelas escotilhas, envolvido naquele aconchegante som tão característico. Novamente eu me sentia muito estranho, estar dentro de uma embarcação, e ela manter-se solidamente firme. Não era somente minha percepção que se manifestava, mas os desejos mais profundos do meu coração.

Eu desejava mesmo voltar ao Mar. Não sei se apenas por saudade, ou porque algo me dizia que ainda, minha viagem não havia terminado. Senti naquele sublime momento, que inconscientemente eu já estava fazendo planos.  

...Aproveitando que minha embarcação estava em terra, eu poderia tirar algumas 1cracas que vinham se acumulando no casco, fazer a manutenção do mastro e cabos, alguns reparos na cabine, que eu já vinha adiando há um bom tempo...

Esse devaneio enchia meu coração de alegria enquanto eu ainda estava deitado. Porém, como a chuva não parava, não acabei resistindo e fui correr na praia, debaixo de toda aquela maravilhosa água de descia dos céus. Não demorou muito para que começasse a ver a pequena aldeia acordar. Apesar da chuva, a temperatura ainda assim, mostrava-se muito agradável. Eu já podia ver pessoas andando, comentando sobre o tempo.

Depois de um certo tempo desfrutando de tudo aquilo, a lembrança do casal saltou-me a mente. Desejava saber como eles estavam e com isso, indiretamente, ter algumas respostas às minhas muitas perguntas. Depois de correr por quase uma hora, dei um rápido mergulho na praia e voltei ao Gaivota para tomar um banho e vestir uma roupa seca. Fiz meu desjejum comendo frutas secas com iogurte que eu mesmo havia feito com o leite que me fora cedido no povoado e saí ao encontro dos meus amigos. Assim que me aproximei do quiosque maior, com seu enorme telhado de vime, pessoas lá embaixo, pareciam também contemplar a chuva. Sentei-me em um dos bancos e mais uma vez, lancei meus pensamentos ao longe, embalados pelo encanto daquela água que descia dos céus.

1Craca: crustáceo, exclusivamente marinho, da classe dos cirrípedes, que vivem fixados a rochas, conchas, corais, madeiras e outros objetos flutuantes, encerrados em uma carapaça calcária, semelhante a um pequeno vulcão.

Quando voltei a realidade, fui tomado de súbito pela imagem de um garoto à minha frente. Na chuva, molhado, ele estava parado, me olhando. Calculei não ter mais de 13 anos. Com a pele marcada pelo Sol, seu corpo esguio, parecia sumir dentro da roupa larga e clara. Descalço, como quase todos ali, ele usava uma bermuda e camiseta. Uma aparência triste, reflexiva, de quem procurava mais observar do que mesmo se manifestar.

Sem dúvida, um rapaz totalmente diferente do comum. Mas foram os seus olhos, os seus olhos que me arremeteram ao meu passado.

Na minha infância, tive muitos problemas de adaptação com o meio. Sempre fui uma criança retraída, de pouquíssimos amigos. Quase não brincava. Passava boa parte do meu tempo lendo, escrevendo ou desenhando. Assim eu me comunicava com o mundo. Eu era constantemente recriminado por essa característica, o que sempre me causou um certo incomodo que só agora eu percebia que, inconsciente, os carregava até hoje. Quando retornei desse devaneio ao passado, o jovem não estava mais à minha frente. Procurei-o ao redor em vão, ele havia desaparecido.

Olhando para o céu, percebi que aquela chuva duraria pelo menos todo aquele dia. Apesar de adorar aquele clima, uma tristeza parecia invadir o meu coração sem pedir licença. Por mais uma vez, minha vida inteira, passava pela minha frente. Momentos de muita, muita reflexão. Não sei precisar quanto tempo fiquei ali mesmo, sentado, pensativo, deixando ser levado pelas imagens do passado. A água que descia do telhado de vime, fazia possas na areia, por quase toda volta. A brisa, as vezes trazia respingos até meu rosto, tentando me trazer de volta. A nossa frente, a praia continuava calma, mostrando toda sua serenidade, praticamente sem ondas, com uma cor indecifrável que, passeava pelos tons de verde e azul, se misturando a bruma que subia, mesmo debaixo da chuva. Sem dúvida, mais um daqueles momentos que ficariam para sempre registrados em minha mente.

Mais tarde, fiquei sabendo que o casal passava bem. Se recuperavam dos ferimentos e em breve, teríamos uma festa em homenagem a eles. Mais uma vez pensei seriamente sobre as ideias que eu fazia do paraíso. Poderíamos estar todos mortos ali, obviamente sem ainda termos essa consciência. Aqueles dias, aquela convivência com entidades superiores, poderiam ser uma preparação para outra fase que ainda estaria por vir, ou coisa assim.

 Eu não sabia! Mas, por mais absurda que essas ideias podiam parecer, pelo menos explicavam quase a todas as perguntas que eu fazia a mim mesmo. Por mais uma vez, eu não desejava me antecipar aos fatos. Acreditava mesmo que, essa consciência, viria com o tempo, como a minha própria aceitação dos fatos. Com a continuidade da chuva, acabei sendo sabotado pela reflexão. Voltando ao Gaivota, mesmo que ainda sobre cavaletes de quase dois metros de altura, permaneci dentro dele, prazerosamente escrevendo, enquanto era acalantado pelo som e pela imagem da chuva escorrendo pelas minhas escotilhas.

Na manhã seguinte, o Sol reinava soberano novamente. Assim que me levantei, fui correr novamente na praia, bem próximo a água, por sua areia ser mais dura. Ainda com pouca luz, o Mar em seu bramido me dizia coisas que só mesmo o meu coração podia decifrar. Dessa vez, a minha razão não se importou com o fato e milagrosamente não se intrometeu em nossa gostosa relação: o Mar e o meu coração. Eu me sentia bem, disposto a continuar e isso, isso realmente era o que importava.

Depois de bom banho e o meu desjejum, voltei para a aldeia, conversei com algumas pessoas, e logo me coloquei embaixo do Gaivota, com algumas espátulas, raspando o seu casco. Não havia muita craca. Constantemente eu fazia esse tipo de manutenção, mesmo com a embarcação dentro d’água. Mas essa atitude, para mim mesmo, dizia que eu estava mesmo, era me preparando para mais uma viagem, eu estava me preparando para voltar ao Mar. O meu amor pelo Mar sempre foi tão grande, mas tão grande, que para mim, não bastava ficar ou mesmo morar em frente ao Mar. Eu tinha que estar sobre ele, no seu colo, nos seus braços, o maior tempo possível. Sinceramente falando, nem eu mesmo era capaz de entender um amor assim. Fiquei concentrado no que fazia, imaginado quantas milhas e milhas náuticas aquele casco branco, de fibra, já havia percorrido. Até que sou interrompido pela presença do mesmo rapaz de ontem.

Percebi que ele me observava atentamente, da mesma forma como eu costumava fazer na minha infância, de longe, com receios, mas desejando se aproximar. Parei por alguns instantes e antes que ele, tímido, se retirasse novamente, procurei conversar.

Bom dia! – cumprimentei-o tentando deixa-lo mais à vontade.

Ele esboçou um leve sorriso, respondendo com a cabeça, dando um passo à frente. Incrível! Geralmente como eu fazia.

— Qual é seu nome?

Timidamente, ele respondeu em voz baixa, quase que inaudível principalmente pelo bramir do Mar.

Antônio Senhor – respondeu ele, ainda com muita timidez, dando mais um passo à frente.

Mas eu desejava mais. Eu queria e muito conversar com aquele garoto. Sem saber o porquê, ele tinha alguma coisa que indiretamente me arremetia ao meu passado de forma que chegava a ser assustadora. Assim, comecei a argumentar coisas e mais coisas, tentando conquistar a sua confiança e quebrar com sua timidez.

Você já tinha visto um barco como o meu antes?

Perguntei, mesmo sabendo que sua resposta seria positiva. Aquela ilha, deveria ser frequentemente visitada por grandes embarcações, mas eu desejava manter algum diálogo e, não sabia o que dizer. Ele responde que sim, ainda restrito em suas palavras, até que se encorajou a falar mais, dando mais um passo à frente.

— Sim! Eu já vi muitos barcos, até mesmo maiores do que o seu, mas este, este me parece especial.

Sua afirmação me deixou emocionado. Pareceu-me sincera e absolutamente convincente. Para mim o Gaivota também era uma embarcação especial. Morando por mais de cinco anos em uma marina, eu já havia visto embarcações de quase todos os tipos existentes. Grandes, pequenas, rápidas, luxuosas, rudimentares e até mesmo artesanais, mas o Gaivota, o Gaivota era um barco especial. Podem me chamar de louco, mesmo assim eu ainda vou dizer, o Gaivota tinha vida. Eu falava com ele, ele me entendia e respondia ao seu modo. Agora, por exemplo, ele estava triste de estar onde estava, sobre cavaletes, mas por outro lado, ele estava reconhecendo o tratamento que estava recebendo. Juntos eu e ele, estávamos mesmo ansiosos para voltar ao Mar. Por isso, não só o rapaz, mas muitas outras pessoas, dotadas de uma sensibilidade um pouco maior, viam sim, algo de especial, de muito especial no Gaivota.

E o que o faz achá-lo especial? – eu desejava que ele se manifestasse mais, antes que eu pudesse lhe fazer algumas perguntas.

— Eu não sei. Mas é especial, diferente, não sei explicar.

Eu sabia o que ele estava vendo, ou melhor, o que ele sentia ao ver o meu barco, mas não quis entrar nesse detalhe.

Você quer conhecê-lo por dentro?

Seus olhos imediatamente se encheram de brilho. Ele deveria estar desejando isto há mais tempo. Convidei-o subir a bordo. Mais animado, ele chegava ao convés tentando olhar tudo ao mesmo tempo. Lembrei-me da primeira vez que eu pisei em um convés, e toda a sensação que tive. Naquela época, eu já sonhava com os veleiros sem mesmo nunca ter visto um à minha frente. A cidade onde morava, São Paulo, a praia mais próxima ficava a pelo menos 80 km de distância. Eu brincava com pequenos barcos que eu mesmo fazia com latas de sardinha, em uma enorme bacia de alumínio, nos fundos do quintal. As imagens que eu tinha dos veleiros, eram páginas arrancadas de revistas, jornais, que já guardavam o meu mais profundo desejo de viver no Mar. E agora, eu podia ver a mesma reação estampada no rosto daquele rapazinho que talvez, alimentasse em sua vida a mesma paixão que a minha.

Descemos até a cabine. Ele olhava em volta, acima e abaixo, atônito, impressionado. Às vezes eu percebia que ele desejava falar alguma coisa, mas o seu grau de admiração, de satisfação era tanto, que talvez lhe fugissem as palavras da boca. Mas, para instigá-lo, perguntei:

E então o você acha?

É mais bonito do que eu imaginava. O senhor deve ter navegado muito com ele.

Sim! Nesses últimos anos, esta tem sido a minha casa. Eu moro aqui dentro. – vi imediatamente os seus olhos brilharem ainda mais – Naveguei muito, mas não tanto quando ainda desejo.

Quando o senhor irá partir?

Ainda não sei. Preciso aprender mais alguma coisa por aqui antes.

Eu também sei que preciso aprender muitas coisas ainda em minha vida. – concordando comigo, o jovem falava a mesma coisa, demonstrando desde cedo, a consciência de sabia muito pouco sobre a vida, mais uma característica que eu também tinha na minha adolescência.

Fui tomado de surpresa. Aquele rapaz não só me fazia lembrar de toda minha infância, como também demonstrava e muito, ter atitudes como as minhas. Há semanas atrás, na última ilha em que estive ancorado, com o velho Mestre, tive a sensação de estar me vendo há algumas décadas à frente. E agora, o inverso acontecia lentamente, à medida com que conhecia o jovem Antônio. Ele me fazia olhar para o meu passado. Ver-me nitidamente na criança que fui. Naquele instante, eu desejava conhecê-lo mais e mais. Ver até onde seria possível nossas afinidades, nossas coincidências.

Sentamos. Perguntei sobre onde morava, sobre seu pais... Ele me disse que um acidente havia levado sua mãe, ainda quando ele era muito criança, não se lembrando dela. Quanto ao pai, estava na América, trabalhando. Ele vivia com uma avó, uma senhora idosa, mas que o tratava muito bem. Estudava junto com outros jovens, na única sala de aula da aldeia, e que todos cursavam juntos, independentemente da idade. Uma única professora, ensinava-os o básico para a escrita e a leitura, com algumas informações sobre o mundo. Sem dúvida, um ensino rudimentar, assim como o próprio lugar.

Ficamos conversando por algumas horas. E à medida com que eu o conhecia melhor, mais me convencia de estar diante do meu passado. Fomos almoçar juntos. Perguntei a ele sobre seus amigos, o que faziam por ali. Sua resposta foi incisiva:

— Não costumo ficar muito com eles. Tenho mais amizades com os adultos, além do mais, prefiro ler, escrever, do que ficar correndo por aí.

A partir daquele momento, eu já não me surpreendia mais. A cada pergunta, a cada resposta, eu me via nitidamente naquele garoto. Tomado por um profundo estado de espanto, eu não conseguia acreditar no que eu estava vivenciando agora. Mas assim, como com o velho Mestre na outra ilha, o que eu agora poderia aprender com tudo isso? Pois, mesmo mergulhado em todas essas dúvidas, de uma coisa eu tinha certeza: tudo isso estava acontecendo com um firme propósito de me passar algum conhecimento, ou quem sabe até, a oportunidade de corrigir alguma coisa do passado que pudesse ter ficado pendente em minha vida.

A tarde chegava e com ela uma brisa maravilhosa balançava as folhas dos coqueiros, espalhados por toda orla. Convidei meu novo amigo a me ajudar com o Gaivota. Mais uma vez ele demonstrou muita alegria com isso. Dei-lhe uma espátula, mostrei como fazia para retirar as cracas sem danificar o casco de fibra e com o cuidado para não se ferir.

Antônio muito concentrado, realizava o trabalho com dedicação. Confesso que fiquei observando o garoto executar o seu trabalho que acabei perdendo a concentração no meu. Quando a noite nos dava suas primeiras pinceladas mais escuras, já estávamos quase terminando. Enquanto trabalhávamos, conversamos sobre muitas outras coisas. Prometi a ele, que após a manutenção que fazíamos, eu colocaria novamente o Gaivota na água e que, velejaríamos juntos.

Aos poucos, eu percebia que dedicava a ele, toda a atenção que eu nunca tivera de um adulto, quando criança. Talvez mesmo, eu estivesse, com essa atitude, suprindo uma enorme lacuna que eu trazia desde a minha infância, devido ao meu comportamento atípico. E com isso tudo, eu me sentia cada vez melhor, como que, depois de muitos anos, eu estivesse curando algumas feridas da minha própria personalidade. Aliás, eu estava me sentindo muito bem.


CAPÍTULO – 24

 Assim se passaram outros dois dias. Depois de limpar, polir e encerar todo o casco, minha embarcação brilhava como nova, reluzindo toda luz do Sol que nela tocava. Fomos informados sobre a festa que seria realizada mais à noite, em homenagem ao casal que se recuperara de forma inacreditável. Mais uma festa. Por mais uma vez, o ritual se repetiria, assim como devia ter acontecido com todos que ali chegaram.

Na manhã seguinte, pedi ajuda aos pescadores, para que nos auxiliassem a recolocar meu barco na água. Junto com cerca de 30 homens, habituados a despenderem de muita força física, aos poucos, deslizávamos o suporte de cavaletes que sustentava o Gaivota, com a ajuda pequenos roletes de madeira, até a praia em frente, que com a maré alta, ficava à poucos metros. Mais algumas horas, com a maré subindo a seu nível máximo, meu barco começou a flutuar. Tirando os cavaletes, agora minha embarcação estava em seu devido lugar, novamente. Subi a bordo, eu e o jovem Antônio. Recuamos na praia cerca de 300 metros para o Mar adentro, para quando a mesma maré descesse, o Gaivota não ficasse de barriga na areia. Lancei as duas ancoras, uma de cada lado e voltamos para a praia com o bote inflável. Embora meu desejo fosse navegar naquele momento, ainda assim, preferi não o fazer a noite. Eu não conhecia a região muito bem, mas já tinha visto a quantidade enorme de arrecifes que existiam em volta da ilha. Mas, prometi ao meu jovem amigo que, na manhã seguinte, circundaríamos a ilha por algumas vezes.

Se, realmente aquele rapaz fosse eu quando mais jovem, essa seria uma noite que eu não dormiria, tamanha a expectativa para o dia seguinte. Mas, além do que havíamos planejado para o dia seguinte, agora teríamos uma festa, uma festa para se comemorar a chegada dos novos visitantes da ilha, visitantes que, inclusive, eu havia ajudado no resgate quando seu avião caiu no Mar.

Obedecendo o mesmo ritual que foi feito comigo, a praia estava toda enfeitada com as tochas acesas, formando um corredor até o quiosque maior. Quando chegamos, os novos visitantes já estavam presentes. Sorridentes, marido e mulher falavam com muitas pessoas, quase que ao mesmo tempo. Foi quando passei por eles, sem condições de me aproximar devido ao número de pessoas que estavam a volta deles, que ouvi alguma coisa:

— Senhor! Senhor! Por favor! Um minuto da sua atenção – percebi que o homem me chamava, mesmo que ainda à distância.

Desviando de uns, pedindo licença a outros, consegui aos poucos me aproximar do casal, centro das atenções daquela noite.

— Quem bom vê-lo recuperado – eu disse imediatamente quando definitivamente eu me aproximei, enquanto apertava e balançava com satisfação a sua mão direita.

— Eu queria lhe agradecer pelo que fez por nós – disse ele expressando emoção nos olhos.

Gesticulando negativamente com a cabeça, afirmei que eles não tinham nada a agradecer. Aliás, se alguém tinha motivos para isso, esse alguém seria eu mesmo. E eu, eu estava sendo sincero ao extremo, pois, se eu não tivesse tirado eles de dentro daquele avião, com toda certeza outra pessoa o teria feito, estávamos em muitos naquele momento, agora, ter sido o privilegiado de ter feito isso, seria motivo, mais do que suficiente para estar eternamente grato.

Depois de ter falado rapidamente com ele, sem se quer ter tido a oportunidade de nos apresentarmos formalmente devido ao número de pessoas a nossa volta, não pude deixar de pensar em como, aquele homem conseguiu sobreviver aquele acidente, depois de ter tido seu pescoço cortado e perdido a quantidade de sangue que perdeu. Eu sabia muito bem das condições, da estrutura médica que existia naquela ilha: “nenhuma”. De certo havia um médico, mas onde esse profissional prestava os seus serviços, não havia nenhum suporte, nenhum equipamento, instrumental, sala de cirurgia ou qualquer outra coisa do tipo. Então, como ele realizava esses, que seguramente eu poderia chamar de “milagres”?

Mesmo sem querer, lá estava eu novamente criando mais dúvidas. Mas também, com tudo isso acontecendo bem diante dos meus olhos, era difícil ignorar e simplesmente aceitar por aceitar e fim de papo. Mesmo assim, eu não quis comentar com ninguém, nem mesmo com o nosso Anfitrião, quando surgiu e veio falar comigo.

— Está gostando da festa? – perguntou ele muito animado.

— Sim! É claro. Estou admirado como vocês recepcionam os que chegam aqui. – respondi inconscientemente tentando com isso obter mais informações sobre tudo que eles faziam.

— Sim! – continuou ele – na verdade, esse não deixa de ser um motivo de muita alegria, o início do grande retorno deve ser sempre comemorado.

— Início do grande retorno? – pensei comigo mesmo. Que retorno? Que início?

Peço desculpas senhor, mas eu não entendi.

Ele me olhou de um jeito um pouco mais sério, já me conhecendo bem, e mais sabendo perfeitamente o meu jogo de palavras para tentar acessar informações que talvez, ainda não fossem pertinentes para o meu momento.

— Mais à frente você vai entender. – resumiu ele de forma simples e encerrando esse assunto, se retirando educadamente.

 Por mais uma vez ficou nítido que eu estava em um lugar onde a sua compreensão deveria ser gradativa, escalonada de acordo com o tempo de cada uma. O meu ímpeto por saber de tudo e no tempo que eu acreditava, por mais uma vez deveria ser controlado. Um fato, terminantemente deveria ser encarado: eu não estava em um lugar comum. Assim, acreditar que tudo aconteceria da maneira com que eu sempre presenciei, seria pura utopia. Naquele lugar sim, aconteciam coisas que a minha razão, nem de longe era capaz de entender. Ficar desesperado e ansioso atrás de respostas em uma situação como essa, certamente seria uma prova de ignorância maior do que tudo. Realmente, eu tinha que aceitar as coisas como elas eram ou então, eu ficaria louco.

  Depois de me alimentar, beber alguma coisa, falar com os amigos que eu vinha fazendo, resolvi voltar ao Gaivota. Afinal, ele agora estava de volta ao seu lugar e, já há algumas noites eu não dormia embalado pelo Mar, fato esse que já estava me fazendo falta. Peguei o pequeno bote inflável e remei até a minha embarcação que me saudou assim que cheguei. Ainda deitado, antes de adormecer, eu podia ao longe ouvir os resquícios da festa que, apesar de estar muito animada, não foi até muito tarde. Foi uma noite tranquila, onde eu consegui repousar o meu corpo e meu espírito.


CAPÍTULO – 25

Na manhã seguinte, assim que abri os olhos e constatei que dia já havia nascido, dei um salto da cama lembrando-me imediatamente do meu sério compromisso: eu tinha uma promessa a ser cumprida, e uma promessa a alguém muito, muito especial. Mesmo sem ter feito o meu desjejum, assim que coloquei uma roupa, desci ao bote inflável e remei até a praia. Não foi minha surpresa ao vê-lo sentado na areia me aguardando. Assim que me viu chegando, rapidamente se levantou, batendo com as mãos no calção para tirar a areia, vindo caminhando ao meu encontro.

   Minha preocupação, era se ele tinha comunicado sua avó quanto ao nosso passeio e, se tínhamos a sua permissão. Prontamente ele confirmou tudo e, mostrando uma pequena sacola, disse que sua avó havia feito alguns lanches para nós, uma gentileza que, naquele lugar, era quase que um dever que as pessoas tinham, umas com as outras.

  Quase que explodindo de ansiedade, ele subiu no pequeno bote inflável, e juntos, voltamos ao Gaivota. Ele ainda não tinha visto o barco com suas velas abertas, orçando e avançando à frente com toda sua imponência. Assim que comecei a içar a vela mestra, seus olhos pareciam querer saltar do rosto. Primeiro, devido à pouca brisa no local, pois, estávamos em uma espécie de enseada, a vela se encheu formando uma enorme barriga enquanto subia até a ponta do mastro. Uma vez toda erguida, a retranca girou rapidamente obedecendo o sentido do vento, o que nos permitia que, embora com a vela totalmente no seu devido lugar, a embarcação ainda não se movia.

 Olhei para o meu jovem amigo, ele esboçava uma emoção cada vez mais e mais crescente. Quando perguntei a ele se estava pronto, rapidamente Antônio sacudiu a cabeça afirmativamente como desejando falar: vamos, vamos logo...

 — Preste atenção! – disse a ele incisivamente.

 Nesse momento, comecei a puxar o cabo que trazia a retranca mais próximo a nós. Assim que ela atingiu 90° em relação a casco, o Gaivota, com suas mais de 6 toneladas, literalmente deu um tranco à frente, mesmo dispondo de uma fraquíssima brisa. Ele olhava para um lado, olhava para o outro, olhava para cima, olhava para baixo, olhava para mim e, segurando em dos cabos que sustentam o mastro, pude ver em seus olhos toda a emoção que eu, naquela idade não pude sentir.

 Enquanto saíamos da enseada, fui falando a ele como, mais ou menos era feita a condução de um veleiro como o Gaivota. Digo isso, porque para uma criança que nasceu na beira do Mar, que cresceu andando em barcos e coisa do tipo, ele já possuía uma boa noção sobre navegação. Porém, nossos barcos, nossos veleiros, hoje possuíam um aparato tecnológico que lá, naquele lugar, eles nem se quer imaginavam existir.

 Antônio ouvia tudo atentamente. Eu poderia até mesmo apostar que estava gravando todas essas informações em sua mente, e mais, para o restante da sua vida. Ele olhava para mim, gesticulava afirmativamente enquanto lhe passava informações, olhava para o barco, para o Mar, tudo numa velocidade surpreendente, como se não pudesse perder nenhum, nenhum detalhe que fosse. Mas, o ápice do nosso passei ainda estava por vir e, confesso, eu planejei tudo perfeitamente.

  Assim que deixamos a enseada, quando tivemos vento no lugar da brisa, o Gaivota inclinou consideravelmente, ganhando uma velocidade não comum para uma embarcação daquele tamanho. Percebi imediatamente que o meu jovem amigo ficou, além de impressionado, um tanto quanto apreensivo. Eu estava em pé, com a roda do leme nas mãos. Ele, estava ao meu lado, observando tudo, quando ergui o indicador da mão direita, como que desejando dizer: “olha, preste atenção ao que eu vou fazer”, imediatamente, comecei a aliviar a tensão da retranca, que por sua vez começou a abrir proporcionalmente, enquanto o barco saia daquela posição inclinada, diminuía a velocidade e, portanto, poder-se-ia dizer navegando com mais conforto e segurança.

 Ele gesticulava com a cabeça concordando e, tentando dizer com isso que havia entendido o que eu havia lhe passado. Então, chegou o grande momento.

  — Você pode se aproximar mais um pouco – perguntei eu já preparando minha surpresa.

 Assim que ele se aproximou, com os seus cabelos esvoaçantes, olhou nos meus olhos acreditando que eu iria passar mais algumas lições sobre a navegabilidade do Gaivota, quando eu lhe peço um favor:

   — Antônio, fosse pode me fazer um favor?

   Com ele a apenas alguns centímetros de distância, esperando o que eu lhe pediria, eu disse:

   — Você pode conduzir o barco que eu preciso descer um pouco até a cabine?

   A expressão do seu rosto, o brilho dos seus olhos, eu jamais esquecerei na minha vida. Ele ficou gesticulando que sim, com a cabeça por incontáveis minutos. E, segurando com as duas mãos a roda do leme, olhou nos meus olhos, esboçando um sorriso que, por mais que eu tentasse descrever com palavras eu não conseguiria nunca. Imediatamente eu percebo que lágrimas saiam dos seus olhos e, devido ao vento, caminhavam para trás, terminando em suas orelhas. O Gaivota sabendo o que eu estava fazendo, começou a cavalgar as pequenas ondas, dando ao garoto todo o prazer de ter o barco inteiro ao seu comando.

   Desci até a cabine, eu sabia que ele não faria nenhuma besteira como, por exemplo tombar o veleiro ou coisa assim. Tínhamos um oceano inteiro a nossa frente, não havia recifes ou alguma outra embarcação nas proximidades. Deixei sim ele com o total comando da minha embarcação. Lá dentro, me demorei alguns minutos, só para não parecer que foi de propósito e, assim que voltei ao convés, lá estava ele, com o timão nas mãos, fazendo pequenas manobras somente para sentir a embarcação se mover um pouco para estibordo, um pouco para bombordo.

  Quando me sentei ao seu lado, imediatamente ele me perguntou se poderia continuar. Eu disse que sim, eu estava meio cansado, perguntando a ele se ele poderia fazer esse favor de conduzir mais um pouco o Gaivota...

   Com certeza “absoluta”, o que acabei de fazer, proporcionou mais alegria, mais realização a mim mesmo do que propriamente ao rapaz. Sei, evidentemente que eu o fiz muito, muito feliz e que, eu estava – definitivamente – direcionando todo o seu futuro naquele mágico momento.  

Seu sorriso parecia não caber em sua face. Mais uma vez, eu estava realizando ao garoto, um sonho frustrado que eu carregava comigo. Na verdade, apesar de todo meu amor ao Mar e aos barcos, só quando adulto, apenas depois de muitos anos trabalhando, eu consegui juntar algum um dinheiro para adquirir um pequeno veleiro, usado, da classe laser com cerca de 14 pés, mais parecido com uma banheira, mas que eu pude finalmente viver este prazer.

Ele, no entanto, muito jovem, tinha suas mãos conduzindo um veleiro de quase 40 pés, com tudo de mais moderno que a navegação atual poderia oferecer. Sim. A felicidade que eu podia proporcionar ao rapaz, completava alguns ciclos que ainda faltavam em minha vida.

Não demorou muito para ele, amante da navegação, começar a expor todo seu instinto natural para a coisa. Enquanto navegávamos, eu lhe explicava como utilizar os comandos automáticos das roldanas e travas dos cordames, posicionamento do leme em relação a retranca, e coisas assim. Velejamos por toda aquela manhã e tarde, circundando a pequena ilha por várias vezes. Ao voltarmos a terra, eu percebia nitidamente o cansaço do rapaz com o feito de hoje. Porém, como eu previa, ele já falava que agora, possuía toda a certeza do mundo, do que desejava para sua vida: ter um veleiro, e sair pelo mundo para continuar o seu aprendizado sobre a vida. Todo esse filme passava novamente diante dos meus olhos, cheios d’água, como um antigo vídeo onde eu conseguia entender como nascem os sonhos, os desejos em nossas almas.

Enquanto ainda caminhávamos em direção ao quiosque maior, o novo herói do vilarejo, era fitado por olhares atentos dos outros meninos, que talvez invejosos, puderam ver o rapaz conduzindo minha embarcação.


CAPÍTULO – 26

O meu aprendizado continuava. Todos eles, que brincavam enquanto eu e o rapaz trabalhávamos no Gaivota, poderiam ter se aproximado, assim como fez Antônio. Mas a vontade de aprender, de procurar pelo conhecimento, fez com que apenas quem se dispõem a ele tivesse a recompensa de sua busca. Nada, absolutamente nada cai do céu, de graça, ou acontece por acaso, se não nos dispomos a buscá-lo. É! Definitivamente o meu aprendizado continuava e eu me sentia feliz por isso. É muito gratificante colocar a cabeça no travesseiro à noite e saber, e sentir que eu consegui crescer um pouco, pelo menos um pouquinho mais naquele dia. Crescer com profissional, crescer como pai, como mãe, crescer como amigo, crescer como gente, como ser humano. E, desde que iniciei essa viagem, desde que concordei com o meu coração me pedindo para fazer tudo isso, eu tinha que reconhecer: todos os dias, uns mais outros menos, mas todos os dias eu vinha crescendo mais um pouco.

Depois do jantar, eu precisava caminhar. A praia iluminada pela noite clara, fazia-me esse convite irresistível. Por mais uma vez, eu tinha uma grossa areia massageando meus pés, uma temperatura amena para me deixar confortável e, um vento soprando o meu corpo, levando e trazendo os meus cabelos de um lado para o outro e, desejando me dizer alguma coisa, algo que eu ainda não era capaz de entender. As gaivotas, recolhidas, dessa vez não me faziam companhia. Eu precisava mesmo era ficar só. Só com os meus pensamentos. Eu tinha muito o que refletir sobre todos esses meses desde que sai de Ubatuba. Confesso que até então, não havia uma definição do que de fato, poderia estar acontecendo. As hipóteses se avolumavam uma sobre as outras, sem uma conclusão plausível. Mas, afinal de contas, durante toda minha vida, a certeza parecia passar sempre à alguns metros à minha frente, mas nunca chegando definitivamente.

...Seria a vida assim mesmo?

...A velha teoria do conceptualismo estaria correta, onde na verdade vivemos uma grande ilusão, onde a verdade está exatamente onde desejamos que ela esteja? Ou seja, no fundo cada um acaba criando a sua própria verdade e, consequentemente a sua própria realidade?

...Dessa forma, eu também poderia explicar tudo.

...Sendo a verdade relativa, ela existe exatamente da forma como acreditamos nela. Assim, cada um possui a sua verdade, terminando por forjar o seu próprio mundo, baseado em suas crenças, totalmente independente de uma suposta verdade suprema.

 

Devaneios. Devaneios e mais devaneios. Mais uma vez lá estava eu viajando dentro dos meus pensamentos, buscando no fundo da minha alma, às respostas que tanto procurava. E agora, por mais uma vez, todas as evidências se manifestavam no sentido de que, a verdade absoluta que eu tanto procurava, talvez não existisse mesmo. O que realmente insistia em se mostrar como verdade, era “verdadeiramente” a minha crença, ou seja, a verdade estaria dentro do que cada um realmente acredita o que seja a verdade.

Dentro dessa teoria, eu tentava então explicar todos esses últimos acontecimentos. Tudo isso que eu estava vivendo, de certa forma, foi sempre o que desejei na vida. Essas experiências, essas pessoas que surgiam pela frente, mostravam-se retratos vivos de tudo que eu fui na vida, e de tudo que eu gostaria de ter sido. E vivendo esse momento, eu conseguia uma realização quase que total, fazendo o que mais amava, vivendo da forma que sempre sonhei.

Eu precisava mesmo caminhar. Caminhar sempre foi para mim o sinônimo de pensar. Lembro-me quando fiz o Caminho de Santiago, onde eu andei por aproximadamente 1.000 km e que, esse foi sem dúvida um divisor de águas na minha vida. E, agora, no entanto, depois de caminhar poucas centenas de metros, eu já podia dizer que me sentia um pouco melhor comigo mesmo.

Na volta ao vilarejo, encontro com o velho Anfitrião, outra fonte de puro conhecimento e sabedoria. Ele, preocupado comigo, questiona-me se pretendia partir, uma vez que tinha visto que minha embarcação estava novamente na água.

— Não sei senhor. Ainda me encontro confuso nesse sentido.

— Sinto que você precisa de mais tempo para refletir. Acredito que ainda não é uma boa hora para sua partida. – Afirmava ele, com a nítida impressão de que estava evitando dizer que eu não poderia partir ainda.

E era exatamente esse tipo de situação, essa maneira de falar que me deixava mais confuso ainda, embora, de alguma forma, o meu ímpeto concordava plenamente com ele, mesmo que o meu intelecto não estivesse entendendo nada. De certa forma, era exatamente essa condição que me permitia continuar nadando nessa enorme piscina de dúvidas e ainda assim conviver muito bem com tudo isso.

Por mais que eu ocupasse a minha mente com questões relativas a tudo que eu vinha vivendo desde que aceitei fazer essa viagem, a imagem de Antônio, vez por outra, me tomava de assalto, levando os meus pensamentos a ele e, simultaneamente a minha infância. Cada vez mais, eu não tinha dúvidas de que ele, ele realmente era uma versão, um arquétipo de mim mesmo quando ainda adolescente. E, como depois de adulto e comecei a reconhecer alguns traumas de infância, cheguei até mesmo fazer análise por alguns anos nesse sentido. Mas, sem dúvida nenhuma, como eu havia comprovado na última vez que estive com ele, certamente ainda existiam questões a serem resolvidas. Quais, e como poderiam ser resolvidas, talvez somente o próprio tempo poderia me dizer. 

A noite simplesmente se mostrava perfeita em todos os aspectos possível e imagináveis. No céu, acredito que não havia mais lugar para se quer uma estrela. Ele estava tomado, forrado, superlotado de pontos luminosos azuis, amarelos, outros piscantes e ainda alguns, mais ousados que resolviam fazer um risco no teto negro sobre nossas cabeças. A temperatura, extremamente agradável com uma brisa que não permitia que o corpo se aquecesse, me convidava para continuar caminhando na praia. O cheiro da maresia, mais o incessante bramir do Mar, formavam um conjunto de situações capaz de inebriar qualquer vivente do Universo. Como eu estava de tênis, decidi tirá-los para sentir mais ainda aquele pedaço de natureza que me abraçava, me apertando em seu seio, como um filho amado. Jogando os cabelos para trás, com as duas mãos, não pude deixar de tencionar a nuca, forçando um pouco. Na verdade, eu desejava mesmo sentir um pouco de dor, uma dor que me comprovaria que ainda estava vivo, vivo e grato ao Criador por estar me permitindo esse passeio pelo paraíso.

Desde que eu constituí uma família, em todos os meus momentos de – extremo – prazer e emoção, não consigo deixar de pensar neles, desejando profundamente que pudessem desfrutar de tudo isso comigo. E, naquele exato momento, a lembrança da esposa, das filhas, dos netos e, até mesmo dos genros, se fazia mais do que presentes. Eu juro que era capaz de ver dos dois moleques correndo naquela praia, um jogando água no outro, caindo, levantando, entrando na água, saindo...

Se viver aquele momento era bom, sonhar com a família também não deixava de ser. Esses pensamentos me acompanharam em boa parte da minha caminhada. Com os pés descalços, eu podia sentir a grossa areia, uma areia rica em sedimentos marinhos triturados por anos, acredito que até mesmo séculos. Esse contato, com a areia molhada, molhada com a água salgada, aumentava e muito a condutividade, o que me fazia sentir que o meu corpo estava mesmo descarregando um pouco de eletricidade estática, o que me deixava, gradativamente, mais e mais com essa sensação de bem-estar que eu estava sentindo.

Olhando para o horizonte, onde o Céu se unia ao Mar, eu tinha a nítida impressão de que o mundo realmente era somente isso: Céu e Mar e, se não fosse, para mim, naquele momento, era assim que o Universo se resumia. Eu seria capaz de jurar naquele momento, eu caminharia pela aquela praia, para o resto da minha vida.

Depois de quase circundar a pequena ilha, ao longe vejo duas pequenas luzes, uma branca e uma vermelha, balançando como um antigo diapasão. Naquele momento, acho que eu conseguia até ouvir o tic-tac marcando o tempo, o tempo que eu ainda tinha nas minhas mãos, mesmo com todas as dúvidas que literalmente cascateavam com os meus pensamentos. O mastro do Gaivota me chamava. No escuro Mar, lá sozinho, ele pedia que eu retornasse, o meu Amigo de tantas jornadas me chamava. 

Ao subir a bordo, a mesma emoção sentida na primeira vez que fiz isso, sempre me lembrava todo o trabalho e prazer que tive em restaurar cada centímetro daquela embarcação e a relação que acabou nascendo entre nós dois. Sentei-me à mesa dos mapas, a mesma mesa que usava para escrever e para estudar e, por um longo momento, me mantive imóvel, apenas olhando tudo a minha volta, os rádios, o aparelho de GPS, o quadro de nós, a maquete do próprio Gaivota que eu mesmo fiz em madeira, às garrafas de rum e uísque, encaixadas na pequena estante, a mesa de centro com os dois sofás em volta, o meu quarto na proa, a porta do banheiro, o imponente tubo de alumínio do mastro no centro, a cozinha com o seu fogão balançando de forma contrária ao restante da embarcação, a pequena geladeira, os armários...

Não sei porque, mas esse clima de nostalgia me tomou de assalto e por completo. Embora eu estivesse habituado a dormir cedo, entre 21hs30mim e às 22hs, naquela noite eu não tinha sono. O mais incrível é que eu não queria dormir. No fundo, no fundo mesmo, eu desejava viver mais e mais a vida, eu não desejava perder tempo dormindo. Sinceramente, eu não sei o que estava acontecendo comigo, quando secretamente, o meu coração começou a fazer planos, planos para o dia seguinte. Ele desejava que eu voltasse a velejar com Antônio, na verdade, eu precisava mesmo era conversar mais com ele, entende-lo melhor, pois, se eu conseguisse isso, estaria – indiretamente – conhecendo um pouco mais de mim mesmo. E assim, motivado por essa perspectiva, tomei um delicioso banco com a água aquecida pelo Sol e, acalentado nos braços da Mãe Natureza, por mais uma vez entreguei o meu corpo, a minha alma a Ela.


CAPÍTULO – 27

Na manhã seguinte, ainda com os olhos fechado, lembrei-me do que havia planejado na noite anterior, dando um verdadeiro salto da cama. Subi ao convés, e pulei na água dando um mergulho e sentindo o frescor da água logo cedo. Sem premeditar, em vez de correr, como faço quase todas as manhãs, comecei a nadar, não para a praia, mas no sentido contrário. O Mar estava tão calmo e receptivo, o Mar reduzia tanto a gravidade do meu corpo que acho que eu seria capaz de nadar, naquele ritmo cadenciado, por toda manhã se fosse necessário. Mas, voltei ao Gaivota, tomei mais um banho, agora de água doce, me troquei e peguei o pequeno bote inflável e remei até a praia.

Ao desembarcar na areia, uma figura conhecida me aguardava, como se nós tivéssemos feito algum plano. O jovem Antônio me esperava sentado na areia, e me saldou assim que me viu, se colocando em pé imediatamente. Não sei explicar o que aconteceu, mas fui tomado pelo ímpeto de quer conversar com a sua avó, antes de sairmos ao Mar novamente. Eu desejava, além de pedir a sua autorização para isso, eu queria também falar com ela, a sós, para saber mais do menino, do menino que eu me via quando criança.

Dona Filomena, um ser iluminado capaz de encantar qualquer um que lhe dirigia a palavra. Com seus quase 60 anos, também mostrava todo vigor físico de todos que viviam naquela ilha. Pedi a ela a gentileza de me ceder alguns minutos para falarmos do seu neto, o que foi prontamente atendido. Ela preparou um suco de limão delicioso, quando nos sentamos na varanda de seu chalezinho. Antônio, percebendo que a conversa era para adultos, pegou um livro e foi sentar-se debaixo de um coqueiro mais próximo a praia.

Sinceramente, eu tinha tanto a perguntar que não sabia por onde começar. Talvez percebendo o meu desconforto para iniciarmos nossa conversa, ela, com toda sua sabedoria, tomou a iniciativa:

 — O meu neto, desde que o senhor chegou, não fala de outra coisa. Eu não sei o que ele viu no senhor que ficou completamente hipnotizado. – disse ela de forma meiga e simples.

— Eu também! – respondi sendo sincero. – Acho que temos a mesma sintonia.

Era evidente que eu não podia dizer o que realmente pensava sobre o garoto. Dizer, afirmar para alguém que eu estava diante de mim mesmo quando criança, eu certamente correria um seríssimo risco de ser considerado louco, mesmo estando onde estava (pelo menos é o que eu achava).

— Ele falou que quer ser como o senhor é, quando crescer.

Eu sabia disso. E acreditava mesmo que seria. Em algum paralelo dimensional, em algum elo do tempo/espaço, mas ele seria, ou melhor, nós éramos a mesma pessoa.

— Eu percebo que ele é muito diferente dos outros meninos, que vivem correndo, brincando o dia inteiro. – eu disse já entrando um pouco mais fundo, começando a destacar uma de nossas características, pois eu também era exatamente assim quando criança.

— Sim! – respondeu ela – Ele passa quase que o dia inteiro lendo ou desenhando. Ele brinca muito pouco com os outros garotos. Na verdade, acho mesmo que ele só faz isso para não ser desagradável com os demais, porquê, se dependesse da vontade dele, eu só ficaria estudando. Agora, deu de escrever. Eu já vi ele copiar um livro inteiro, escrevendo a mão. O senhor acha isso uma atitude normal?

Eu arregalei os olhos diante dessa informação. Eu perdi completamente o controle quando ouvi isso, pois, várias e várias vezes na minha infância eu havia feito isso. Muitos, muitos livros eu copie e, às vezes, faço isso até hoje, pelo prazer de escrever com minhas canetas tinteiro, pelo conhecimento que consigo absorver escrevendo, copiando os livros, que é um conhecimento diferente de quem apenas lê. Por mais uma vez eu encontrava semelhanças absurdas entre nós dois.

— Sinceramente, dona Filomena, eu não vejo nenhum absurdo nessa atitude. E se eu falar para a senhora que eu também fazia isso na minha infância? E mais, às vezes eu faço isso até hoje!

Ela parou. Ela ficou me olhando com os olhos entreabertos, como se estivesse fazendo uma profunda análise do que eu havia dito, ou quem sabe ela estava enxergando alguma coisa em mim, alguma coisa que os olhos em sua mais fria e costumeira atividade não conseguem ver. Eu senti isso! Perfeitamente ela estava vendo a minha áurea, a minha alma ou qualquer outra coisa que eu desconhecia completamente.

Após um bom período assim, ela começou a gesticular levemente com a cabeça, parecendo ter visto alguma coisa e concordando com o que vira, enquanto falava:

— Agora eu estou começando a entender! Agora eu posso ver o porquê ele ficou tão fascinado com o senhor. – e continuou meneando sem parar.

Diante sua postura, eu sabia que ela havia visto, enxergado ou sei lá, sentido alguma coisa sobre eu e o jovem Antônio, sobre a nossa ligação. Eu desejava muito saber mais sobre tudo isso, entender o que realmente estava acontecendo e ver, até onde me levaria essa situação.

Embora eu estivesse “alucinado” para saber mais, olhando para o semblante daquela criatura, a sua paz, a sua divindade acabava – de alguma forma – me contagiando. De alguma forma ela me devolvia a serenidade no meio do turbilhão que eu normalmente condizia a minha mente. Assim, decidi não a questionar, a não ser, educadamente, colocar a ela se ela poderia me dizer alguma coisa nesse sentido e mais, caso não pudesse, eu entenderia perfeitamente. Disse isso para deixa-la confortável diante de qualquer alternativa.

Ela esboçou um leve sorriso, gesticulando levemente com a cabeça dizendo:

— Não se trata de poder dizer ou não. A questão é que, alguns conhecimentos, fazem parte integrante do seu meio, do seu plano. Você não deve falar em alemão, dentro de uma sala de aula onde ingleses estudam o espanhol. Cada conhecimento pertence ao seu plano. Quando tentamos infringir essas regras, jogamos, como se diz no dito popular, “pérolas aos porcos”. Se não cabe, se não pertence aquele plano, torna-se completamente inútil a informação.

Enquanto ela falava, eu meneava a cabeça concordando plenamente. Embora eu não tivesse esse conhecimento, ou melhor, embora, o meu plano não permitisse esse conhecimento, eu me tornava cada vez mais e mais capaz de entender a situação e, o mais importante, entender e aceitar plenamente essa condição.

— Mas, – continuou ela – nada, absolutamente nada impede de vocês conviverem, de vocês trocarem ideias, na verdade, vocês estão se ajudando mutuamente. A dimensão que os separa não se restringe a lugar nem tempo. Assim, vocês dois podem coexistir simultaneamente e separadamente ao mesmo tempo.

Depois que ela disse tudo isso, tombou sua cabeça para o outro lado e continuou me olhando da mesma forma doce e tranquila como tinha feito no início do nosso diálogo. Sinceramente, eu não quis mais importuná-la. Partilhei do seu silêncio enquanto tomava o restante da minha limonada olhando o Mar com toda sua força, com todo o seu poder, com toda sua magnitude, quando sem saber o porquê, quando sem premeditar absolutamente nada, dentro do meu peito, no mais profundo recôndito da minha alma, sorrateiramente surgia um sentimento de despedida, um sentimento de retorno, uma saudade do lar, da família, dos amigos.

Mas, antes de me despedir da agradável senhora, pedi a ela permissão para navegar com o seu neto uma última vez. Eu já estava dizendo “última vez”, porquê o sentimento de partida, a cada novo segundo crescia mais e mais.  

Ela concordou, mas pediu que eu não comentasse nada do que falamos com o garoto. Certamente, se para um adulto tudo isso era de difícil assimilação, de difícil aceitação, quem dera para uma criança. Disse-lhe que sairíamos no dia seguinte e aproveitei para agradecer o suco e os lanches que ela gentilmente havia preparado para nós, no nosso último passeio. Perguntei a ela se desejava nos acompanhar, convite prontamente recusado sobre o pretexto de que nós dois, eu e Antônio, tínhamos muito o que conversar. Agradecendo mais uma vez, me despedi dando-lhe um carinhoso abraço, um abraço que me permitiu sentir mais um pouco da sua energia.

Assim que comecei a caminhar pela praia, Antônio me viu e correu ao meu encontro. Quando o convidei para navegarmos no dia seguinte, sua expressão de alegria provocou um brilho nos seus olhos que me encheram de emoção. Combinamos o horário e, desarrumando mais ainda os seus cabelos com a minha mão, nos despedimos. Eu, por mim, gostaria de leva-lo comigo. Ele poderia ser muito bem o filho homem que eu não tive. Poderíamos viver navegando, mergulhando... confesso que acabei me entregando a esse devaneio por algumas horas, até que finalmente acabei “caindo na real” e deduzindo que isso seria simplesmente – impossível. Eu não tinha o conhecimento suficiente para poder dizer onde eu estava, mas eu sabia – de alguma forma – que eu não pertencia aquele lugar. Sendo assim, eu não poderia levar nada daquele lugar comigo, a não ser às lembranças e o conhecimento. Novamente, pela segunda vez em seguida, eu estava agindo com o sentimento de partida, ou de regresso, eu não sabia ainda direito. 

Embora ainda estivéssemos no período da manhã, decidi voltar para o Gaivota. Mesmo sem saber ao certo que faria lá a essa hora do dia, o aconchego do meu lar parecia me chamar. Remando de volta, passei por estibordo, quando o remendo feito ainda na vinda, mais uma vez se destacou aos meus olhos. O Gaivota era uma embarcação tão cuidada e perfeita, que qualquer coisa que fugisse a isso, se destacava terrivelmente. De certo que eu faria o merecido reparo, assim que eu retornasse. Por mais uma vez, eu me peguei, agora pela terceira vez, pensando, agindo como se o meu retorno fosse líquido e certo.

A bordo, tomei um delicioso banho e mudei a roupa. Próximo a hora do almoço, preparei um prato rápido e me alimentei novamente contemplando a minha embarcação por dentro, e toda sua organização, que sempre fazia questão de manter. Mesmo sendo taxado de metódico pelos familiares e amigos, eu não me importava com nada disso. Eu me sentia bem assim e isso, não me prejudicava, então, por que não?

Após a refeição fui acometido de um sono profundo. Eu desejava escrever, chegando até mesmo a ligar o meu notebook, mas as minhas pálpebras começaram a ficar cada vez mais e mais pesadas até que eu percebi que, se não fosse deitar um pouco, pelo menos um pouco, eu cairia desmaiado em sono profundo, há qualquer momento. Dormindo, ingressei no mundo dos sonhos.


CAPÍTULO – 28

...Eu estava na rua, caminhando com outras pessoas. Às vezes eu conversava com uma, com outra. Eu era capaz de sentir uma brisa, ou melhor, um vento que soprava o meu corpo esvoaçando os meus cabelos de tão forte que as vezes era. Num determinado momento, eu senti que conseguia caminhar sem ter os meus pés no chão. Sim, eu estava levitando, no meio da rua, ao lado de outras pessoas. Para chamar a atenção delas, eu chegava até a dobrar as pernas, para que todos pudessem ver que eu não estava tocando o chão...

...Eu estava perplexo com o que eu estava fazendo, mas para as outras pessoas, isso não significava nada. Confesso que eu não entendia isso. Num determinado momento, eu estava dirigindo um carro que já tive no passado, um esportivo que eu gostava muito, porém, uma luz muito forte, não me deixava enxergar nada, absolutamente nada à minha frente. Mesmo assim, mesmo consciente de que eu corria um risco altíssimo, em continuava dirigindo, completamente às cegas. Confesso que fazia isso sentindo muita apreensão, mas continuava fazendo...

...Todo o cenário se modificou e depois da luz, do carro e de, literalmente voar, eu via a minha família toda, reunida, como se estivessem me aguardando. Minha filha mais velha, Milena, tinha lágrimas nos olhos, enquanto às demais estavam paradas, quase que estáticas...

...Nesse momento, eu sabia que estava sonhando, mas por alguma razão que eu ainda desconheço, eu continuava sonhando, quando, para minha surpresa eu me questionei se elas estavam tristes por que eu havia morrido...

De súbito, sou desperto desse sonho estranho, como se desejando mesmo sair dele, acordar para uma outra realidade mais agradável. Levantei-me, e fui para o computador escrever. Lembro-me que fiquei escrevendo até que a luz natural começou a se despedir daquele dia, obrigando-me a acender a luz da cabine. Olhei a minha volta. O interior do Gaivota se modificava ao ser visto pela luz artificial. Como seu interior era todo em madeira de Mogno, o tom avermelhado realçava mais, deixando o ambiente mais sóbrio e conciso. 

Meu estomago me lembrou que eu precisava comer. Como eu ainda tinha frutas a bordo, nada melhor do que fazer uma boa salada e assim começar a terminar aquele dia de muita reflexão em todos os sentidos, pois, na manhã seguinte, eu tinha novamente um importante compromisso, um compromisso comigo mesmo.

Não sei explicar o porquê, mas não tive uma boa noite de sono. Talvez a expectativa de descobrir mais alguns traumas que eu ainda carregava inconscientemente, ou mesmo apenas entender alguns aspectos nebulosos da minha vida, não sei, só sei que demorei muito para pegar no sono e, quando o fiz, fiquei acordando a todo instante, aterrorizado com os pensamentos que surgiam, me assustando e depois desaparecendo como do nada. Só sei que olhei para a escotilha do meu lado esquerdo e vi que lá fora, o negro da noite tinha nos deixado, cedendo a vez para luz. Embora ainda embriagado de sono, eu tinha um compromisso, aliás, um importante compromisso. Levantei rapidamente, vesti uma bermuda e uma camiseta e, sem mesmo tomar o meu banho matinal, sem mesmo fazer o meu desjejum, lá estava eu no bote inflável remando rumo a praia.

Mesmo antes de chegar, ainda longe, vi uma pessoa sentada na areia, segurando os joelhos. Antônio deveria estar ali há muito tempo. Se eu estava ansioso, ele deveria estar muito mais do que eu. Ele, jovem, com uma vida inteira pela frente, tentava se direcionar para fazer aquilo que amava e quem sabe, conseguir ganhar o seu sustento com isso. Quanto a mim, eu precisava de respostas, eu precisava entender certos aspectos que poderiam – vamos dizer assim – fechar o ciclo de compreensão da minha própria vida. Eu via essa situação com dois extremos, um no início da minha vida, e o outro no final. Cada qual buscando o seu melhor caminho e, ambos sendo um só, em planos diferentes.

Assim que fui chegando, ele já veio ao meu encontro segurando uma sacola que provavelmente teria lanches para o nosso dia de passeio. Nem foi preciso que eu descesse do bote. Assim que ele subiu, comecei a remar de volta para o Gaivota que nos aguardava ansioso também para mais um passeio. Subimos a bordo. Imediatamente Antônio me perguntou se eu desejava que ele puxasse as âncoras, de alguma modo ele já sabia todo o procedimento para iniciarmos a nossa navegação. Com a minha concordância, ele primeiro puxou a que estava a estibordo, devido a correnteza da maré que estava a bombordo. Enquanto eu o observava, me questionei se ele realmente sabia o que estava fazendo ou fora uma decisão casual e correta. Eu não quis levantar essa questão com ele, decidi continuar observando-o. Conforme ele foi puxando a outra âncora, e o Gaivota sentiu-se livre, subi a vela mestra, começando a puxar a retranca na direção do leme. A vela se encheu com a pouca brisa da enseada, mas suficiente para colocar a embarcação à frente, levemente inclinado para bombordo. Ainda em pé no timão, eu sabia que ele desejava conduzir o Gaivota novamente, não se fazia necessário um pedido formal, aliás, não se fazia necessário nenhum comentário para saber o que ele desejava e o que não desejava fazer. Eu o entendia tão bem que antes de pensar em algo, esse algo já era do meu conhecimento.

Com o vento tocando o meu corpo, ficando progressivamente mais e mais forte, conforme deixávamos aquela enseada, lembrei-me de uma das passagens Bíblicas onde narra que Deus, nos conhece tão bem, que mesmo antes de pensarmos no que desejamos, ele já sabe do que se trata. Assim, quando rezamos, quando pedimos, antes mesmo de pedir Ele já conhece nossas intenções. E era exatamente assim que eu estava me sentindo em relação aquele garoto. Eu me via nele, assim eu conhecia os seus pensamentos. Seria assim também com relação ao nosso Criador? Será que Ele se vê em nós, Ele personificado no homem, sabe exatamente até o que esse mesmo homem sente e pensa?

Sinceramente encontrei um sentido profundo naquela breve reflexão. Esse posicionamento, viria totalmente de encontro com a minha teoria de que Deus não está lá em cima, sozinho, nos observando, Ele está sim, dividido, multiplicado e dentro de cada objeto de sua criação, vivendo a minha vida junto comigo, sabendo exatamente qual será o meu próximo passo, sabendo exatamente o que se passa em minha mente, quais são os meus pensamentos, os meus desejos, às minhas ansiedades, os meus medos e, porque não, também às minhas alegrias. Eu ainda não havia nem tomado o meu café da manhã e já estava com esse nível de reflexão. Seguramente o dia prometia e muito naquele memorável passeio.

Perguntei ao rapaz se ele já havia tomado o seu café da manhã, o que respondeu com um expressivo aceno de cabeça. Como estávamos com Mar aberto à frente, pedi a ele que assumisse o timão, para que eu pudesse fazer meu desjejum, porém, antes, por precaução, liguei o sonar preso a bolina, para evitarmos choques com algum arrecife submerso. Ele ficou observando e prestando muita atenção no que eu fazia. E eu, eu sabia que ele nem fazia ideia do que eu havia feito. Decidi explicar-lhe, mas para isso, ele teria que entender primeiro como funcionava o equipamento. Assim que comecei, ele foi ficando cada vez mais e mais maravilhado com as informações e com a possibilidade de um aparelho, daquele tamanho, podia enxergar algo mais a frente e nos avisar com um bipe sonoro e, imediatamente nos mostrar no monitor o que se tratava. Deixei-o no leme. De dentro da cabine, fiquei observando-o discretamente. Sua postura, a maneira como olhava o alto do mastro para ver o instrumento que indica a posição do vento, imediatamente voltava sua atenção a retranca e em seguida para o 1clinômetro, bem à sua frente junto a bússola, ou seja, ele fazia exatamente tudo como eu, como se fosse eu mesmo navegando.

Gesticulando um não com a cabeça, voltei a minha atenção ao que eu fazia, cortando as frutas que eu havia conseguido no vilarejo e abrindo a minha última caixa de aveia da minha dispensa.

1Clinômetro: aparelho usado para medir o grau de inclinação lateral de uma embarcação.

Sentado à mesa que fica entre os dois sofás, eu ainda podia vê-lo, vê-lo fazendo aquilo que eu acreditava que ele faria para o restante da sua vida e que, de alguma forma, eu estava contribuindo na construção desse direcionamento. Comi calma e pacientemente. Quando voltei ao convés, minhas lentes dos óculos escureceram imediatamente, me ajudando a enxergar melhor diante de tanta luz que iluminava aquele maravilhoso dia. O vento era um presente tão especial da Mãe Natureza, que ele parecia soprar conforme o nosso desejo de navegar. Um vento agradável, um vento que trazia o cheiro do Mar e toda poesia da vida. Enquanto o Gaivota subia e descia nas pequenas ondulações, algumas borrifadas de água, nos acariciavam, como nos dando às boas-vindas. Tudo perfeito, aliás, eu diria até mesmo, mais do que perfeito.

Até que o vento, aquele mesmo vento, de repente, me trouxe algo imprescindível para aquele momento: ele trouxe a saudade. Eu estava em pé, segurando em um 1cordame, sentindo os meus cabelos voando com o vento, quando uma saudade brutal bateu forte em meu peito. Nesses últimos dias, eu já vinha alimentando esse sentimento, mesmo que inconscientemente. Mas, dessa vez, naquele momento, eu pude senti-lo mais forte do que nunca. Em algum lugar, do outro lado daquele oceano, eu tinha uma família, eu tinha amigos, eu tinha uma vida que ainda precisava ser vivida. Esse sentimento me tocou com uma força que não me lembro, ter sentido algo parecido antes.

Depois de algum tempo, tentando assimilar tudo que eu estava vivenciando naquele dia, pude constatar a quantidade de informações, de conhecimento e de reflexões que aquele passeio, junto ao rapaz estava me proporcionando. Por um momento olhei para cima e, sentindo a grandeza do céu e do Mar, agradeci em silêncio a Deus por tudo que eu estava vivendo, por tudo que eu estava experimentando, por tudo que eu estava crescendo.

1Cordame: cabo em fibra ou metal servem para manter a mastreação ou manobrar as velas.

Navegamos assim por quase todo aquele dia. Quando o Astro Rei começou a alaranjar no extremo Oeste, já estávamos ancorando novamente. Permiti que Antônio conduzisse o Gaivota por quase todo o dia. Eu senti que ele estava satisfeito, satisfeito, porém, cansado, muito casado. Antes de descermos ao bote para ir até a praia, pedi a ele um tempo, eu desejava tomar um bom banho e trocar de roupa. E, assim o fiz. Voltamos para o vilarejo. Antônio, foi para sua casa, com certeza dormiria mais cedo hoje, dormiria feliz e realizado, dormiria o sono dos anjos, enquanto eu, desejava comer e caminhar um pouco pela praia, enquanto contemplava mais uma maravilhosa transição do dia cedendo lugar a noite.

Voltei para o Gaivota. Resolvi escrever um pouco. Ainda extremamente reflexivo, escrever parecia uma boa maneira de tentar clarear um pouco mais minhas ideias. Já com meu notebook sobre a mesa de navegação, eu relatava sobre minhas últimas impressões, sobre tudo que eu vinha vivendo e, principalmente, sobre esse dia onde eu tinha muito, muito mesmo que relatar. Vez por outra, minha atenção era desviada pela imagem dos rádios, do telefone por satélite, que permaneciam desligados por vários dias desde que cheguei naquele lugar. Ainda tentando manter a concentração no que fazia, aqueles aparelhos definitivamente não me permitiam. Até que, acabei cedendo.

Liguei o rádio. E, para o meu espanto, boletins meteorológicos estavam sendo transmitidos nos seus vários idiomas. Fiquei estarrecido! Liguei o telefone. Por mais uma vez em vão, tentei insistentemente um contato com meus familiares, mas acredito que ainda não era o momento de falar com eles. Acionei o GPS e este, prontamente mostrou minha localização e tudo o que havia em minha volta. Meu assombro aumentou. Como e por que, de uma hora para outra tudo voltava a funcionar. Animado e perplexo, tentei novamente contato com a minha família, mas mais uma vez sem sucesso. Voltei a escrever. Percebi de forma nítida, que a saudade me incomodava. Mesmo assim, continuei escrevendo, pois, agora sim eu tinha muito o que escrever, finalmente às coisas estava voltando a sua normalidade. Dentro dessa nova perspectiva, outra enxurrada de perguntas me tomava de assalto.

— Tudo isso poderia ser um indicativo para que eu retornasse?

— Afinal, eu estava tendo uma saudade muito grande da minha família, como se isso também estivesse tentando me dizer alguma coisa nesse sentido.

— Seria mesmo o momento de navegar para o Sul? Mas, e tudo de estranho, de inexplicável que eu estava vivendo, como ficaria tudo isso?

Entre um gole de rum e meu cachimbo, eu entrava pela madrugada. Pela escotilha à estibordo, eu podia ver que a aldeia dormia tranquila. Até que para minha surpresa, o telefone se manifesta:


CAPÍTULO – 29

 — Pai, você precisa parar de assustar a todos nós. Há quase um mês que não temos notícias.

Minha filha Milena, me fala do outro lado. Imediatamente me senti feliz, aliviado por estar em contato com minha família. Tomado por uma emoção descabida, acredito ter falado coisas desconexas, não sei, só sei que fiquei muito, muito feliz. Depois de saber que todos estavam bem, ela, expressando um tom nervoso, mostrava toda sua preocupação comigo.

Perdi completamente o sentido. Fiquei mudo, estático, sem conseguir esboçar nenhuma reação. Essa era a prova mais contundente de que, definitivamente eu estava vivo. Conforme fui me acalmando, pedi desculpas, tentando explicar que tive problemas com o equipamento, mas que estava tudo bem, dizendo que em breve eu estaria de volta. Perguntei como estavam e me despedi enviando beijos a todos, prometendo estar mais em contato com eles. Caso eu não o fizesse, por algum motivo técnico, que eles tentassem me ligar também.

De certa forma, essa não era a primeira vez que eu deixava de manter contato. Em minhas muitas viagens, já havia ocorrido situações semelhantes, mas o longo período de silêncio desta vez, foi o que as assustou mais.

Voltei ao notebook. Senti que precisava escrever mais buscando entender melhor toda essa situação, uma vez que agora eu acabara de ter a confirmação quanto a minha principal dúvida. Sim! Eu estava vivo. Confesso que mesmo sendo tarde, perdi completamente a vontade de dormir. Em minha mente, mesmo que já – de certa forma – habituada aos fatos estranhos que vinham acontecendo desde que decidi fazer essa viagem, agora algo parecia determinante.

Primeiro pensei sobre a possibilidade de estar em contato com seres de outros sistemas, devido as manchas escuras, enormes, velozes, que circundaram sobre o Gaivota durante a forte neblina. Depois realmente acreditei que poderia estar morto, sendo preparado, por uma entidade mais evoluída, ao aceitar esse fato, como o velho Mestre que se manifestava em minha própria pessoa, com mais idade do que eu. Assim que cheguei a esta pequena ilha, desfalecido, eu fora recebido e tratado como alguém que – definitivamente – estava entrando no reino dos céus. Conheci um jovem que, nada mais nada menos se mostrava ser eu mesmo, durante a minha infância. Levantei hipóteses e mais hipóteses com relação ao conceptualismo e suas influências que me acompanharam durante toda a minha vida. Tudo isso em quase 3 meses que estou no Mar, e agora minha filha, me liga mostrando definitivamente que estou vivo, arremetendo assim, qualquer outra possibilidade até então levantada, pois, ninguém que está morto, fala com a filha através da telefonia por satélite.

Joguei-me no pequeno sofá. Levei as duas mãos à cabeça, gesticulando um enorme não. Definitivamente eu não entendia mais nada. Era só me colocar em uma determinada linha de raciocínio, na tentativa de entender o que estava acontecendo, que logo em seguida uma nova situação aparecia, destruindo por completo tudo que vinha sendo construído.  

Desliguei o pequeno computador. Pelo menos momentaneamente eu não possuía condições de manter qualquer raciocínio lógico que fosse. Pensei em descer até a praia, procurar por nosso Anfitrião e com isso, tentar esclarecer de uma vez por todas, todos esses mistérios. Mas, assim que subi ao convés, a madrugada avançava firme em seu rotineiro curso. A aldeia e todos que lá habitavam, deveriam estar entregues ao mundo dos sonhos. Aliás, o que eu também deveria estar fazendo.

Voltei para dentro da cabine, senti que a luz estava mais ofuscada, como que indicando que o nível das baterias do Gaivota pudesse estar baixo. Assim que olhei os instrumentos, se confirmava minha suspeita.

Percebi que eu estava sentindo fome. Um tipo de fome que eu não sentia há muito tempo. Olhei para as bússolas. Estas, perfeitamente mostram estarem operantes sem nenhum resquício de mal funcionamento. Notei que os rádios continuam transmitindo os boletins meteorológicos sem nenhuma interferência. O sistema de telefonia por satélite ainda há pouco, permitiu-me falar com minha filha, o GPS continuava funcionando normalmente, embora mostrasse perfeitamente onde eu estava, ele não indicava nenhuma ilha no local, como se eu estivesse no meio do oceano, apenas e simplesmente sobre às suas águas, a muitas milhas náuticas de algum pedaço de terra firme. Novamente eu estava usando os meus óculos e, realmente percebi que voltava a precisar deles. Ou seja, tudo parecia ter voltado ao normal, de um instante para o outro.

Mesmo que eu ainda me encontrasse sem uma definição capaz de explicar racionalmente tudo que aconteceu nessa viagem, um fato era certo, tudo parecia voltar a sua normalidade. Em um instante como esse, nada melhor que tomar algumas doses de rum, acender meu cachimbo, e dar tempo ao tempo. Com certeza, se eu persistisse mais nessa busca por respostas, perderia de vez o equilíbrio racional que ainda sustentava.

Não sei precisar por quanto tempo ainda permaneci acordado, bebendo, fumando, pensando em tudo, até que acabei desmaiando de sono.


CAPÍTULO – 30

A única coisa de que me lembro é que acordei, com o barulho de alguns garotos nadando envolta do Gaivota. Sai até o convés. Eles se divertiam como nunca, brincando, mergulhando, passando por baixo da embarcação. Sem dúvida, apesar da minha dura noite, o dia se mostrava lindo. Pela posição do Sol, eu acreditava ser umas 08hs30min horas aproximadamente. Como eu estava apenas de bermuda, não resisti ao ímpeto de pular na água, para o delírio dos garotos. Aquele mergulho gelado, o choque térmico, poderia despertar minha mente mais do que nunca para naquele dia em especial. E eu, precisava resolver muitas questões.

Nadei na companhia de meus pequenos amigos até a praia. Assim que comecei a caminhar, a visão da pequena cachoeira me convidou para mais um banho. Mais um banho que dessa vez certamente seria com águas mais frias ainda. Sentei-me sob a água que caia forte em minhas costas, sobre a minha cabeça. Era tudo o que eu mais precisava para decidir o que fazer. Depois de alguns minutos, já refeito, fiz um rápido desjejum que ficava servido a todos no galpão principal, e definitivamente fui procurar o velho Anfitrião.

Conte-lhe praticamente tudo que ocorrera comigo desde o início daquela viagem, até finalmente a ligação que recebera da minha filha, na noite anterior. Ele pacientemente ouvia e, acima de tudo observava-me com uma atenção toda especial. Quando terminei, pedi seu conselho, sobre como proceder, o que fazer agora. O velho esboçou um pequeno sorriso e segurando a minha mão, começou a falar:

Meu filho, você pôde desfrutar de uma experiência que poucos mortais tiveram a oportunidade em suas vidas. Em toda minha existência, pouquíssimas vezes pude presenciar um fato como este. Mas eles existem. Você é a prova mais concreta de tudo isso.

— Sinceramente, todo o conhecimento que me é permitido neste plano, não é suficiente para te explicar o porquê você precisou vivenciar essa experiência. Um detalhe, no entanto, é muito claro para mim: já é hora de você partir. Não para continuar adiante com essa tua viagem, mas sim, para retornar ao seio da tua família, pois ela, ainda precisa de você. Acredito que essa viagem, já lhe proporcionou tudo o que você precisava por este momento.

No fundo, eu sentia que meu coração – mesmo sem uma compreensão – concordava plenamente com essas colocações. Desde que falei com minha filha, uma saudade absurda tinha se intensificado mais ainda em minha alma, desejando controlar os meus passos. Eu me sentia totalmente satisfeito com tudo o que essa viagem havia me proporcionado. E mais, eu sabia que ainda para voltar, eu precisaria, seguramente, de pelo menos uns 30 dias navegando quase que ininterruptamente. Durante esses longos dias de extrema solidão, eu teria tempo mais do que suficiente, para pensar, analisar melhor tudo que eu vivi nesses quase 3 meses.  

Ainda segurando a sua mão, a mesma mão que dias atrás havia me curado, agradeci profundamente.

Agora então, era hora de preparativos. Eu não pretendia parar mais, assim que levantasse âncora. Para isso, o Gaivota teria que ser abastecido de tudo que pudesse garantir esse retorno tranquilo e seguro. Dessa vez, no entanto, eu sentia ser necessário traçar detalhadamente uma rota, determinando os locais de paradas, onde eu apenas dormiria um pouco, como também desviando da rota dos navios mercantes, que constantemente cruzam o Atlântico.

Além do mais, provisões teriam que ser embarcadas. Uma revisão mais detalhada em todo o sistema de navegação precisaria ser feita, ou seja, tudo aquilo que não fiz para chegar até onde eu me encontrava.

Já se aproximava da hora do almoço. Meu corpo, agora mortal, mais mortal do que nunca, necessitava repor suas energias. Caminhando para o galpão maior, onde seria servido o almoço, encontro com o casal de franceses, caminhando de mãos dadas. Confesso que a saudade de minha esposa marcou forte presença naquele momento. Como eu desejei de tê-la junto comigo ali também.

Percebi que os franceses não iriam almoçar, passaram direto em frente ao galpão. Talvez, pensei comigo mesmo, eles não precisassem mais desse tipo de alimento.   

A tarde se mostrava presente. Decidi começar meus preparativos com a rota a ser traçada. Enquanto caminhava para a praia, encontrei-me com Antônio. O jovem se mostrava ainda encantado como o meu barco.

Então, com todos os instrumentos voltando a funcionar perfeitamente, não foi difícil saber com extrema exatidão onde eu estava. De certo que aquela ilha, não constava nos mapas, muito menos nas cartas. Mas, o GPS era capaz de indicar através de um ponto no meio do oceano, onde nos encontrávamos. É evidente que agora, agora eu era capaz de entender tudo isso. Com certeza, se no futuro eu ou qualquer outra pessoa tentasse encontrar novamente aquela mesma ilha, de forma proposital, ela simplesmente não estaria mais lá. Como eu previa, até que eu pudesse estar de volta à minha família, muitas dúvidas seriam esclarecidas, cada uma em seu devido tempo.

Apesar de Antônio mostrar alguma tristeza com a minha partida, logo ele se entusiasmava em me ajudar com os preparativos. Vê-lo trabalhando, eu era capaz de ver exatamente o que ele faria no futuro, assim que possuísse a sua embarcação. Eu não entendia esses detalhes de dimensões perfeitamente, mas sabia que aquele garoto era eu. E que no fundo, tudo que eu pudesse ensinar a ele agora, eu sentia que me seria extremamente útil em um futuro. Não! Definitivamente eu não era capaz de entender tudo isso, mas vibrava dentro de mim essa certeza. Um sentido maior estava por trás de tudo e que, justificava-o plenamente.  

Não foram necessários mais do que três dias, para eu estar preparado para partir. Depois que decidi voltar, eu já havia me comunicado com a minha família várias vezes. De agora em diante, essa comunicação era pelo menos uma vez ao dia. Até que numa linda manhã, com o Sol ainda tentando se levantar, agradeci muito, me despedindo de todos, levantando âncora.

Como nas vezes anteriores, evitei olhar para trás. No fundo do meu coração eu sabia que, se o fizesse, de nada adiantaria. Aquela ilha e todos que gentilmente me receberam, simplesmente não estariam mais lá. Dentro de mim também fremia a certeza de que a outra ilha, aquela onde encontrei o velho Mestre, não estaria onde deveria estar, onde a deixei. Mas, isso, esse detalhe eu era sim capaz de entender.

Dessa vez, o Gaivota e eu, não tínhamos a mesma performance que nos levou até onde chegamos. Em minha ida, certamente eu contei com poderosas forças que me conduziram pelos melhores caminhos. Agora, no entanto, eu dependia dos equipamentos, de todo o meu conhecimento náutico para retornar em segurança. E com isso, mais e mais detalhes aos poucos se encaixavam dentro desse enorme quebra-cabeça.

Agora, a fome, o cansaço físico e mesmo mental, se faziam presentes. O tempo, não se mostrava sempre tão favorável. Por vezes, precisei refazer a rota, desviando de tempestades anunciadas de forma providencial pelos boletins meteorológicos. Mas nada, absolutamente nada que pudesse colocar em risco, esse meu retorno.

Já na costa brasileira, ainda com várias questões agulhando meus pensamentos, uma em especial se mostrava mais marcante:

 ...Por que eu?

...Por que será que passei por essa experiência?

 

Essa pergunta certamente habitaria meu coração por muitos anos. Mas, um detalhe devia ser analisado e acima de tudo aceito. Mesmo não tendo a total compreensão desse “por quê” uma coisa era certa: eu precisava viver essa experiência. Com o tempo, quem sabe, eu teria essa compreensão. Mas, também caso não a tivesse, não teria importância.

Com certeza, William Shakespeare tinha razão: “Entre o céu e a terra, existem mais mistérios do que a nossa vã filosofia pode imaginar”. Mas, de tudo isso, um fato eu podia entender perfeitamente, eu estive, com toda certeza, “Do Outro Lado”. 

Fim

m. trozidio

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